“Não é o Brasil que é da Vale. É a Vale que é do Brasil. Não é o Brasil que tem que prestar conta para a Vale, é a Vale tem que prestar conta para o Brasil”

Foto: Ricardo Stuckert/PR

Em uma longa entrevista ao jornalista Kenndey Alencar, da RedeTV!, na terça-feira (27), o presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) discorreu sobre o papel da Vale, que, segundo ele, deixou de ser propulsora do desenvolvimento nacional após a privatização.

Mas antes, Lula aborda outras questões nacionais e internacionais, como é o caso de seu posicionamento sobre o genocídio do Estado de Israel contra os palestinos na faixa de Gaza.

Eu não utilizei nem a palavra Holocausto. Holocausto foi interpretação do primeiro-ministro de Israel, não foi minha. A segunda coisa é o seguinte, morte é morte. Fomos o primeiro país a condenar o gesto terrorista do Hamas”, disse ele.

Sobre o processo de sucessão do atual presidente da Vale, Eduardo Bartolomeo, Lula também explicou a sua posição.  “Eu não discuto sucessão na Vale e nem a Vale. Eu discuto a questão mineral no país”, disse o presidente, para quem a mineradora deixou de ser uma empresa voltada para o desenvolvimento econômico e social do país.

“A Vale está tendo problema no estado do Pará e no estado de Minas Gerais. Não pagou as desgraças que eles causaram em Brumadinho, não construiu as casas que prometeram, criaram uma fundação para cuidar para a Vale tirar e agora fica fazendo propaganda como se fosse a empresa que mais cuida desse país quando, na verdade, é só perguntar para os mineiros, é só perguntar para os paraenses.”

“O que nós queremos é que a Vale tenha mais responsabilidade, inclusive a quantidade de minas que está na mão da Vale e que ela não explora há mais de 30 anos e fica funcionando como se fosse dona e vendendo. A Vale, ultimamente, está vendendo mais ativo do que produzindo minério de ferro. E ela está perdendo o jogo para algumas empresas australianas. Então, o que nós queremos é ter uma nova política mineral.”

Na entrevista, Lula não cita, mas poderia fundamentar o seu raciocínio com o “negócio da China” que foi para a Anglo American do Brasil a incorporação da mina de Serpentina, em Conceição do Mato Dentro, à Minas-Rio.

Pela negociação, a Minas-Rio, a Anglo incorpora 4,3 bilhões de toneladas de itabirito friável da mina da Serra de Serpentina, pertencente à Vale, ao complexo minerador local. Em troca, a Vale passa a ter apenas 15% do empreendimento minerário da Anglo em Conceição do Mato Dentro.

A incorporação foi considerada bastante positiva para a multinacional anglo americana, que passará a “processar um material friável da Serra da Serpentina, mais fácil de ser processado e beneficiado, pois é menos compacto, com teor médio de 40% de ferro, bem mais valorizado que os recursos remanescentes do empreendimento original, com itabiritos mais pobres, com teor de ferro na ordem de 32%”, conforme ressaltou CEO da Anglo, Ana Sanches.

Leia mais sobre essa “transação minerária” aqui:

Após negociar minério da Serra Serpentina com a Anglo, Vale dá início a processo de licenciamento ambiental para ampliar minas de Itabira

Por ocasião da privatização da Vale, em 6 de maio de 1997, pressionada pela opinião pública que viu a então estatal ser privatizada a preço de banana, a União instituiu as debentures participativas, incluindo todos os títulos minerais da empresa.

Foram criadas as ações Golden Share, que asseguram o direito de veto em caso de mudança de nome, o que a União não exerceu quando isso aconteceu, como também sobre vendas de jazidas. Talvez seja hora de o governo fazer uso desses dispositivos legais.

Leia a íntegra da entrevista de Lula à Rede TV. O trecho em que ele fala da Vale está no final e está dando grande repercussão. (Carlos Cruz)

Kennedy Alencar: Olá, boa noite! No “É Notícia” hoje tem uma entrevista especial com o presidente Lula. Presidente, boa noite pro senhor.

Presidente Lula: Boa noite, Kennedy.

