Vila de Utopia

O Nava e o Andrade, modernistas do Caminho Novo

Por Cristina Silveira

Nheengatu: tupy, or not tupy that is the question

A utopia antropofágica chega às montanhas azuis, ferrosas de mistérios… Bello Horizonte curtiu o barato do Movimento Modernista nas páginas de A Revista (1925-26), dirigida por Martins de Almeida e Carlos Drummond de Andrade. Viveu três edições, anteriores a primeira publicação do mais famoso poema de Drummond – No meio do caminho -, na Revista de Antropofagia, n.3/1928.

Tupy, or not tupy, a “devoração” faz a cabeça dos mais jovens poetas modernistas de Pindorama. O faminto/impertinente Rosário Fusco 17 anos, Guilhermino César, 19, Ascânio Lopes, 21 (Sangue brasileiro, o poema da história do Brasil). Jovens idealizadores da Revista Verde (set. 1927-28) e do Manifesto do Grupo Verde de Cataguases, por onde passou o olhar fotográfico de Humberto Mauro.

Quatro meses antes da estreia de Verde, maio de 1927, a “Revolução Caraíba” e seu novo homem “bárbaro tecnizado” se instala na Serra da Mantiqueira, em Itanhandu. Trincou Veneza com a publicação de Electrica, revista editada pelos poetas Heli Menegale e Heitor Alves. Sobre Electrica, a revista de Antropofagia, n.9/1929, na coluna, 1 crítico e um poeta, comenta o “desembarque de arromba” do Movimento na cidade de 5 mil habitantes:

Electrica, revista editada pelos poetas Heli Menegale e Heitor Alves (Acervo: Cristina Silveira). No destaque, Pedro Nava e Drummond (Acervo: Correio Brasiliense)

“No quilômetro 47 da Rede de Viação Sul-Mineira fica Itanhandú. Em Itanhandú tem um ginásio e nesse ginásio ensina física e química um engenheiro da Politécnica do Rio, chamado Heitor Alves.

Na cidadezinha de queijos esse moço nervoso fundou a revista Electrica e escreveu o livro de versos A vida em movimento. Duas façanhas. Porque tanto o livro como a revista fazem questão de gritar seu modernismo. Com os limitados recursos de uma tipografia de Passa-Quatro, Heitor Alves desenhou um raio de todas as cores na capa do livro separando as letras de seu nome e do título, letras amarelas, vermelhas, verdes, azuis.

O movimento de 1922 levou assim alguns anos para chegar a Itanhandú. Em compensação teve um desembarque de arromba. Heitor Alves sozinho se incumbiu do hino nacional, dos foguetes, dos arcos de triunfo, do vivório, dos discursos e do resto.

Tamanha actividade festiva só podia partir de um convencido. E o autor de Sons além de ser um modernista, sem dúvida alguma tem muito jeito para catequista. Convenceu-se primeiro. Quer agora convencer os outros. De forma que é muito provável uma escola itanhanduana de poesia revolucionaria dentro de pouco tempo. Assim essa cousa ainda indefinida, mas já palpável que é a literatura nova vai ganhando o Brasil inteiro”.

Da “deglutição” de Heitor Alves em Itanhandu, o livro Humberto Werneck, O destino da rapaziada, conta histórias do comportamento libertário, “O homem novo”.

(… Professor do Ginásio Sul-Mineiro (Itanhandu) Heitor Alves dinamitou a rígida segregação dos sexos e entronizou a ousadia das classes mistas. Liberou o cigarro na sala de aula. Provocou estupefação na cidade ao levantar uma casa em forma de estrela de quatro pontas…)

(…Ao se casar com Amélia Guedes Alves, de um ramo empobrecido da família Scarpa, o criador de Electríca escandalizou duplamente a sociedade itanhanduense: por envergar um terno branco, …, e por não se limitar, como todos os noivos, a um casto beijo na testa – aos pés do altar, atracou-se a sua eleita num beijo cinematográfico…)

(…encasquetou batizar um filho como Homem (Heitor Homem)…)

(…A primogênita, no que dependesse do pai, teria tido por nome apenas a letra L – L de Liberdade, Lealdade, Literatura, justificava o poeta. Como o tabelião se recusasse a registrar com uma consoante um ser humano, Heitor Alves consolou-se com Helle (futura mãe do cineasta Leal Rodrigues, o diretor de Bete Balanço…)

(…Duas outras filhas de Heitor chamaram-se Vida e Poema e o caçula Ritmo. Vida Alves protagonizou, em 1951, nos braços de Walter Foster, em Sua vida me pertence, da TV Tupy, o primeiro beijo da telenovela brasileira.)

