Peraí, Luiz Melodia, agora não
Marcelo Procopio
Parte 2 – uma madrugada
Madrugava um sábado de quase 30 anos atrás. Era fim de setembro ou outubro. Nem importa. Já tinha ido a shows de Melodia, em Belo Horizonte e no Rio. Em teatro com banda, em boates: só ele e seu violonista de fé, Renato Piau. Já tinha conversado com ele e combinado encontros para outras noitadas.
Nessa noite não. Não por isso, mas estava casado com Claudia. (Cada sexta ou sábado um saia com amigos; um ficava em casa).E eram então dois filhos,Maria dois anos e tanto e João um ano e pouco: dormiam.
Lá pelas três da madrugada um deles acorda chorando alto. Um de nós tinha que levantar. Lá se foi ela. Mas logo o outro acorda. Choradeira geral na casa. Não parecia dor ou doença. Talvez um sonho com tons de psicodelia.
Como não se aquietavam, lá fui eu entrar na festa dos horrores, quer dizer, dos sons altos e atonais de crianças.
Fomos todos perdendo a calma ou espantando as almas penadas que flutuavam no apartamento. Claro, não era isso. Era uma confusa maneira de não armar paz e paciência em cada um de nós quatro.
Liguei a vitrola para encher de música leve dos Beatles no lado B do disco Qualquer Coisa de Caetano: Eleanor Rigby, For NoOne, Lady Madonna, depois o disco todo até que DrumeNeguinhx no lado A do vinil (mais Samba e Amor e Madrugada e Amor) acalmaram João e Maria.
Dormiram enfim. Mãe e pai cansados, inclusive depois daqueles inevitáveis entreveros de todo casal. Voltamos para a cama.
Já era mais de cinco da madrugada. Último como sempre, apaguei o cigarro e bastou-me ajeitar no colchão da larga cama de amor e sono para ouvir o barulho de um carro estacionando junto a uma algazarra de vozes tontas de tanta noite.
Ainda meio tonto de tudo achei ter ouvido meu nome. E era.
Reconheci as vozes. Era dois colegas do Estado de Minas onde eu trabalhava, Marquinho Camarão, crítico de música e produtor de Melodia e um que prefiro declinar o nome, digamos que seja Hernandez. E uma terceira voz muito característica.
Olhei num canto da cortina. Tinham descido do carro e caminhavam para a entrada do prédio. Era na rua Mangabeiras com Paulo Afonso no Santo Antonio no primeiro andar. Numa época que ladrão era pouco e nem era mais confundido com o leiteiro que nem tinha mais.
Então, nada era trancado à chave, e nem havia muros e grades altas.
E o céu já azulava escuro escondendo estrelas no alto do morro do bairro, que numa linha reta de rua se ligava à Serra do Curral de onde buscava nascer o sol daquela sábado.
Corri. Desci a pequena rampa até o pequeno portão e vi que Luiz Melodia vinha na frente a subir e gritando: Marcelo, grande Marcelo. Com os braços abertos. Nos abraçamos como velhos conhecidos. Ainda que não.
Tive que contar em um minuto o acontecido. Eles estavam mais que ligados e bêbados. Disse-lhes, mais para Melodia, que não daria para recebê-los naquele instante.
Conversamos mais um pequeno tempo. Acho que cortei o barato mental deles. O entusiasmo sim.
Deram a volta e se foram. Não sem antes Luiz Melodia e eu nos abraçarmos novamente e nos beijarmos fraternos nos rostos.
E combinar mais uma vez um encontro. Uma conversa. Uma noite de loucuras. Uma entrevista.
E não nos encontramos mais na vida. Vi mais dois shows dele. Fiquei sem saber se deveria ir até o camarim. Não fui.
Frustração. Mas ele soube que amava toda a sua obra. Disse a ele.
Eu sei o que perdi. Sei mais agora.
Mas tenho história para contar. Para sempre. Para todos.
Um dia talvez, consiga descobrir o lugar onde fica essa nuvem onde os grandes artistas guardam suas obras quando morrem.
Acho que até sei que um pedaço dessa nuvem fica aqui em casa, nos discos que tenho de Luiz Melodia.
O cara, o artista genial que disse que a melhor fase da vida dele entre criança e adolescente foi na favela. Foi no Morro do São Carlos.
Parte 1 –Pós-prefácio
Um gênio da raça humana morreu e a entrevista combinada por três vezes não aconteceu. É para lamentar sim. Mas Luiz Melodia agora não pode mais falar, partiu para um lugar especial, a sua obra. Está num lugar onde poucos ficam: numa nuvem chamada música. De lá continuaremos ouvindo a Melodia única de Luiz.
Sim. Ele é daquelas tantas centenas, melhor, milhares de pessoas que são únicas. Os seus iguais são todos diferentes entre si. Não há quem faça música como a dele, assim como não há outros Jorges como o Bem Jor e o Mautner, para ficar só com exemplos brasileiros. É certo que em 2276 – daqui a 259 anos, Luiz Melodia ainda será único.
Na sua equação musical misturou vida na favela de São Carlos, no Estácio, com samba, pop, iêiêiê (tem gente que diz que é Jovem Guarda, pra mim é mais), canções e blues. E deu num som que ninguém é capaz de fazer igual, até também porque sua voz tonalizava algo muito próprio. A sonoridade chamada Luiz Melodia.
Parte 3 – final
Deixo para quem me ler até aqui uma canção especial: Decisão (Luiz Melodia/ Sergio Mello) do disco Claro, de 1987; e Revivendo:
https://www.youtube.com/watch?v=Med1QQVNxH0
https://www.letras.mus.br/luiz-melodia/397704/
> P.S. Desligado do mundo virtual por uns dias, daí conto só agora – tardia homenagem? – essa historinha com participação
Marcelo, te conheci nesse apartamento com a minha tia Custodia que trabalha pra vcs nesta época. No meu aniversário (um 18 de julho) vc comprou cervejas …talvez não se lembre. Eu nunca me esqueço. Obrigado pela delicadeza de sempre! Foi emocionante reviver lembranças deste período.
Fica o tom do Melodia vagando em nossas mentes.
Belo texto, Marcelo. Memórias especiais. Feliz em lê-las. Grande abraço, Iara Franco