Paulinho da Viola, nos seus 75 anos, é excelência de qualidade do samba

Lenin Novaes*

Paulo César Batista de Faria, nacional e internacionalmente conhecido por Paulinho da Viola, é considerado o Príncipe do Samba. É plausível que o título nobre lhe seja equitativo, lícito, justo. Não discordo. Mas, a julgar pelo seu significado, não creio que se ajuste à personalidade de Paulinho da Viola. E, por uma questão de caráter e elegância, que lhe é peculiar e tanto lhe sobra, nunca renunciou. Mas, também, não ostenta. E, estimados leitores e leitoras do Vila de Utopia, tem tanta mediocridade por aí tida como celebridade, né? Como disse o poeta Carlos Drummond de Andrade: “O tempo ainda é de fezes, maus poemas, alucinações e espera”, em A flor e a náusea. Quando esse caldo cultural vai entornar e levar para o esgoto as porcarias que o sistema insiste em nos obrigar a ouvir e consumir?

Paulinho da Viola, o Príncipe do Samba, fez 75 anos hoje. No destaque da capa, o sambista com o pai César Faria (Fotos: Divulgação)

Neste domingo, 12 de novembro, Paulinho da Viola está completando 75 anos de idade. E daqui dou-lhe os parabéns, em nome dos amigos e admiradores. Se existir algo maior que a felicidade é que lhe desejo.

Compositor, intérprete e instrumentista, Paulinho da Viola é um artista –na mais pura concepção da palavra – que representa a pureza do samba. Ele tem na sua obra o requinte da melodia, aliada à harmonia da poesia, sem sofisticação. É pura, genuína. Ao ouvi-lo, seja dedilhando o violão ou o cavaquinho, no universo de seus sambas e choros, ele nos remete, cada vez mais, a um padrão de qualidade. Da mais popular das suas músicas, “Foi um rio que passou em minha vida” à, talvez, umas das experimentais, “Vinhos finos, cristais” e “Sinal fechado”, a emoção aflora à flor da pele. “Sinal fechado”, um dos seus clássicos, venceu o último Festival da Record, realizado em 1969. Vamos cantar:

Olá, como vai?/Eu vou indo e você, tudo bem?/Tudo bem, eu vou indo, correndo/Pegar meu lugar no futuro, e você/Tudo bem, eu vou indo em busca/De um sono tranquilo, quem sabe?/Quanto tempo…/Pois é, quanto tempo…/Me perdoe a pressa/É a alma dos nossos negócios…/Oh, não tem de que/Eu também só ando a cem/Quando é que você telefona/Precisamos nos ver por aí/Pra semana, prometo/Talvez nos vejamos, quem sabe?/Quanto tempo…/Pois é, quanto tempo…/Tanta coisa que eu tinha a dizer/Mas, eu sumi na poeira das ruas/Eu também tenho algo a dizer/Mas me foge a lembrança/Por favor, telefone, eu preciso beber/Alguma coisa rapidamente/Pra semana…/O sinal…/Eu procuro você…/Vai abrir, vai abrir!/Prometo, não esqueço/Por favor, não esqueça/Não esqueço, não esqueço/Adeus”.

Ilustração: Lina Costa

“Sinal fechado” – lançada um ano após a ditadura militar editar o AI-5, que nos tirou os direitos constitucionais –, vem atravessando etapas da vida brasileira sempre atual. Se naquela época servia como manifestação de resistência, nos dias atuais soa como canção que retrata o desencontro num contexto desenfreado de competição, disputa, nesse sistema capitalista que nos isola, sufoca e deprime. Sobreviver no Brasil é uma grande aventura, penso de que desde sempre, frente à absurda e intolerante desigualdade que oprime, esmaga, arrocha a maioria da população. O sentido da poesia é instigante. Linear e, suavemente, nos provoca reflexão, sustentada à harmonia da melodia nos acordes perspicazes do violão.

Privilégio e capacidade. Na casa onde morou, na Rua Pinheiro Guimarães, bairro de Botafogo, Zona Sul do Rio de Janeiro, ele teve lições musicais fundamentais para a sua formação de artista. O pai, Benedicto César Ramos de Faria, exímio violonista do lendário grupo de choro Época de Ouro, promovia encontros musicais com Pixinguinha, Canhoto da Paraíba, Jacob do Bandolim, Tia Amélia e outros músicos. E ele, Paulinho da Viola, se deixou seduzir naquele ambiente. Arriscou os primeiros acordes no violão do pai e, por conta própria, frequentou encontros musicais organizados por Jacob do Bandolim. Com a base formada, sua capacidade instituiu o fundamento da arte. Que escola musical fantástica ele cursou, heim!