Em junho de 1927 Electrica apresenta Pedro Nava e publica um poema seu, Ventania, escrito na língua brasileira. Quatro meses depois, em setembro, na coluna O homem novo, publica o poema Infância, de Carlos Drummond de Andrade que, publicado pela primeira vez em dezembro de 1926 na Revista do Brasil, portanto a segunda publicação saiu na Electrica.

Ventania

Ventania, de Pedro Nava

Pedro Nava é um moço que estuda medicina em Belo Horizonte e vai dissecando a vida, num sarcasmo. Como Mário de Andrade, escreve na mesma língua nacional, que procuram estilizar aceitando as expressões crioulas. São versos movimentados.

O vento veio maluco do alto do Bonfim

E veio chorando de tristura do cimiterio.

Zunia na praça do mercado,

Assoviou as mulatas da avenida do Cómercio

e mexeu na saia délas.

Arrancou folhas das arvores

poeira assungou do chão

depois virou

soprou

correu

danou

e entrou feito uma carga na Avenida Afonso Pena.

O obelisco cortou ele pelo meio

mas ele foi avuando

e os fios do c.e.v.u. como cordas de vióla

vibraram dum som longo que cobrio Bélorizonte

feito um lamento.

O vento passou desmandado no Cruzeiro,

saio pro campo dobrou a mata

mas de repente

sua disparada para na parede serra do Curral

e o bicho stôpa mas sapeca no morro um supápo

que estrâla que nem jenipapo

que mão raiVosa

chimpasse num muro duro.

Co – nhe – ceu papudo?

Pedro Nava

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O Homem Novo

Carlos Drummond de Andrade na revista Eléctrica

Carlos Drummond de Andrade é uma das mais nítidas e vigorosas afirmações da poesia moderna do Brasil. Seu lirismo, disfarçado quase sempre em sátira, é intenso e de um fundo humaníssimo. Porém, é por pudor que essa alma difícil de analise se faz às vezes agressiva, pondo o amargo da mordacidade onde era de esperar-se o doce do enternecimento. Carlos Drummond de Andrade pertence ao grupo dos que declaram guerra ao bonitinho. Ele prefere ser muitas vezes rude, na sua forma livre, do que [melliflou] uma vez sequer. “Infância”, que hoje publicamos, é, porém, de alto a baixo, uma peça emotiva, sem o mínimo reponte satírico. É talvez, da obra de Carlos Drummond de Andrade, a fibra mais sensível, mais humana. A sua obra prima. Carlos Drummond de Andrade é um grande poeta brasileiro. (R.C.)

Infância

Infância, de CDA, na revista Eléctrica

Meu pai montava a cavalo, ia pro campo.

Minha mãe ficava sentada cozendo.

Meu irmão pequeno dormia.

Eu sozinho menino entre mangueiras

lia a história do Robinson Crusoé,

comprida história que não acabava mais.

 

No meio dia branco de luz uma voz que aprendeu

a ninar nos longes da senzala

e nunca se esqueceu

chamava pro café.

Café preto que nem a preta velha,

café gostoso,

café bom.

Minha mãe ficava sentada cozendo

olhando pra mim:

– Psiu… não acorda o menino.

Pro berço onde pousou um mosquito.

Dava um suspiro… que fundo!

Lá – longe meu pai campeava

no mato sem fim da fazenda.

Eu não sabia que minha história era mais bonita que a do Robinson Crusoé

Carlos Drummond de Andrade

Bello Horizonte

[Electríca, Revista Moderna e Ilustrada do Sul de Minas – Itanhandu-MG. Coleção Plínio Doyle, BN-Rio/pesqmcs1375]

 

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