“Os milicos de 64 eram mal-informados: acharam que íamos envenenar a água de Belo Horizonte”, recorda o advogado Marcus Vinicius Lage Moreira

Fotos: Carlos Cruz

Desde criança, antes mesmo do golpe militar de 1º de abril de 1964, eu ouvia dizer que o advogado Marcus Vinicius Lage Moreira, filho de Vinicius, tradicional fazendeiro de Ferros, era um perigoso comunista. Ele e o seu conterrâneo Galeno Magalhães, do distrito de Borba Gato, ex-companheiro da ex-presidente Dilma Rousseff, eram os comunistas mais conhecidos da região.

Marcus Vinicius, de fato, foi militante do Partido Comunista Brasileiro. Mas não foi pela sua militância partidária que ele foi intimado a depor logo após o golpe. Foi por seu ativismo no movimento estudantil, que apoiava as reformas de base do presidente deposto João Goulart (1961-64).

“Queriam saber se íamos envenenar a água de Belo Horizonte, a mesma água que a gente bebia, olha que loucura”, recorda Marcus Vinicius, que assegura não ter sido por temor à ditadura que retornou a Ferros, em 1966, assim que se formou em Direito pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). “Foi para ver se ganhava dinheiro com uma serraria”, revela.

Não deu certo o seu projeto de virar capitalista. Em 1970 ele abre em Itabira um dos mais importantes escritórios de advocacia da cidade. Com o escritório, ele pode até não ter virado capitalista, mas é certo que ganhou um bom dinheiro em processos de indenização a fazendeiros que tiveram as suas baixadas invadidas pelo “fino” de minério da Vale.

Marcus Vinicius teve também importante participação na vida política de Itabira, como representante da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), subseção de Itabira, na campanha pelas Diretas Já. E, depois, com a redemocratização do país, quando foi nomeado procurador jurídico da Prefeitura no governo de Jackson Tavares (1997-2000).

Na atual conjuntura de mudança, quando o país derrotou Bolsonaro e a sua política golpista e negacionista, a palavra de Marcus Vinicius, que continua advogando aos 82 anos, ganha importância pela sua experiência de vida e política, como advogado e um dos fundadores da subseção da OAB de Itabira. Confira.

(Carlos Cruz)

Você nasceu em Ferros?

Nasci na fazenda das Flexas, dos meus avós, em 1940. Em 1946, papai comprou outra fazenda chamada Duas Barras, também em Ferros, mas em bacias hidrográficas diferentes. Sai de Ferros aos 10 anos para estudar em Belo Horizonte, primeiro no internado do colégio Arnaldo, isso no final de 1950. Depois fiz admissão para entrar no ginásio e fui para o Colégio Batista Mineiro.

E como foi o ingresso na militância política?

Desde o ginásio eu já vinha acompanhando e me interessei pela política. Morava em uma república de estudantes universitários e a política era bem presente em nossas conversas. Mas foi na faculdade de Direito, na UFMG (Universidade Federal de Minas Gerais), que eu ingressei, em 1962, no Partido Comunista e me envolvi mais com a política no movimento estudantil.

Dois anos antes do golpe militar.

Sim, naquela efervescência toda, antes dos militares darem o golpe. Comecei a minha militância no grupo de esquerda, na UDU (União Democrática Universitária), enquanto a tendência de direita se chamava ADA, Aliança Democrática Acadêmica. E tinha um terceiro grupo que se dizia independente. Uma hora estava com a esquerda, outra já votava com a direita.

Devia ser o que deu origem aos “tucanos”, que ficam em cima do muro.

Pois é. Mas o certo é que vivíamos já naquela época esse embate entre a direita e a esquerda e isso nunca vai acabar. Não é um problema, desde que não se partam para os extremismos.

Paulo Magalhães (advogado itabirano) foi meu colega na universidade. Ele era mais conservador, da ADA, mas sempre votava em mim, pois já éramos muito amigos, até por sermos da mesma região. E eu também votava nele…

Já naquela época, o Paulo era amigo do Newton Cardoso (ex-governador de Minas Gerais, 1987-91, da ala mais conservadora e fisiológica do PMDB, nota da redação). Mas a gente se dava muito bem na faculdade e continuamos amigos aqui em Itabira.

Como era o clima político antes do golpe?

Era uma efervescência dos diabos. Apoiávamos as reformas de Jango. Tínhamos a impressão de que ele era muito forte no governo e tinha o Brizola com o grupo dos 11.

Com isso, acreditávamos ser possível equilibrar as forças e sobrepor às manobras da direita, sobretudo do marechal Odílio Denis, que comandava o Exército e tentou impedir a posse de Jango quando Jânio Quadros renunciou.

Jango foi eleito vice-presidente em chapa independente, com apoio da esquerda, enquanto Jânio Quadros foi eleito presidente com apoio da direita. As eleições para presidente e vice eram separadas, elegia quem tivesse mais votos.

