Outubro Itabirano. Crônicas da Itabira do Matto-dentro Imperial – 1874 – Uma excursão à Itabira de Matto-Dentro
Hotel dos Viajantes que a incúria itabirana demoliu
Acervo e pesquisa: Cristina Silveira
Da fazenda de Monlevade, onde estávamos, à cidade de Itabira anda o viajante cerca de 4 ½ a 5 léguas no espaço de 5 a 6 horas. A princípio o caminho é fácil e cômodo, mas essa felicidade como todas as felicidades do mundo, dura pouco; em breve perde-se a gente no meio de uma infinidade de trilhos e começa a acreditar que há de afinal chegar ao céu, porque sem dúvida depois de uma estrada tão escabrosa é impossível não encontrar-se com o santo chaveiro dos domínios celestes.
Essas considerações ocorrem ao viajante quando sobe o Morro do Chapéu; um chapéu que deve ter sido em tempos antediluvianos a touca imensa e pesada do sr. Diabo, atirada naquele lugar, quando ele fugia da flamejante espada de S. Miguel, estabelecido em um arraial a duas léguas de Monlevade.
Antes, porém de começar-se a grimpar pelo perdido penante do sulfúrico espírito, preparam-se os mortais que ali peregrinam, com a passagem de uma ponte, à qual se chega por uma descida quase vertical, pelo que se é obrigado a fazer ensaio da montanha russa, sobre uma superfície cheia de anfractuosidades.
Somente quem sobe as íngremes e fatigantes encostas de uma montanha é que pode avaliar a força do vocábulo expressivo com que se as designa: morro! diz de instante a instante o infeliz que a está subindo e é mesmo um morro que assim tanto o tortura. Mas como não há mal que sempre dure, o Morro do Chapéu também não é interminável e ao começar-se a sua descida os olhos descortinam um magnifico panorama.
Ao longe, como vigilante atalaia a guardar estas regiões, o Pico da Itabira eleva-se ufano, como digno emulo do Ytatiaya, e uma infinidade de colinas, das quais somente se avistam os cimos arredondados, semelham um vasto oceano, cujas ondas correm das extremidades longínquas de um horizonte vago até aos pés graníticos do gigantesco monolito.
Esse espetáculo é tanto mais agradável quanto nessas regiões de Minas, os horizontes são constantemente limitados, vive-se por assim dizer nas profundezas dos vales, e o olhar encontra por todos os lados, como impenetrável muro, as serras que de toda a parte se elevam.
Isso, pelo menos em mim, acanha e apouca o espirito; esta estreita limitação do espaço parece que também limita os voos da inteligência; aqui para resolver o problema da criação, a alma do estudioso seguindo o caminho dos olhos, estaca diante da montanha e só achando por única saída o espaço superior, acostuma-se a pensar que, direta ou indiretamente tudo desce do alto como no tempo do maná.
É em virtude do entorpecimento que causa essa espécie de contemplação estática, que o povo dessa terra antolha-se aos especuladores embatinados da corte, como massa ignorante e estupida, fácil de ser manejada em favor de seus sórdidos e inconfessáveis interesses.
Desenganem-se porém os zuavos pontifícios, si a educação clerical que felizmente vai pouco a pouco desaparecendo, ainda escurece os espíritos com umas sombras de superstição. Lembrem-se contudo que há nas veias dessa generosa gente o sangue do sertanejo que devassou essas florestas, atravessou esses rios, fundou essas cidades e ama sobretudo um Deus que lhe deu com a inteligência a liberdade, sem tirar-lhe com a religião a consciência.
Entramos os meus companheiros e eu de viagem na Itabira pela rua do Santo Antônio, onde, como nas proximidades de todas as povoações por onde aqui tenho passado, encontram-se pequenos casebres, de aspecto feio e desagradável e feitos com tal negligência que, apenas acabados, parece que já estão caindo em ruínas. Tomamos a rua Direita, que ainda aqui é a antítese do nome e fomos pela rua de Santa Anna pousar na casa da excelente família de um dos nossos mais amáveis companheiros.