Bancário desde 19 anos e frequentador de núcleos de samba, principalmente em Jacarepaguá, perto de onde morava uma das tias, Trindade, na Vila Valqueire; no início de 1964, Paulinho da Viola conheceu o poeta, compositor e produtor Hermínio Bello de Carvalho. Teve acesso, então, a gravações de sambistas como Cartola, Carlos Cachaça, Elton Medeiros, Nelson Cavaquinho, Zé Ketti e Anescar do Salgueiro, entre outros. Mostrou alguns dos seus sambas e, daí, se fortaleceu a amizade e nasceu a parceria: “Duvide-o-dó”, gravada por Isaurinha Garcia, e “Valsa da solidão”, gravada por Elizete Cardoso, nossa dama da MPB.

Paulinho com Hermínio Bello de Carvalho

Hermínio levou Paulinho até o bar Zicartola – propriedade de Cartola e D. Zica –, na Rua da Carioca, onde passou a se apresentar, junto com outros sambistas. Compôs com mais frequência. E logo integrou A Voz do Morro, com Anescar do Salgueiro, Zé Ketti, Oscar Bigode, Nelson Sargento, Jair do Cavaquinho e Elton Medeiros, grupo criado por indicação do diretor da Musidisc, Luís Bittencourt. No repertório do primeiro disco, Roda de Samba, músicas dos próprios integrantes. O sucesso rendeu mais dois discos: Rosa de Samba 2, em 1965, e Os sambistas, em 1966.

Paulinho da Viola, nome artístico batizado por Sérgio Cabral (o pai, jornalista e crítico musical), em crônica de jornal, tocou violão no samba “Minhas madrugadas”, dele com Candeia, na gravação de Elizete Cardoso, uma das maiores cantoras do Brasil, no disco Elizete Sobe o Morro. Anos antes, ele foi levado à Portela e, numa roda de samba com a ala de compositores, ganhou parceria de Casquinha em “Recado”. Em 1966 a Portela foi campeã do Carnaval com o samba dele, “Memórias de um sargento de milícias”, obtendo nota máxima dos jurados. Em 1971 o samba-enredo foi gravado por Martinho da Vila.

O espetáculo musical Rosa de Ouro, escrito por Hermínio de Carvalho e dirigido por Kleber Santos, que revelou Clementina de Jesus, aos 63 anos de idade, e resgatou Aracy Cortes, teve acompanhamento e participação de Paulinho da Viola, Jair do Cavaquinho, Nescarzinho do Salgueiro e Elton Medeiros. O musical, que fez sucesso no país e no exterior, rendeu dois discos: Rosa de Ouro, lançado pelo Odeon, em 1965, e Rosa de Ouro 2, em 1967. O disco Samba na madrugada, ele gravou com Elton Medeiros, tendo no repertório “14 anos”, um dos seus sambas mais cultuados. É ou não é uma magnífica obra musical?

Paulinho em Bebadosamba

“Tinha eu 14 anos de idade/Quando o meu pai me chamou/Perguntou-me se eu queria estudar filosofia, medicina ou engenharia/Tinha eu que ser doutor/Mas a minha aspiração/Era ter um violão/Para me tornar sambista/Ele então me aconselhou/Sambista não tem valor/Nesta terra de doutor/E seu doutor/O meu pai tinha razão/Vejo um samba ser vendido/E o sambista esquecido/O seu verdadeiro autor/Eu estou necessitado/Mas meu samba encabulado/Eu não vendo não senhor”.

Na terceira edição do Festival da TV Record, em 1968, o samba “Sei lá, Mangueira”, dele com Hermínio Bello de Carvalho, foi defendido por Elza Soares. O samba que exalta a Mangueira levou alguns portelenses a ver Paulinho da Viola com desconfiança. E, em 1970, meteu a mão na viola e criou “Foi um rio que passou em minha vida”, apagando todo vestígio da dúvida de seu amor à Portela. Confiram esses dois sambas clássicos. Pura poesia.

