O Pasquim na Biblioteca Nacional e uma crônica de Chico Buarque na Vila de Utopia

Aqui escrevo para registrar uma notícia danada de boa em meio de desmesuradas tragédias anunciadas: os crimes da Vale S/A em Brumadinho e Mariana; a negação da pandemia de Covid-19 pela presidência da República e pelo Conselho Federal de Medicina; e de perto, o transbordamento dos rios, Tanque e Jirau, em de Santa Maria de Itabira.

Capa da primeira edição de O Pasquim (Fonte: Hemeroteca BN/Rio)

A boa nova vem da Biblioteca Nacional/Rio, do catálogo da hemeroteca, agora acrescido da coleção do jornal O Pasquim (1969-1991), digitalizado e disponível via web para o mundo inteiro, mas protegido pela Lei de Direito Autoral.

A maioria de crônicas e reportagens reproduzidas aqui na Vila de Utopia está livre de direito autoral. Por exemplo, reproduzimos do Correio da Manhã (domínio público), crônicas de 1955, aquelas crônicas “municipalistas” do poeta Drummond e do cronista Antonio Crispim, em defesa dos direitos de Itabira, que a CVRD “comeu o doce, bebeu o rio e deixou na caixa o vale”.

Isto posto, comemoremos a boa notícia, com a reprodução da BN-Rio, de uma crônica assinada pelo nosso queridíssimo Chico Buarque. Publicada na edição n. 1 do Pasquim, Chico, em Roma, comemora a vitória do Fluminense no Campeonato Carioca de Futebol de 1969. O Campeonato eternizado, o memorável Fla x Flu em que o tricolor venceu de 2 x 1.

P.S. Eu também sou tricolor!

(Cristina Silveira)

Um tricolor em Roma

Chico Buarque

Chico em frente à painel com foto histórica da luta contra a repressão na ditadura militar

Ser antiflamenguista é ostentar no meio da cara um diploma de ressentido. É detestar Mangueira, o carnaval e tudo o que cheire a popular e unanime. O neném desmamado, o menino asmático e o homem traído, esses terão sempre o direito de gritar contra o Flamengo.

Por isso mesmo é muito fácil ser rubro-negro. Fácil demais. É como ser a favor do sol no meio do deserto, ou comemorar o Dia da Árvore no coração da Amazônia.

Aliás, nunca existiu um flamenguista. Flamengar é verbo imperfeito que só se conjuga no plural. Por exemplo: eu advogo, tu bates o ponto, ele mata mosquito; nós flamengamos, vós flamengais, eles flamengam.

Mas torcer pelo Fluminense, modéstia à parte, requer outros talentos. Precisa saber dançar sem batucada. O tricolor chora e ri sem ninguém por perto. Ele merece um campeonato, ele merece.

Antes mesmo de ser informado, via satélite, por essa estranha seita chamada “Jovem Flu”, fiquei sabendo da notícia por meu pai, que é bonsucesso. Um “Velho Bom”, em suma.

Depois veio o telefonema dum bando de amigos, jogadores e rodrigues, cujo amontoado de vozes deixou-me entender pouco mais que a confirmação da vitória. Mas foi o bastante para me deixar emocionado e sem sono, fumando na janela.

Eram cinco horas da madrugada e ninguém se manifestava nas redondezas do Vaticano. Ignoravam o campeão carioca num silêncio canônico, donde pude constatar que, naquele exato momento, em assuntos de futebol eu era o homem mais feliz de Roma.

Chico Buarque, cantor, compositor e fluminense

O amigo Franco Beretta, coproprietário do Bar Nuova Sicília, ofereceu-me um vinho pela vitória do Fluminense no campeonato brasileiro. Bom, eu disse brasileiro para simplificar, porque eles não entendem os nossos campeonatos regionais.

Disse também que a bandeira do campeonato brasileiro era igual à da Italia, vermelha, verde e branca, mas evitei jurar que se tratasse de uma homenagem. O Franco Beretta achou que era homenagem sim, que tem muito italiano no Brasil, ele mesmo tem um primo que está milionário em Montevidéu.

Para dizer a verdade, o vermelho do Fluminense é mais chegado ao tom do vinho Barolo que Franco ofereceu mais um. E o verde da camisa tricolor é o mesmo das azeitonas que a gente foi comendo e comendo, falando de futebol.

Não, o Pelé é do Santos. Se o Fluminense ganhou do Santos? Ora, pois já não lhe disse que o meu clube foi campeão? (Franco Beretta, como todo italiano, desconfia muito de futebol brasileiro sem Pelé).

Você pode comparar o Fluminense com o time da Fiorentina, campeão da Itália. No lugar do Superachi temos o Félix, goleiro da seleção. No lugar de Amarildo temos o Lula, e daí? Se achar pouco um Lula, tome um Lulinha, que eu nunca vi, mas já gostei.

Pega o Ferrante, líbero da cabeleira loura e abundante, faz uma permanente e pinta todo de preto, pinta de novo porque não ficou no ponto, passa uma terceira mão de tinta fosforescente e você tem o Denilson.

O De Sisti, capitão fiorentino e genio nacional, é um Samarone sem malícia. Se o Samarone é do escrete? Não, não é. Nem o Galhardo. O Chiarugi, ah, Chiarugi é um maluco, segundo o meu amigo italiano. Chegou a ser afastado do primeiro time porque dribla muito mas, engraçado, foi com a sua volta que a Fiorentina partiu firme para a liderança.

Vem cá, o Chiarugi seria capaz de marcar um gol com a mão? Ah, aquele é capaz de tudo, diz o italiano, pode ser até que o juiz confirme o gol. E então, meu caro Beretta, você não acha que ele é um ponta-direita para a seleção italiana? Para a seleção está bem, diz ele, mas se o Chiarugi marcar gol de mão contra a minha Roma desço no campo e faço um estrago naquela cara.

Franco Beretta ia sendo convertido mansamente. Passei do Wilton para o Oliveira, deste para o Assis, daí ao Silveira e a bola foi parar nos pés do Cláudio.

Nisso o Franco centrou e perguntou pelo nosso Riva, o artilheiro. Mas qual Riva, qual nada, muito melhor! (Riva foi o goleador do campeonato italiano: 19 gols em 30 partidas). E você vem falar de Riva?

Olha aqui, não sei como lhe explicar, mas o campeonato carioca começa com doze clubes e de repente tem oito, quer dizer… O fato é que o Flávio foi artilheiro do Brasil com 49 gols e pronto.

Se é novo esse Flávio? É, começou este ano. Não, antes dele a gente não costumava fazer gol. Antes o Flávio jogava de centroavante o fantasma do Valdo.

E tem mais: a revelação do ano é um sujeito que se chama Cafuringa. Mas ao ouvir Cafuringa, o meu amigo achou demais, disse que eu já estava exagerando e foi cuidar da vida.

[O Pasquim, 26/6/1969, ano 1, n.1. Fonte: Hemeroteca da BN-Rio]

No destaque, partida de futebol de 1969, pelo Campeonato Carioca: Flu 2 x Fla 1 no Maracanã (Foto: acervo BN-Rio

 

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