Eleito, Jânio quis dar um golpe com a renúncia. Achou que voltaria aos braços do povo, como fez Bolsonaro agora ao fugir para os Estados Unidos. Quando voltar, ele vai pegar cadeia, se Deus quiser.

Jango assumiu, mas deram um golpe branco do parlamentarismo, para tirar o seu poder. Foi quando Tancredo Neves virou primeiro-ministro, mas isso não impediu Jango de governar e propor as reformas de base. Tancredo foi um bom ministro, embora conservador, não impediu que Jango desse encaminhamento às reformas de base.

Campanha de Jânio Quadros (o mais alto, de bigode, à direita) à presidência, em Itabira, em 1959, e de Magalhães Pinto para governador. O advogado Ariosto Procópio está na foto, atrás de quem está falando ao microfone. Marcus Vinicius, nessa época, estudava em Belo Horizonte e viveu toda essa efervescência política que culminou no golpe militar de 1964 (Foto: acervo da família de Tobias)

Foi o que incomodou os militares e a classe média conservadora, o que acabou levando ao golpe militar de 1964.

Exatamente. Eu estava na militância estudantil e antes do golpe participei de um congresso latino-americano da juventude, no Chile. A UNE (União Nacional dos Estudantes) conseguiu com Jango um avião da FAB (Força Aérea Brasileira) para levar a delegação, mas eu fui antes com uma amiga de militância, do curso de ciências econômicas, com passagens patrocinadas pelo Partido Comunista.

O embarque de quem foi no avião da FAB atrasou e a minha amiga e eu acabamos representando o Brasil na abertura do congresso. A burocracia acabou atrasando o embarque dos outros estudantes brasileiros no avião da FAB

Quando veio o golpe militar de 1964 você estava filiado ao Partido Comunista Brasileiro?

Sim, foi quando houve a caça às bruxas, muita repressão política. Mas eu tive que depor não por ser filiado ao Partido Comunista, mas pela minha militância no movimento estudantil.

Em Belo Horizonte, tinha um oficial do Exército, não me lembro o nome inteiro, só sei que era conhecido como Sarmento, uma figura horrorosa e muito bem-informado, mas a maioria dos oficiais era mal-informada.

Naquele tempo já havia muitas fake-news, muita mentira, como agora, só não tinha esse nome. Diziam mentiras sem fundamento, como disseram agora que se Lula fosse eleito, ele ia abolir a propriedade privada e acabar com a família. Lula foi presidente por duas vezes e nada disso aconteceu, tudo mentira.

Mas se o Sarmento era bem-informado, o oficial do Exército que colheu o meu depoimento em inquérito militar estava por fora, não sabia de nada, foi o que observei com as perguntas que me fez. Perguntou sobre um plano, que nunca existiu, de envenenar a água de Belo Horizonte, como se fossemos doidos o bastante para envenenar a própria água que bebíamos.

Era mais uma fake news entre as muitas que foram inventadas para justificar o golpe militar. Foi assim, depois avaliando o golpe, que percebemos que os militares não tinham muitos dados, sabiam muito pouco da realidade brasileira e acreditavam nas mentiras da direita, nas lendas urbanas.

Você foi chamado a depor por ser filiado ao Partido Comunista?

Não, foi pela minha participação no movimento estudantil, na Faculdade de Direito da UFMG. Nada me perguntaram sobre o partido, ficaram batendo nessa tecla ridícula de que íamos colocar veneno na água.

A nossa atuação pelo partido era muito legalista, pregávamos, como agora, uma frente ampla partidária para assegurar a democracia. Não éramos sectários, como são hoje muitos filiados do PT, que vi nascer com muita esperança, mas que se transformou, com um núcleo político ainda bem sectário, num partido bastante ideológico.

“Fechei a serraria em Ferros, que não deu lucro, e abri o escritório de advocacia em Itabira”, conta Marcus Vinicius, que continua advogando, aos 82 anos, com lucidez e perspicácia jurídica

Foi por causa do golpe e das perseguições que, depois de formado, você retornou para a sua cidade natal para tocar uma serraria? Uma das lendas que eu ouvi, ainda criança, após o golpe, foi que você e o Galeno Magalhães, que também é de Ferros, de Borba Gato, tinham fugido para não serem presos. E que eram uns perigosos comunistas.

Foi mais uma fake-news, uma mentira que alguns parentes inventaram a meu respeito. Espalharam que eu saí de Belo Horizonte enrolado em um lençol branco, para não ser preso. Tudo mentira, mais uma que inventaram.

Mas de fato, muitos militantes de esquerda tiveram que fugir do país para não serem presos. Os que ficaram, muitos sofreram perseguições e torturas. Mas eu não passei por isso, minha militância era mais no meio estudantil e como viram que era fantasiosa a história de envenenar a água de Belo Horizonte, não fomos mais chamados a depor.

E o que você foi fazer de volta à Ferros?