“Sei lá, Mangueira” – “Visto assim do alto/Mais parece um céu no chão/Sei lá/Em Mangueira a poesia fez um mar, se alastrou/E a beleza do lugar, pra se entender/Tem que se achar/Que a vida não é só isso que se vê/É um pouco mais/Que os olhos não conseguem perceber/E as mãos não ousam tocar/E os pés recusam pisar/Sei lá, não sei…/Sei lá, não sei…/Não sei se toda a beleza de que lhes falo/Sai tão somente do meu coração/Em Mangueira a poesia/Num sobre e desce constante/Anda descalça ensinando/Um modo novo da gente viver/De sonhar, de pensar e sofrer/Sei lá, não sei, sei lá, não sei não/A Mangueira é tão grande/Que nem cabe explicação”.

“Foi um rio que passou em minha vida” – “Se um dia/Meu coração for consultado/Para saber se andou errado/Será difícil negar/Meu coração tem mania de amor/Amor não é fácil de achar/A marca dos meus desenganos ficou, ficou/Só um amor pode apagar/Porém/Há um caso diferente/Que marcou um breve tempo/Meu coração para sempre/Era dia de carnaval/Eu carregava uma tristeza/Não pensava em novo amor/Quando alguém que não me lembro anunciou/Portela, Portela/O samba trazendo alvorada/Meu coração conquistou/Ah, minha Portela/Quando vi você passar/Senti meu coração apressado/Todo o meu corpo tomado/Minha alegria voltar/Não posso definir aquele azul/Não era do céu/Nem era do mar/Foi um rio que passou em minha vida/E meu coração se deixou levar”.

De 1968 a 1980, os discos de Paulinho da Viola foram gravados na Odeon. Durante a década de 1970, ele gravou um disco por ano. Chegou a lançar dois discos num mesmo ano, em dois momentos. Foi em 1971: Paulinho da Viola I e Paulinho da Viola II. E ainda em 1976: Memórias cantando e Memórias chorando. No show Sarau, em 1973, ele objetivou resgatar alguns elementos da música brasileira, reunindo o grupo de choro Época de Ouro. O grupo, fundado por Jacob do Bandolim, que morreu em 1969, já não se apresentava publicamente. O bandolinista Déo Rian ocupou a vaga do fundador e o grupo ainda continua ativo. No espetáculo, que lotou o auditório do Teatro da Lagoa, o grupo apresentou choros que eram tocados em saraus no final do século XIX e início do século XX, com Paulinho da Viola se apresentando com seu conjunto em seguida. No final, os artistas de misturavam.

O show Vela no Breu, em 1976, teve o contexto do carnaval na época. A ideia foi transmitir  o sentimento dos sambistas em relação às mudanças nas escolas de samba e, por conseguinte, no carnaval. Com direção de Elifas Andreato – ele é autor de diversas artes de capas de discos do artista –, o cenário era composto por restos de alegorias, a luz baseada no branco sobre fundo preto. Não havia cores. A atmosfera intimista trazia a lembrança dos antigos e alegres carnavais de rua, sua espontaneidade e seu caráter unicamente popular.

No show Zumbido, o propósito foi a realização de um passeio pela história da cultura musical negra na cidade do Rio de Janeiro. A figura que inspirou o artista foi a de Heitor dos Prazeres, cuja importância começa no samba e se estende às artes plásticas. No palco, uma figura baseada na pintura de Heitor representava o personagem Zumbido, que encarnava diversas figuras do samba carioca. O termo, cunhado por Paulinho da Viola, refere-se a Zumbi dos Palmares, e a palavra zumbido que é som que incomoda. Uma fita de áudio reproduzia trechos de gravações de músicos negros. A única exceção foi a Noel Rosa.

Em 1982, o show A toda hora rola uma história, montado, primeiramente, no Teatro Clara Nunes, com direção de Fernando Faro. No mesmo teatro, seis anos depois, Elifas Andreato dirigiu o show Eu canto samba. E, após outros longos sete anos, ele voltou a subir o palco, desta vez encarnando Boca, no espetáculo Bebadosamba, homônimo ao disco que lançou. Paulinho da Viola canta Paulo da Portela, Cartola, Lupicínio Rodrigues, Nelson Cavaquinho, Ismael Silva, entre outros compositores, além de antigos sambas e do repertório do disco.

