O coração na árvore
Arte: Raymond Peynet (1908-1999), da França
Carlos Drummond de Andrade
Sr. Comissário de polícia:
Soube por um vespertino que V.S., passando por um jardim, deteve dois namorados que gravavam corações nas árvores. Estavam munidos de faquinhas nordestinas e tinham feito já apreciável serviço em dúzias de troncos.
Pelo portador, estou remetendo a V.S. um álbum do desenhista francês Peynet, que lhe peço aceitar a título de camaradagem cívica. Este lhe adoçará a vista e a carranca, e o ajudará a compreender por que motivo os namorados gravam corações, sempre os gravam, e os gravarão sempre.
O coração, sr. comissário, é um músculo amoroso por definição, mas tem o inconveniente de permanecer oculto. Daí as dúvidas sobre o seu estado afetivo: estará mesmo vibrando? ou, em certos casos, existirá coração dentro do peito, e não um simples despertador, uma coqueteleira um porta-agulhas?
Então, para demonstrar que o tem, e banhado em flamas, os pobres namorados se armam de estiletes, canivetes ou o que seja, e em modesta xilografia o figuram na casca das árvores – de jardins públicos, bem se vê pois ninguém na cidade é dono de árvore, salvo a Prefeitura e o espólio do saudoso Henrique Lage, que por sinal queria lotear o parque e acabar com as ditas.
Bote V.S. um jeito de se manifestarem os corações à evidência dos olhos e ao afago dos dedos, e as árvores deixarão de receber incisões, de que, aliás, elas gostam, sr. comissário (“Deus pôs almas nos cedros… no junquilho…” – informa Augusto dos Anjos). Ligá-las ao sentimento humano é preferível a cortá-las. Mas V.S. não tem poder, que Peynet revelou possuir, de visualizar coração.
Os namorados de Peynet são criaturas como quaisquer outras, no geral, mas basta-lhes desabotoar o paletó ou a blusa, e surgem duas janelinhas; por trás delas vemos os corações incandescentes. O desenho se intitula: À coeur ouvert.
Em outra imagem, para o qual peço a atenção de V.S., o rapaz, já com o coração na mão, o deposita na abertura da veneziana, como quem bota carta no correio, enquanto a moça o espia discretamente, lá dentro. Chama-se “Timidez”.
As namoradas fazem tricô com a lã de um coração empunhado pelos seus queridos, e daí resulta a confissão: “eu gosto de você”, repetida infinitamente em forma de suéter.
Quando brigam, põem os corações a secar no varal de roupa, tanto que eles escorrem lágrimas. E o rapaz, melancólico, balbucia: “Como se os nossos males de coração interessassem aos vizinhos da frente…”
– Escute querido, como ele está batendo – diz outra garota ao telefone. E põe o aparelho no peito, onde um cupidinho toca tambor, como um desvairado, nas paredes do coração.
Dois namorados rotos e em pranto levam um coração à Caixa de Penhores, e na balança ele resplandece: “Un coeur d’or.”
V.S. achará menos protocolares outras invenções do desenhista na mesma ordem mágica: verbi gratia, a moça apresentando duas laranjas ao namorado, que as embala ternamente (sempre num banco de jardim), enquanto ela explica: “É porque v. me merece confiança, eu não costumo emprestar nada…”
Ou esse jovem que toca flauta, acompanhando a partitura traçada nas ligas da jovem, entre pombas, aves e flores.
Ou ainda a empregadinha da seção de informações do “magasin”, a quem o moço pergunta onde fica a seção de brinquedos: a rendinha de sua lingerie se desprende e toma a forma de um trenzinho de ferro, na direção desejada.
São fantasias, sr. comissário. Na vida, ninguém pode realizá-las. Então, os namorados recorrem a símbolos gráficos. Compreenda-os e, em lugar de detê-los, se possível, ofereça-lhes um buril.
[Revista: Leitura (RJ), 1960. Hemeroteca da BN-Rio – Pesquisa: Cristina Silveira]