Voltei para ver se ganhava dinheiro, mas acabei dando com os burros n’água. Naquele tempo, meu pai, Vinicius, havia comprado muitas madeiras de lei em pé, ficavam espalhadas ainda no mato, em fazendas vizinhas: tinha muito cedro, jacarandá, jequitibá, ipê, peroba rosa, todas madeiras nobres.

Eu estava recém-casado com a Cacá e vi isso como uma oportunidade de negócio. Fui para explorar, serrar e vender toda essas madeiras nobres. Portanto, o meu retorno para Ferros nada teve a ver com a repressão.

Cheguei a ter uma fábrica de tacos. Muitas casas em Itabira ainda têm tacos que eu fabriquei. A serraria tinha muita movimentação, cheguei a ter 38 bois de carro e 19 juntas para puxar as toras de madeira do mato e ainda tendo de atravessar o rio. Dava muito trabalho e a margem de lucro era pequena. E acabei quebrando.

Pelo que sei, você só começou a advogar a partir de 1970, quando abriu escritório em Itabira, e a Cacá foi dar aula de Moral e Cívica no Colégio Estadual Mestre Zeca Amâncio, hoje EEMZA. Confere?

Foi isso mesmo. Cacá formou em Sociologia e foi dar aula de Moral e Cívica. E eu comecei a advogar, já que a serraria não havia dado certo.

Foi nas aulas com Cacá que eu fiquei sabendo que vivíamos sob uma ditadura. Ela nos ensinava ciências sociais e políticas, as suas aulas dela nada tinham de moral e cívica.

Diziam que ela era também comunista. Cacá sempre foi muito firme em suas convicções, hoje está aposentada e participa do Observatório Social do Brasil, aqui em Itabira.

Na advocacia, eu me lembro de um grande processo que você e o Mauro Márcio ganharam da Vale, relativo à indenização por assoreamento de fazendas nas margens do rio Jirau por rejeitos da Vale. Você ganhou muito dinheiro com isso?

Ganhei (risos). Eu me lembro que com o dinheiro que ganhámos com esse processo. Mauro Márcio e eu, cada um comprou um apartamento em Belo Horizonte. E houve outros processos, o primeiro foi ganho por Prudêncio Gomes Pereira, aí foi pelo assoreamento de sua fazenda onde hoje é o bairro da Praia. Ele contratou advogado de Belo Horizonte e a causa ganha virou jurisprudência.

Na advocacia em uma comarca pequena, como era Itabira naquela época, atuávamos em duas áreas, a civil e a trabalhista.

Então você ganhou mais dinheiro da Vale com as causas trabalhistas.

Também. Mas ganhei mais com as ações de indenização pelo fino de minério. O doutor Nico Rosa (Antônio Augusto de Campos Rosa (já falecido), que advogava para a Vale, vivia falando que era preciso tomar providências para parar com o rejeito e o assoreamento das baixadas até Santa Maria e também descendo para Nova Era. Mas os engenheiros não o ouviam, só queriam saber de aumentar a produtividade.

O Chico (Francisco Martins da Costa), que é um grande profissional, muito sério, e que assim como eu, está militando na advocacia até hoje, fazia o mesmo alerta. Mas de nada adiantava. Os engenheiros da Vale não ligavam, queriam produzir cada vez mais.

Como não havia correção monetária naquela época, tudo faziam para deixar os processos parados. Só em 1981 é que veio a lei, corrigindo o débito judicial pela correção monetária. Antes o devedor sempre contestava porque não tinha acréscimo na dívida.

Pois foi só com a correção monetária que a Vale decidiu agir – e construiu as barragens de rejeito também para ter água para tocar as suas usinas. Foi assim que parou de descer “finos” pelos cursos d’água de Itabira.

E o dinheiro para o seu bolso, mingou? (risos)

Nesses casos de rejeitos, sim, mas houve outras causas, isso não para, a empresa é muito grande. E Itabira foi crescendo, a comarca também.

Leia mais na segunda e última parte desta entrevista:

– A redemocratização do país e a luta de Itabira na Constituinte pelos royalties do minério e o fim do Imposto Único sobre Minerais.

– A fundação da subseção da OAB e a sua participação na vida política da cidade.

– A derrota de Jackson Tavares, que não se reelegeu prefeito de Itabira.

– Marco Antônio Lage e o apoio à candidatura de Lula. Um divisor político que deve levar à formação de uma frente de centro-esquerda para disputar a Prefeitura de Itabira, em 2024, com a direita e a extrema-direita itabirana.

– O apoio de Bolsonaro ao golpe e a tentativa frustrada de voltar ao poder nos braços do povo, como fez Jânio Quadros. “Vai dar cadeia”, acredita Marcus Vinicius.

Leia a segunda parte da entrevista com o advogado Marcus Vinicius Lage Moreira aqui:

“Ao apoiar Lula, Marco Antônio sinaliza que pretende compor frente de centro-esquerda na disputa da Prefeitura de Itabira com a direita”, acredita Marcus Vinicius

 

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