Paulinho da Viola e a filha Cecília Rabelo, em Itabira, com os luthiers Cássio Martins e Zé Cruz (Foto: Carlos Cruz)

Em 1975, no disco Paulinho da Viola, reúne “Pecado capital”, sucesso como tema de novela; “Argumento” e “Amor à natureza”, em forma de samba-enredo que merece a devida atenção:

“O Grêmio Recreativo e Escola de Samba Cenário de Tristeza/Apresenta seu enredo para o inverno e a primavera de 1975/Amor à natureza/Relíquia do folclore nacional/Jóia rara que apresento/Nesta paisagem em que me vejo/No centro da paixão e do tormento/Sem nenhuma ilusão/Neste cenário de tristeza/Relembro momentos de real bravura/Dos que lutaram com ardor/Em nome do amor à natureza/Cinzentas nuvens de fumaça/Umedecendo os meus olhos/De aflição e de cansaço/Imensos blocos de concreto/Ocupando todos os espaços/Daquela que já foi a mais bela cidade/Que o mundo inteiro consagrou/Com suas praias tão lindas/Tão cheias de graça, de sonho e de amor/Flutua no ar o desprezo/Desconsiderando a razão/Que o homem não sabe se vai encontrar/Um jeito de dar um jeito na situação/Uma semente atirada/Num solo tão fértil não deve morrer/É sempre uma nova esperança/Que a gente alimenta de sobreviver”.

Na gravadora Warner, em 1981, o disco tem o nome dele no título; um ano depois lançou A toda hora rola uma história, e, em 1983, o disco Prisma luminoso. O disco Eu canto samba, em 1989, rendeu ao artista quatro prêmios Sharp. Em 1996, Bebadosamba arrebatou mais cinco prêmios Sharp, que torna Paulinho da Viola um dos recordistas do prêmio com apenas dois discos. O disco é considerado um dos mais importantes de sua discografia. Ter a obra completa de Paulinho da Viola é, sem favor algum, uma obrigação àqueles que são discípulos do samba. E é mais do que justo o encerramento da matéria com a letra de “Bebadosamba”:

“Um mestre do verso, de olhar destemido/Disse uma vez, com certa ironia/’Se lágrima fosse de pedra eu choraria’/E eu, Boca, como sempre perdido/Bêbado de sambas e outros sonhos/Choro a lágrima comum/Que todos choram/Embora não tenha nessas horas,/Saudade do passado, remorso/Ou mágoas menores/Meu choro, Boca/Dolente, por questão de estilo/É chula quase raiada/Solo espontâneo e rude/De um samba nunca terminado/Um rio de murmúrios da memória/De meus olhos/Que quando aflora/Serve, antes de tudo/Para aliviar o peso das palavras/Que ninguém é de pedra/Bebadosamba, bebadosamba/ bebadosamba, bebadosamba/Meu bem/Bebadosamba, bebadosamba, bebadosamba, bebadachama/Também/Boca negra e rosa/Debochada e torta/Riso de cabrocha/Generosa/Beijo de paixão/Coração partido/Verso de improviso/Beba do martírio/Desta vida/Pelo coração/Bebadosamba, bebadosamba, bebadosamba/Meu bem/Bebadosamba, bebadosamba, bebadachama/Também/Chama que o samba semeia/A luz de sua chama/A paixão vertendo ondas/Velhos mantras de aruanda/Chama por Cartola, chama por Candeia/Chama Paulo da Portela/Chama Ventura, João da Gente e Claudionor/Chama por mano Heitor/Chama Ismael, Noel e Sinhô/Chama Pixinguinha/ Chama Donga e João da Baiana/Chama por Nonô/Chama Cyro Monteiro/Wilson e Geraldo Pereira/Monsueto, Zé com Fome e Padeirinho/Chama Nelson Cavaquinho/Chama Ataulfo/Chama por Bide e Marçal/Chama, chama, chama/Buci, Raul e Arnô Cabegal/Chama por mestre Marçal/Silas, Osório e Aniceto/Chama Mano Décio/Chama meu compadre Mauro Duarte/Jorge Mexeu e Geraldo Babão/Chama Alvaiade, Manacéa e Chico Santana/E outros irmãos de samba/Chama, chama/Bebadosamba, bebadosamba, bebadosamba, bebadosamba/Meu bem/Bebadosamba, bebadosamba, bebadosamba, bebadachama/Também.

*Lenin Novaes, jornalista e produtor cultural. É co-autor do livro Cantando para não enlouquecer, biografia da cantora Elza Soares, com José Louzeiro. Criou e promoveu o concurso nacional de Poesia para jornalistas, em homenagem ao poeta e jornalista Carlos Drummond de Andrade. É um dos coordenadores do Festival de Choro do Rio, realizado pelo Museu da Imagem e do Som – MIS. É Assessor de Imprensa do Centro de Ciências da Saúde (CCS) da Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ.

 

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