Kennedy Alencar: Obrigado por nos dar essa entrevista, viu presidente. Prazer…

Presidente Lula: Prazer é meu. Falar com você sempre é um prazer pra mim.

Kennedy Alencar: Com o senhor também. Sabe o respeito e o carinho que eu tenho pelo senhor. Presidente, o senhor fez no ano passado uma cirurgia no quadril, tem a recuperação. Como é que tá a saúde, como é que estão os exercícios, como é que o senhor está se sentindo? Tem toda uma maratona de viagem aí que o senhor continua fazendo.

Presidente Lula: Kennedy, primeiro eu sofri muito tempo com medo de fazer a cirurgia, porque eu sempre tive medo de anestesia. Eu não sei, é que um dia eu vi uma notícia de um jogador que foi no dentista e ele foi tomar uma anestesia e morreu. Então, eu fiquei com medo de anestesia. Eu sofri muitos anos com essa dor. E fiz a campanha toda com muita dor. Era insuportável. Aquela hora que eu aparecia pulando em cima no carro de som, aquilo de noite eu não conseguia dormir porque não tinha posição correta.

Kennedy Alencar: Atrapalha pra governar?

Presidente Lula: Não atrapalha. Eu chegava aqui de mau humor, almoçava de mau humor, ia embora de mau humor. Ninguém consegue conviver com dor o tempo inteiro. E aí eu fui convencido que eu deveria fazer a cirurgia. O médico me disse o seguinte: “presidente, essa é uma cirurgia que é o paciente quem decide. Quando o senhor não suportar mais a dor, vamos fazer a cirurgia”.

Aí um belo dia eu telefonei pro doutor Kalil. Falei: “Kalil, eu quero fazer a cirurgia”. E foi uma coisa interessante, porque eu fiz a cirurgia no dia 29 de setembro. Era uma sexta-feira à noite. Na segunda-feira, eu já estava dando passo com a muleta e quando eu saí do hospital eu subi oito degraus numa escada. E hoje eu me sinto totalmente recuperado.

Kennedy Alencar: Retomou a rotina de musculação.

Presidente Lula: Totalmente. Eu faço ginástica todo dia, eu levanto 5h30, quinze para as seis, faço uma hora de esteira todo dia, faço agachamento, faço perna, faço braço, todo santo dia. Porque é o seguinte, eu quero viver até 120 anos e se eu não me cuidar, a natureza vai cuidar de mim.

Kennedy Alencar: A anestesia é uma coisa segura, bem feita.

Presidente Lula: Hoje eu tô consciente que as pessoas não têm mais que ter medo da anestesia, porque está uma coisa muito moderna, muito tranquila e eu acho que as pessoas que tinham medo que eu tinha, por favor pare de ter medo, crie coragem e faça a cirurgia. Depois que eu fiz a minha cirurgia, o doutor Kássio, que é o ministro da Suprema Corte, fez com o mesmo médico, a mesma cirurgia.

Eu já conheço mais três pessoas que já fizeram. De vez em quando encontro uma pessoa que fala: “presidente, eu vou fazer minha cirurgia”. O Guimarães fez. Então, é o seguinte. Ninguém pode ficar com dor a vida inteira. É uma cirurgia totalmente dominada pela ciência médica, então é uma coisa tranquila. Hoje eu posso te dizer que, se durante a campanha eu dizia que eu tinha 70 anos de idade, 30 de energia e tesão político de 20, hoje eu estou com energia de 25 e o tesão político continua o mesmo.

Kennedy Alencar: Vamos passar agora para um assunto internacional. Nas últimas duas semanas, teve uma enorme repercussão uma fala do senhor a respeito da guerra em Gaza. O senhor, textualmente, disse o seguinte: “O que está acontecendo na Faixa de Gaza e com o povo palestino não existe em nenhum outro momento histórico. Aliás, existiu quando Hitler resolveu matar os judeus”.

A gente sabe que genocídios aconteceram em outros momentos da história. A escravidão, a morte dos negros na travessia do Atlântico, o genocídio indígena nas três Américas, as potências imperialistas na África. E a gente sabe que o Holocausto teve um método, uma crueldade, um planejamento.

