Para Carlos Drummond, Maria Julieta foi o seu melhor livro
Eis a penúltima edição da série Maria Julieta entrevista Carlos Drummond de Andrade, parte da celebração da Vila de Utopia, “Drummond sempre eterno”. Então, hoje e amanhã, a repórter sofistica ganha lugar de fala.
Escolhemos os dois últimos tópicos da entrevista por tratar da família dele e ela – a bela Maria Julieta. O pai Carlos Drummond deu a sua filha o maior amor do mundo. Por isso Maria Julieta é bem nascida, de educação sofisticada e elegante. E o poeta disse em entrevista que Maria Julieta é o seu melhor livro. (mcs)
Enfim, a vida foi boa?
Não posso me queixar. Dizer que a vida foi feliz, foi boa, é um exagero. Eu confesso a você, sinceramente, que eu não conheço vida feliz, porque a felicidade é um estado transitório por natureza, a felicidade é circunstancial.
Nós temos momento de plenitude, chamam de vínculos celestiais, mas ao lado disso vem a rotina, a dor de barriga, vem a dor de dente, vem a conta por pagar, vem a chateação do próximo e tudo isso.
Então de tudo isso, que felicidade é essa? A vida é uma sucessão imensa de circunstâncias e algumas delas são felizes, são realmente extraordinárias. Vale a pena viver apesar de tudo. Só não posso dizer que fui feliz, como também não vou dizer que fui infeliz, não, pelo contrário.
Devo dizer, que não há maior poeta do Brasil.
Houve um elemento na minha vida que influi muito, que é o seguinte: há uma benevolência geral com relação a mim. Na mocidade não houve tanto assim, a não ser de meus amigos.
Depois até, eu creio que essa benevolência vai se tornando exagerada. E uma das coisas que não me põe feliz é quando me chamam de maior poeta do Brasil. Não, não sou o maior poeta do Brasil.
Devo dizer, até para mostrar que eu não sou modesto, que não há maior poeta do Brasil. Eu acho Olavo Bilac, dentro do tempo dele, um grande poeta. Acho Gonçalves Dias um extraordinário poeta. Acho o Manuel Bandeira um excelente poeta.
O que eu procuro em Jorge de Lima é diferente daquilo que eu procuro em Murilo Mendes ou em Mário de Andrade. Em cada um deles eu acho uma nota diferente.
Há poetas que não foram muito divulgados de que eu gosto muito, o Marcelo Gama, Eduardo Guimarães da Costa e Silva, são poetas que me agradam porque eles têm poemas inteiros ou versos inteiros que me tocam muito.
Não vejo maneira de medir como se fosse comparar gêneros alimentícios, a maçã é mais rica, é melhor do que a banana, do que a laranja. Não tem, não acho isso.
Agora uma pergunta final, tá! Você está falando na figura de meu avô, na figura de seu pai, de sua mãe, eu acho que era bom a gente destacar.
A figura do meu pai é fundamental na minha vida. Eu não diria que a de minha mãe não fosse fundamental. A questão é a seguinte: coube a mim ter um pai rigoroso e uma mãe muito doce.
Com o tempo é que eu verifiquei que o rigor do meu pai era apenas uma forma de compensar a doçura extrema de minha mãe. Não funcionava uma família nos tempos antigos, rígidos em que todos fossem doces. Um tinha que tomar conta, corrigir os exageros.
Mas hoje analisando a figura de meu pai, que foi objeto de muita preocupação minha, até de ordem poética mesmo, eu procurei em muitos de meus poemas, me explicar a mim mesmo a minha atitude para com o meu pai.
Reconheço que eu fui injusto, porque mesmo neste período, que de certa maneira estranhava a sua energia, ele tinha gestos de simpatia e benevolência para comigo, que eram extraordinários.
Era menino, o meu pai comprou para mim uma obra em 24 volumes, enormes como se fosse 24 dicionários chamada Biblioteca Internacional de Obras Célebres; eu tinha 12 anos comecei a ler Dostoievski, Balzac, Eça de Queiroz, através desses livros.
Era extraordinária, foi publicada nos Estados Unidos e adaptada ao leitor português e brasileiro por escritores brasileiros e portugueses. Então ele estava viajando às vezes. O meu pai viajava muito, vendia gado, era um fazendeiro itinerante, era muito dinâmico.
Numa dessas vezes em que ele estava de viagem, eu fiz uma bobagem de uma conferência no pequeno grêmio literário que havia lá – eu era garoto, meninote – ele interrompeu a viagem para ir lá assistir ao triunfo, ao brilharete do filho dele. Naquela ocasião eu não prestava atenção a isso.
Já de minha mãe eu tenho uma lembrança tão açucarada, tão gostosa que eu não dizer que ela ocupa muito a minha lembrança, não. A minha mãe é como se fosse um veludo, um leito de damasco, muito suave, muito doce que eu me reclinasse.
Mas ela não era assim tão doce…
Comigo era sim! Eu não posso esquecer, quando fui para o colégio em Belo Horizonte e ela fez com que eu não voltasse no meado do ano porque achava que eu estava muito fraquinho, então esse fraquinho durou dois anos. Quando eu fui para Friburgo ela me escrevia cartas dizendo que deitava na minha cama e ficava enchendo o travesseiro de lágrimas.
Com saudades, é?
Ela chorava de lá e eu chorava de cá e era um chorar sem conta. O meu pai não, eu enfrentei com ele a obrigação de julgar um homem e de analisá-lo e concluir. Então a conclusão foi inteiramente favorável a ele.
Você reconciliou com ele, né?
Eu me tornei uma espécie de irmão de meu pai.
Carlos Drummond de Andrade (Itabira do Mato Dentro, 31 de outubro de 1902 – Rio de Janeiro, 17 de agosto de 1987)