No dia seguinte pela manhã, dispusemo-nos a dar uma volta para ver a cidade; subimos a um lugar chamado Campestre, vasta esplanada onde deveras estar assentada a povoação e de onde se avista grande parte do vale; há aí uma igreja da Piedade, sem torres e de aspecto exterior tão decrepito, que custa a compreender que haja verdadeiro espírito de religião, onde a casa de Deus se mostra em tão lamentável estado.
Daí, por um caminho feito entre as escavações de lavras antigas e abandonadas, seguimos para a Água Santa, fonte termal que apresenta aos olhos do visitante uma alegre e pitoresca paisagem.
Pelo solo inclinado de uma gruta de cerca de 4 a 5 metros de largura, sobre 9 a 10 de altura, desliza serpeando a corrente d’água que vai cair em um tanque feito à entrada da caverna, a expensas dos povos, e um pouco mais distante de sobre um tosco muro de pedras superpostas cai uma infinidade de veias liquidas, semelhante a uma larga franja de água límpida, cuja frialdade contrasta com a quentura da do tanque.
Por cima da gruta eleva-se uma majestosa e copada gameleira, cujas raízes atravessando a abobada dela, vão como gigantesca serpente descrevendo sinuosas curvas até mergulharem na água. A este aprazível retiro, que bem merecia uma prova fotográfica, chega-se por um horroroso caminho, uma simples trilha, em muitos lugares encharcado, dá acesso à risonha paisagem que a natureza fez de um jeito e que um pintor de gênio dificilmente idearia tão vivaz e tão fresca.
O dr. Guerra, amável pessoa e hábil facultativo do lugar, informou-me que de uma rápida análise que procedera, reconhecera nessas águas propriedades alcalinas, sulfúricas e ligeiramente férreas, pelo que as julgava muito aplicáveis para as moléstias do estômago, já tendo usado delas na sua clínica com favorável resultado; no entretanto, não o afirmo, mas creio, que há por aqui águas de Vichy e de Carlsbad!…
De volta da Água Santa, passamos pela igreja da Saúde, que fica sobre uma elevação, e é um templo simples e decente no exterior, não podendo nos dar notícia do interior, porque nele não entramos. Subimos ao cruzeiro, colocado aqui, como em todos os povoados, em alto sítio para que de longe diga desde logo ao caminheiro que nestas paragens reina a lei Daquele que ensinou a dar conforto ao que tem magoa, e prometeu saciar no céu aos famintos de justiça na terra.
O cruzeiro de Itabira é um majestoso lenho, do qual pendem todos os objetos que serviram na paixão do Salvador, escada, lança, esponja etc., e fica sobre uma colina à cavaleiro da matriz e de onde se avista um vasto horizonte, em cujo fundo se destaca o Pico da Itabira, cruzeiro eterno ali pregado pela mão onipotente do Senhor.
A igreja de Nossa Senhora do Rosário, matriz da Itabira, onde fomos às 11 horas ouvir a missa, é um vasto templo de duas torres, sóbrio de ornatos, alvo de limpeza e cheio de luz, como deve ser nestas terras da América a casa de Deus que fabricou este sol dos trópicos tão claro e tão fulgidio.
As rosáceas e as vidraças que derramam escuridão e trevas no templo, são próprias para as frigidas regiões onde as brumas constantes embaciam o brilho do dia e as álgidas neves entorpecem as expansões do espírito.
Aqui o cristianismo se inspira da majestade augusta das florestas virgens e do vivido fulgor dos astros do firmamento, toma a voz estrugidora das cachoeiras de nossos rios e o canto harmonioso dos passarinhos de nossos bosques; porque há depois escurecer a igreja para aterrar o coração e erguer a apertada ogiva para acanhar o pensamento?
Não, o cristianismo é antes de tudo a religião santa do amor e da liberdade e assim como o novo berço desta foi embalado ao murmúrio das águas do Mississipi, assim das veigas do gigante Amazonas, nós o acreditamos, há de ressurgir a pura e primeira grey do amado filho de Galileia.
Penetra-se na igreja, que é vasta e espaçosa, por uma alta e larga porta; nas paredes laterais veem-se três vidraças que espalham vivíssima claridade e os púlpitos, simples e singelos como a palavra da verdade, e nos ângulos formados por essas paredes e o arco cruzeiro estão os altares, disposição esta nova para mim e agradável à perspectiva.