Historiadores dizem que é uma coisa muito especifica que não caberia uma comparação. E a partir do Holocausto se discutiu a Declaração Universal dos Direitos Humanos. Aquilo é um ponto de virada na forma de respeito aos direitos humanos. E depois da Segunda Guerra, daquela tragédia, isso mudou o mundo.

O próprio Jaques Wagner, judeu, seu amigo, falou: “olha, o presidente defende a paz lá, mas as palavras podem ferir, eu mesmo ia me sentir ferido”. Eu pergunto pro senhor sobre esse tema, presidente. O Netanyahu pediu uma retratação e tal. Se o senhor voltasse no tempo, o senhor tem algum reparo, diria de alguma outra maneira…

Presidente Lula: Eu diria a mesma coisa.

Kennedy Alencar: Por quê?

Presidente Lula: Porque é exatamente o que está acontecendo na Faixa de Gaza. A gente não pode ser hipócrita de achar que uma morte é diferente da outra. Você não tem na Faixa de Gaza uma guerra de um exército altamente preparado com outro exército altamente preparado. Você tem, na verdade, uma guerra de um exército altamente preparado contra mulheres e crianças.

Porque, das seis mil pessoas feridas, você tem 30 mortos, 80% mulheres, oito mil crianças, além de oito mil desaparecidos. Quantas pessoas do Hamas já foram apresentadas mortas? Ou seja, você inventa determinadas mentiras e passa a trabalhá-las como se fossem verdade.

Primeiro, eu não utilizei nem a palavra Holocausto. Holocausto foi interpretação do primeiro-ministro de Israel, não foi minha. A segunda coisa é o seguinte, morte é morte. Eu e o Brasil nós fomos o primeiro país a condenar o gesto terrorista do Hamas. O primeiro país. Mas eu não posso condenar o gesto terrorista do Hamas e ver o Estado de Israel através do seu exército, do seu primeiro-ministro, fazendo com inocentes as mesmas barbaridades.

Ou seja, o que que nós estamos clamando? Que pare, que parem os tiroteios, que permitam que tenha a chegada de alimento, de remédio, de médico, de enfermeiro para que a gente tenha um corredor humanitário e tratar das pessoas. É isso. Agora veja, eu não esperava que o governo de Israel fosse compreender. Eu não esperava. Porque eu conheço o cidadão historicamente já há algum tempo, eu sei o que ele pensa ideologicamente.

Kennedy Alencar: Mas não é importante separar o Estado de Israel do povo judeu?

Presidente Lula: Eu separo.

Kennedy Alencar: Porque a comparação, no entender de entidades judaicas, comunidade judaica, causou dor, causou uma ofensa. Não é importante separar?

Presidente Lula: É o seguinte, não é só um lado que tem dor. Todo mundo tem dor. Primeiro que eu separo bem. Eu sou o primeiro presidente da República a visitar o Estado de Israel, quando ninguém visitava fui visitar Israel. Segundo, eu fiz muitas reuniões com o povo judeu, muitas reuniões. Eu visitei Kibutz, eu fiz reuniões com as pessoas que tinham famílias sequestradas agora.

E eu nunca misturo o povo com o governo. Eu nunca misturo a atitude do povo com atitude de um governante. Nunca misturo. E o que eu quero dizer em alto e bom som é o seguinte: o primeiro-ministro de Israel está praticando genocídio contra mulheres e crianças. E esse é o dado histórico.

Kennedy Alencar: E o entendimento sobre o genocídio, no Estatuto de Roma, no artigo segundo, diz que o genocídio é uma tentativa de exterminar o povo totalmente ou em parte. O Silvio Almeida esteve na ONU, sustentou os argumentos, já tem reclamação na ONU dizendo “está em curso o genocídio lá”. Os Estados Unidos não consideram que é um genocídio, até porque eles dão muito apoio logístico a Israel. Por que é que o senhor considera que é um genocídio, presidente?

Presidente Lula: Eu considero o genocídio porque é um Exército amplamente armado, atacando uma parte da sociedade indefesa. Olha o que está acontecendo aos olhos do mundo. O governo de Israel, ele quer efetivamente acabar com os palestinos na Faixa de Gaza. É isso. É exterminar aquele espaço territorial com o povo palestino para que eles ocupem.

