Papa Leão XIV desmitifica crenças populares e sinaliza nova fase de racionalidade teológica

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Igreja Católica rejeita dogmas marianos e aparições místicas

Ana Cristina Ribeiro Fraga*

Em dois pronunciamentos históricos, o papa Leão XIV reafirmou o papel exclusivo de Jesus Cristo como redentor da humanidade e descartou como não sobrenaturais as alegadas aparições de Cristo em Dozulé, França.

As decisões, publicadas pelo Dicastério para a Doutrina da Fé, marcam uma inflexão doutrinária que pode redefinir o imaginário religioso católico no século XXI.

No documento Mater Populi Fidelis, Leão XIV afirma que “Maria não é corredentora da humanidade”, encerrando décadas de especulação teológica e devoção popular que atribuíam à mãe de Jesus um papel quase divino.  A instrução também alerta contra o uso de títulos que “ofusquem a centralidade de Cristo”.

Poucos dias depois, o Vaticano declarou que as visões de Madeleine Aumont, que alegou ter recebido 49 mensagens de Cristo entre 1972 e 1978, não têm origem sobrenatural.

A decisão desautoriza cultos locais e projetos de construção ligados às aparições, como a cruz monumental proposta em Dozulé.

A crise do sagrado na modernidade líquida

Essas decisões não são apenas teológicas, são profundamente políticas. A Igreja Católica, historicamente aliada à manutenção de estruturas simbólicas e hierarquias de poder, parece agora ceder à pressão da racionalidade moderna e à crítica secular dos mitos religiosos.

Sob uma lente sociológica, esse movimento pode ser interpretado como parte da luta ideológica entre religião e razão. Ao desmitificar o papel de Maria como corredentora e desautorizar aparições místicas, o Vaticano enfraquece a produção simbólica que alimenta o capital religioso — aquele que transforma fé em autoridade, influência e, muitas vezes, lucro.

Religião como fato social e o desencantamento do mundo

Para Émile Durkheim, a religião é antes de tudo um fato social, uma forma de coesão que expressa os valores coletivos.

Ao revisar dogmas e aparições, a Igreja não apenas altera crenças, mas reconfigura os laços simbólicos que sustentam sua legitimidade social.

A rejeição de aparições pode ser vista como uma tentativa de preservar a racionalidade institucional diante da fragmentação das crenças populares.

Já Max Weber descreveu a modernidade como um processo de desencantamento do mundo, em que a magia e o mistério cedem lugar à razão e à burocracia.

A decisão de Leão XIV é emblemática desse processo: ao negar o caráter sobrenatural das aparições e reafirmar a centralidade de Cristo, o Vaticano racionaliza o sagrado, transformando-o em doutrina controlada e institucionalizada.

Por seu lado, Louis Althusser via a religião como um dos aparelhos ideológicos do Estado, responsável por reproduzir as condições de dominação.

Ao desmitificar dogmas e aparições, a Igreja não abandona sua função ideológica — ela a reformula, adaptando-se às exigências de uma sociedade líquida, onde a fé precisa competir com o consumo, a ciência e a autonomia individual.

Outras religiões entre racionalização e resistência simbólica

O movimento da Igreja Católica rumo à racionalização teológica não é isolado. Diversas tradições religiosas estão passando por processos semelhantes, buscando adaptar-se à modernidade líquida e às exigências de uma sociedade mais crítica, conectada e plural.

No judaísmo contemporâneo, especialmente nas correntes reformistas, há uma abertura crescente ao debate ético, à igualdade de gênero e à revisão de práticas litúrgicas.

O Islã, por sua vez, enfrenta tensões entre ortodoxia e modernização, com pensadores como Abdullahi An-Na’im propondo interpretações mais compatíveis com os direitos humanos e a democracia.

Movimentos como o budismo secular, o espiritismo kardecista e as espiritualidades alternativas (reiki, meditação, xamanismo urbano) têm ganhado espaço justamente por oferecerem experiências espirituais sem dogmas rígidos, muitas vezes em sintonia com valores contemporâneos como sustentabilidade, autoconhecimento e inclusão.

O medo como ferramenta de doutrinação e dominação

Em contraste, parte significativa das igrejas neopentecostais, especialmente no Brasil e em outros países latino-americanos,  mantém uma estrutura simbólica baseada em dogmas ultrapassados, literalismo bíblico e teologia do medo.

A ênfase em demônios, maldições, prosperidade e punição divina cria um ambiente de controle emocional e psicológico.

Esse modelo é particularmente eficaz em populações mais pobres e com acesso limitado à educação formal, não por preconceito, mas por uma constatação sociológica: quanto menor o acesso à informação crítica, maior a vulnerabilidade à doutrinação simbólica.

Pierre Bourdieu já apontava como o capital cultural influencia a capacidade de resistir à imposição ideológica.

A promessa de salvação, cura e prosperidade imediata funciona como uma moeda simbólica poderosa, especialmente em contextos de precariedade.

A fé, nesse caso, deixa de ser espaço de transcendência e se torna instrumento de dominação, como já alertava Althusser ao tratar da religião como aparelho ideológico.

Fé e crítica

A desmitificação promovida por Leão XIV pode ser vista como um convite à reflexão: é possível viver a fé sem abrir mão da razão.

É assim que, enquanto algumas religiões se reinventam para dialogar com o mundo contemporâneo, outras se agarram ao passado como forma de preservar poder.

A tarefa crítica, seja ela teológica, antropológica ou filosófica, não é destruir a fé, mas libertá-la da manipulação, devolvendo ao indivíduo o direito de crer com consciência, e não por medo.

Foto: acervo pessoal

*Ana Cristina Ribeiro Fraga é escritora bissexta, jornalista e educadora social.

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