Da capela-mor, a que as tribunas rasgadas em arco, dão o mesmo grandioso aspecto da nave, vai-se por dois corredores que a margeiam, para a sacristia que lhe fica por detrás. No corredor da direita vê-se em um pequeno quarto, uma linha e bem encarnada imagem de S. Jorge, obra do país, e algumas urnas, contendo restos mortais de pessoas gradas do lugar; no da esquerda e na sacristia encontram-se covas pelo chão, algumas com os seus aqui jaz – espetáculo estranho para quem guarda no coração um santo respeito aos mortos e repugna calcar com o pé a terra que cobre os inanimados restos de um ente que nos foi querido.
Depois desse fato repulsivo e anti-higiênico, outro que fere a vista e ofende o espírito, é o Ecce homo que se vê no oratório da sacristia. Aquela imagem, perdoe-nos o ilustre vigário da Itabira, tosca e rudemente feia, coberta de cor desconhecida nas diferentes raças humanas, sem expressão e sem arte, não pode avivar na imaginação do ente sensível a figura angélica do menino adorado no presépio pelos magos, nem o semblante carinhoso do homem levado para o céu pelos anjos.
O culto católico das imagens deve ser o culto do belo e não o das monstruosas estátuas de Siva ou de Brahma; nossa igreja é a cúpula de S. Pedro e não o pagode de Djjagernat.
Quem for a Itabira (é conselho que a experiência própria nos autoriza a dar), não deixe de visitar a casa do Rev. Vigário, o ilustre monsenhor Felicíssimo. Não é isso coisa difícil, a hospitalidade mineira, muito melhor que a do árabe que dá um punhado de tâmaras e um canto da tenda, abre ao estranho todas as portas e com franqueza do amigo e com a sinceridade do afeto.
A sala do monsenhor é um pequeno museu; peles de formidáveis onças e de outros animais, artefatos de difícil e delicada execução, uma gitiranaboia (jequitiranaboia), por tanto tempo terror de nós outros da cidade, uma coleção não pequena de moedas e medalhas e outra de retratos, em número superior a mil, amostras interessantes de minerais, fazem com que o visitante curioso e inteligente se demore ali muito tempo e retire-se ao depois não saciado, mas temeroso de cansar a obsequiosidade do amável hospede.
Então, como aconteceu conosco, ele o há de convidar a ir até o hospital Nossa Senhora das Dores, de que é provedor digno e zeloso e que fica fronteiro à sua casa, na mesma rua do Rosário.
A casa do hospital é grande, tem dois pavimentos para a rua e três para os fundos, por ser edificada sobre um terreno em declive.
No andar superior há duas enfermarias gerais e quatro quartos para doentes do sexo masculino; uma sala onde se reúne a administração da casa e a capela; no da entrada, encontra-se a botica, com porta para a rua, duas enfermarias e quartos para doentes do sexo feminino, quarto da roupa lavada com armários para guardá-la, outro para a roupa suja, cozinha, com um bom fogão e dispensa, rodeado de caixas para guardar mantimentos; entre esta e uma sala onde jantam os empregados há um espaço quadrado, circundado de grades, que também ocupa os outros pavimentos e por onde entra a luz através de uma grande claraboia; no pavimento inferior fica o quarto de banhos, o deposito da lenha e aposentos dos criados.
Por detrás do edifício vê-se um grande terreno, dividido em duas partes de desigual extensão; na primeira e menor cultivam-se hortaliças e plantas medicinais para uso da casa; a outra muito mais extensa, serve para pasto de animais e produz uma pequena renda.
O hospital Nossa Senhora das Dores, da Itabira, é uma nobre e digna instituição; monumento elevado à caridade, sinal evidente do coração bem formado de nós outros, brasileiros, tão mal apreciados no estrangeiro e que a nós mesmos tão mal nos julgamos.
Para mais bem avaliar-se os serviços que presta tão útil instituição, consinta-se nos que para aqui transcrevemos alguns dados do último relatório que em 4 de abril do ano de 1873, apresentou monsenhor Felicíssimo à Irmandade de Nossa Senhora das Dores, que é a sustentadora do hospital.