É isso, não tem outra explicação. São dois milhões de pessoas que moram numa área, aproximadamente, com menos de 400 quilômetros quadrados. Acho que é menor do que São Bernardo do Campo, e mora dois milhões de pessoas apinhadas ali passando necessidade. É só você ler o depoimento do diretor dos Médicos Sem Fronteiras, que você vai ver o que está acontecendo, pega o depoimento do…

Kennedy Alencar: Operando criança sem anestesia, fome.

Presidente Lula: Pega depoimento da Cruz Vermelha, pega a criança dizendo que prefere morrer do que ser tratado do jeito que estão sendo tratados, sem anestesia. Ora, isso é genocídio ou não é genocídio? Ou eu vou esperar tipificar esse tipo de genocídio. Não. Genocídio para mim é quando alguém está matando (pessoas indefesas).

Eu, por exemplo, acho que o Bolsonaro poderia ser tipificado como genocida por conta da pandemia do Covid, porque ele fez propaganda de remédio falso, ele mentiu o tempo inteiro na televisão, ele desafiou a ciência durante muito tempo. Então é apenas a questão de alguém entrar com um processo e tipificar que tipo de crime é e esperar justiça. É importante lembrar que o tribunal internacional já julgou Israel. Acontece que Israel não obedece.

Kennedy Alencar: O senhor, como líder, quis chamar a atenção para o problema e não se calar diante de um genocídio, da responsabilidade.

Presidente Lula: Não ficarei silencioso diante do genocídio. A minha luta contra a desigualdade racial, a desigualdade educacional, a desigualdade da fome, a desigualdade de renda, a desigualdade de cor passa também pela luta contra a guerra da Ucrânia e contra a guerra de Gaza.

Porque veja, eu fui contra a guerra do Iraque. No Iraque se inventou uma mentira que o Saddam Hussein tinha armas químicas para invadir o Iraque. Isso eu não era nem presidente ainda. Eu fui convidado pelo Bush em dezembro de 2002.

Kennedy Alencar: Eu cobri essa viagem pela Folha com o senhor em dezembro de 2002.

Presidente Lula: Então, você veja, naquele tempo se dizia que tinha armas químicas no Iraque, que era preciso acabar com Saddam Hussein. Pegaram o Saddam Hussein, enforcaram Saddam Hussein, destruíram o Estado e cadê as armas químicas até hoje?

Quem dizia que não tinha era o Bustani, que era embaixador brasileiro e era diretor da agência. Aí fizeram a mesma coisa com a Líbia, num momento em que o Gaddafi já não oferecia perigo a ninguém. Ou seja, entraram e sem pedir pelo Conselho de Segurança. Porque todas essas guerras, ninguém pede para o Conselho de Segurança. O Putin invadiu a Ucrânia, não pediu pro Conselho de Segurança.

Os Estados Unidos invadiram o Iraque. A Inglaterra e a França invadiram a Líbia sem pedir. Ora, agora o Conselho de Segurança já tomou várias decisões. Vamos lembrar da decisão quando o Mauro Vieira era presidente. Nós tivemos 12 votos favoráveis à proposta do Brasil, nós tivemos dois votos neutros e um voto contra, de quem? Dos Estados Unidos, que vetou. Essa semana passada, outra vez uma decisão: treze votos favoráveis à moção, um voto contra, dos Estados Unidos, e um veto.

Kennedy Alencar: Esse é o ponto, presidente, como é que vai acabar? Tem um ataque iminente para ser feito em Rafah, no sul de Gaza, para onde a população foi deslocada. O Biden está dizendo: “olha, deve haver um cessar-fogo”. Os Estados Unidos, eles dão apoio a Israel. O fim da guerra não passa pelo Biden interromper o apoio que ele dá ao Netanyahu?

Presidente Lula: Eu não sei se o Biden hoje tem a força que os Estados Unidos já tiveram com relação a Israel. Sabe que o passarinho, quando ele nasce, ele depende do pai colocar comida na boca dele, da mãe. Mas quando ele aprende a bater a asa e começa a voar, nem sempre ele obedece e fica esperando.

Se eu poderia ligar essa questão das duas guerras que estão acontecendo neste momento e o conflito que pode ter agora entre Venezuela e Guiana, conflito que está acontecendo na África, entre o Sudão. Ou seja, nós temos problema que é o seguinte, não tem mais governança mundial.

A ONU, quando foi criada, depois da Segunda Guerra Mundial, ela tinha como pretexto ser um ponto de equilíbrio da paz mundial. Ela perdeu referência. Hoje, ninguém obedece mais uma decisão da ONU, a não ser um país pequeno, um país menor, mas os países grandes cada um faz o que quer.

Kennedy Alencar: A mudança principal é acabar com o poder de veto no Conselho de Segurança?

Presidente Lula: Não, não é só o poder de veto. Tem que mudar a representatividade. Não tem explicação a gente continuar com a mesma geopolítica de 45. A América Latina pode ter dois ou três, a África pode ter dois ou três, a Índia tem que entrar. Por que a Alemanha não pode entrar? Pode entrar. O Japão pode entrar.

Então, o que eu acho é que preciso mudar a geopolítica que compõe o Conselho de Segurança da ONU e acabar com direito de veto para que a gente compreenda a seguinte questão: não é só para tratar de guerra. Nós temos temas outros importantes para a humanidade.

Kennedy Alencar: Emergência climática, ameaça de extinção da humanidade.

Presidente Lula: Para a humanidade, que é a questão climática. Ou seja, quando você discute uma decisão sobre a questão climática, você tem que levar em conta que, se você permitir que essa decisão, para ser cumprida, tem que passar pelo Estado nacional, ela não vai ser cumprida. Os Estados Unidos, até hoje não aprovou o Protocolo de Quioto.

Então, o que eu acho é que você tem que ter uma governança global que em determinados assuntos a gente toma a decisão, aí sim compensa a ONU ter força para tomar a decisão, se for o caso, até fazer um bloqueio econômico contra um país que não quer cumprir uma decisão de preservar a floresta, que não quer tomar decisão de parar de utilizar combustível fóssil.

Mas nós temos que ter força para tomar essa decisão. Se não, o que acontece, desde a demarcação da terra de Israel, em 1967, com a terra dos palestinos, quantas vezes já foi descumprido? Quantas vezes já foi ocupado esse espaço? Ora, não é uma vez não. São dezenas e dezenas de vezes. Então a ONU não tem força para fazer cumprir. Quanta gente já ganhou o Prêmio Nobel da Paz falando em paz em Israel?

Kennedy Alencar: E a solução que o senhor já falou. Dois Estados no mesmo território. Como viabilizar isso, presidente?

Presidente Lula: Veja isso, o que eu tenho dito é o seguinte: a ONU precisaria hoje ter a mesma força que ela teve quando criou o Estado de Israel para criar e fazer acontecer. Dar garantia. Você não pode dar um território para os palestinos e todo dia alguém invadir aquele território e vai diminuindo, e vai diminuindo e vai matando gente, seja em Gaza ou seja na Cisjordânia. Os relatos estão aí pra todo mundo ver.

Ora, isso não significa você implicar com ninguém. Significa você querer estabelecer uma política de paz no mundo. O problema é que todo mundo que começa a luta acha que tem razão e não tem razão. Não tem razão. A razão a gente vai encontrar numa mesa de negociação, quando as pessoas sentarem na mesa de negociação. Eu, há dois anos, estou falando que a questão da Ucrânia e da Rússia tem que sentar numa mesa de negociação.

Na hora que você começa a guerra, ninguém quer parar. Você só vai parar quando perceber que o desastre e o prejuízo são infinitamente irrecuperáveis. E agora a gente já começa a perceber e falar em paz. A gente já começa a perceber. O Zelensky já mandou embora o comandante que falou que era preciso começar a negociar. A gente já vê que a Rússia começa a falar que está disposta a negociar.

O importante é que os Estados Unidos e a Europa estabeleçam também como prática a negociação. Eu não quero derrotar a Rússia de qualquer jeito. Vamos sentar para conversar e vamos ver o que a gente pode fazer, sem precisar dar tiro. Essa tem sido a proposta do Brasil. Essa tem sido a nossa defesa na ONU e eu vou continuar defendendo isso porque não é possível você fingir que as coisas não estão acontecendo no mundo.