A receita no ano de 1872-1873 foi de 11:140$430, toda consumida por se terem feito despesas extraordinárias, pelo que o patriotismo continuou a ser de 42;614$000. Consistiu ela em legados, donativos, juros do patrimônio, entradas e anuais de irmãos e auxílios dos cofres provincial e municipal, favor este largamente compensado pelos serviços que a saúde pública presta a caridosa casa. Basta para comprovar-se a verdade desta nossa asserção, exibir aqui o quadro do movimento dos doentes no mesmo ano de 1873-1874.
Existiam: 43, entraram durante o ano: 209, total 252. Restabeleceram-se ou melhoraram: 175, faleceram: 35, ficaram em tratamento: 42, total 252.
A isso se deve acrescentar que existem no estabelecimento e são por ele sustentadas 7 invalidas e 1 invalido, que prestam o serviço compatível com suas forças.
Parece-nos que essa ligeira exposição, demonstra clara e evidentemente que é difícil ao escritor dessas linhas encontrar expressões que possam significar a emoção e o jubilo que esse fato lhe infiltra n’alma.
Bendito seja Deus! – exclama o digno provedor. Bendito seja Deus! É o grito, que fervoroso foge-nos dos lábios, quando vemos que o egoísmo não apodreceu ainda todos os corações, que aos gemidos e lágrimas de uns respondem o auxílio de outros, o conforto, o remédio, a consolação ungida da fé, a caridade enfim na sua mais brilhante manifestação.
Com efeito, o hospital Nossa Senhora das Dores da Itabira, que honra e nobiliza essa cidade, é mais uma prova daquele sentimento profundo de beneficência, de que nós tão bem curamos, e que ao sábio Agassiz pareceu ser indicio certo do cuidado e do desenvolvimento inteligente que em breve espaço de tempo havemos de dar a todos os ramos da atividade humana.
Sentimos que o pouco tempo que nos demoramos na Itabira, não nos permitisse sindicar e ver os seus estabelecimentos de instrução, nem avaliar a atividade do seu comércio; apenas, pelo que ouvimos, sabemos que esse não é de pouca importância e aquela, a vista da notícia que há pouco lemos do atraso de quatro meses em que está a província no pagamento de ordenados ao desditosos professores públicos, é de crer que não se mostre em estado florescente.
Repetimos que não temos dados positivos para asseverar a exatidão desses nossos assertos, mas pelo que diz respeito ao último, a falta de uma biblioteca, a não existência de uma única associação literária e sobretudo a de uma gazeta, em um centro tão populoso e comercial, autorizam pelo menos, senão desculpam, a conjectura que formulamos acerca do assunto.
Não se entenda porém que isso é uma censura feita por nós à benévola população da Itabira, não, quem como nós, foi ali tão bem acolhido e tão graciosamente tratado e viu de parte tanta bonomia de coração e encarou tantos semblantes prazenteiros, quantos os que pude avistar, poderá sim dar o conselho de amigo, mas nunca proferir ou escrever palavra, em que sequer transpareça vestígio de ironia.
Nessa ligeira narração que fizemos, só encaramos um fito: pagar a dívida de gratidão que contraímos com a família distinta que nos acolheu e com o honrado negociante (*) com que temos travado tão amistosas relações.
Eles foram para nós os representantes da Itabira; eles nos encheram o coração de reconhecimento, receba, pois, a cidade de que são filhos a segurança de nossos pequenos e insignificantes serviços, mas que são ofertados de boa vontade, e saiba e creia, que onde quer que se ache o humilde escritor dessas linhas, ou elevado pela fortuna, ou batido pela adversidade, seu rosto se expandirá de jubilo e seu coração pulsará mais rápido, sempre que ao lábio ou ao pensamento vier o nome da ITABIRA!
Leitão Junior. Monlevade, 28 de fevereiro de 1874.
(*) A do Sr. Alfredo Furst e o Sr. Affonso Fortunato de Oliveira.
[Diário de Minas, 4/7/1874. BN-Rio]