Eu cada vez que vejo, porque eu não sei se você sabe, a imprensa não tem divulgado as fotografias. Aliás, desde a Guerra do Vietnã, quando os Estados Unidos perderam a guerra, não só por causa do general Giáp, mas por causa da opinião pública dos Estados Unidos, que começou a ficar contra a guerra. Então, o que aconteceu? Então você já não mostra mais o genocídio, você já não mostra mais as mortes, a violência.

Kennedy Alencar: A coisa vira com os papéis do Pentágono, quando são revelados segredos, em que os Estados Unidos narram…

Presidente Lula: Não, mostra um foguete à noite brilhando que vai explodir, mas não mostra vítima. O que a gente tem visto de fotografia é na rede social e é uma barbaridade. Esses dias a Janja perguntou para a jornalista: “por que não publica essa foto?”. “Ah, porque essa foto é muito chocante.”

Ora, é chocante ver uma menina palestina morta? É chocante ver uma criança palestina sendo operada sem anestesia, quatro, cinco dias sem ter o que comer? Isso é chocante? Da mesma forma que é chocante 735 milhões de seres humanos não terem o que comer todo dia. Da mesma forma que é chocante as pessoas ficarem como nômade, correndo o planeta, tentando encontrar um lugar para trabalhar e para comer.

Tudo isto por quê? Tudo isso porque o mundo está ficando cada vez mais injusto, a concentração de riqueza está cada vez aumentando mais e porque nós não temos governança global que dê uma certa parada nisso. Ou seja, é preciso que haja uma reorientação política para que o mundo possa construir paz. Senão, se prevalecer a tese olho por olho, dente por dente, não vai sobrar ninguém.

Kennedy Alencar: Presidente, a relação do Brasil com os Estados Unidos vai além dessa questão de Gaza e da Ucrânia. O senhor esteve com Antony Blinken, recentemente, secretário de Estado dos Estados Unidos, e tem uma boa relação com o Biden, visitou ele depois de eleito. Tem eleição nos Estados Unidos neste ano. O Biden deverá ser candidato contra o Donald Trump. Javier Milei da Argentina já encontrou Trump e declarou apoio ao Trump. Eu pergunto para o senhor: qual será a posição do Brasil em relação à eleição americana entre o Biden e o Trump?

Presidente Lula: Kennedy, seria, da minha parte muito, muito presunçoso tentar dizer que eu tenho candidato nos Estados Unidos. Eu sou um amante da democracia e eu digo sempre que eu sou o resultado da democracia. Eu só estou na presidência brasileira porque este país um dia resolveu acreditar na democracia. Resolveu fazer o sistema de votação pela urna elétrica, que permitiu que um metalúrgico virasse presidente da República, que uma mulher que tinha sido presa e condenada pelo regime militar virasse presidente da República.

Agora, este sistema está sendo negado pelos golpistas, aliás, que fizeram um ato, domingo passado, em São Paulo, para protestar contra a democracia, porque têm gente deles presos, eles não foram nem julgados ainda. Eles estão presos como garantia da paz e da ordem deste país. Ainda não se descobriu quem é que mandou, quem financiou, porque houve uma tentativa de golpe e quando um cidadão vai lá pedir anistia, ele está dizendo: “Não, perdoe os golpistas”. Tá confessando o crime.

Então, o que eu acho é o seguinte: eu fico torcendo e pedindo a Deus que os Estados Unidos consiga se manter da forma mais democrática possível. Você sabe que eu tive boa relação com o Bush. O Fernando Henrique Cardoso teve uma extraordinária relação com o Clinton. Eu tive uma boa relação com Obama. Eu tenho uma boa relação com o Biden e eu espero que o Biden ganhe as eleições.

Eu espero que o povo possa votar em alguém que tenha mais afinidade. Eu tenho visto Biden na porta de fábrica. O discurso do Biden, desde o começo até agora, em defesa do mundo do trabalho, o acordo que ele fez conosco de tentar estabelecer a criação de uma política de trabalho decente, é tudo que eu quero para os Estados Unidos, para o Brasil e para o mundo.

Então, não tenha dúvida, eu obviamente acho que o Biden é mais garantia para a sobrevivência do regime democrático no mundo e nos Estados Unidos. É isso que eu acho, porque se a gente não tomar cuidado, a gente está percebendo a extrema-direita, vestida de fascista, de nazista, de tudo que é “ista” que você possa imaginar.

Ela vem ganhando corpo. E ela não tem limite para mentir. É a primeira vez na história da humanidade em que a gente vai ter que conviver, tendo que levantar, de manhã, de tarde, de noite, combatendo mentira. É impressionante a coisa, o fanatismo, a quantidade de mentira…

Kennedy Alencar: A tarefa civilizatória, presidente, é derrotar, isolar a extrema direita?

Presidente Lula: Eu acho que nós temos que isolar a extrema-direita e fortalecer o regime democrático. Fortalecer o regime democrático significa a gente fortalecer as instituições. Nós temos que fortalecer o funcionamento das nossas instituições. Você pode ter divergência com o Poder Judiciário – e é importante que se tenha divergência –, mas é importante que a gente não negue o papel que tem a Suprema Corte no cumprimento da nossa Constituição.

É importante que a gente não negue o papel da Câmara, o papel do Senado. É importante que a gente não negue o papel das instituições de fiscalização que nós temos no Brasil, porque é isto que garante que não tem autoritarismo. É isso que garante que a democracia sobreviva. E é por conta disso, Kennedy, que eu brigo o tempo inteiro.

É preciso fortalecer o sistema democrático. E, quando a gente fala em fortalecer o sistema democrático, nós temos que entender que a democracia passa por garantir o direito das pessoas tomarem café, almoçar e jantar todo dia. Das pessoas estudarem, das pessoas trabalharem. Das pessoas terem acesso à cultura, ao lazer.

Isto chama-se democracia. E, ao mesmo tempo, chama-se você respeitar o direito de divergência do outro. Ninguém é obrigado a concordar com todo mundo, mas você precisa aprender a conviver democraticamente na diversidade. Eu convivo com palmeirenses. Eu convivo com a Janja, que é flamenguista doente. E eu sou vascaíno no Rio. E eu convivo bem. Eu tenho muitos amigos palmeirenses, eu sou corintiano e eu convivo bem. Ou seja, porque, senão, você vive em uma eterna luta, todo santo dia.

Kennedy Alencar: Presidente, o senhor falou da manifestação de domingo. Além da mentira de que o Bolsonaro convocou o ato para defender o Estado Democrático de Direito, porque ele tentou dar um golpe. Ele se disse perseguido politicamente pelo Supremo. A gente não deve subestimar a manifestação. Havia 185 mil pessoas, segundo a USP, ali. Eles têm uma capacidade de mobilização, sim. O fascismo e o golpismo são ameaças, ainda, à democracia brasileira.

O senhor já comentou sobre a anistia, que ele pediu uma anistia. Quem pede anistia está confessando que houve crime. Ele também, presidente, ele fala sobre a minuta golpista e tenta minimizar, dizendo: “Eu estava dentro da Constituição”. A Polícia Federal já vê aquilo como uma confissão de que ele estava referendando uma minuta golpista.

Não tem minuta golpista que permita pedir prisão de ministro do Supremo e anular o resultado da eleição. Eu quero, primeiro, do senhor, o seguinte: uma análise do potencial político do risco da extrema-direita, se o senhor achou que foi uma manifestação relevante. E, depois, que efeitos jurídicos podem ter para o Bolsonaro.

Presidente Lula: Ô, Kennedy, primeiro, é o seguinte: Não é possível você negar um fato. Eles fizeram uma manifestação grande em São Paulo. Mesmo quem não quiser acreditar, é só ver a imagem, que é uma manifestação grande. Como as pessoas chegaram lá, como chegaram lá, é outros quinhentos. O dado concreto é que foi uma manifestação em defesa do golpe.

Eles todos estão com muito medo, com muito cuidado, acho que tinha até um teleprompter para eles não falarem nenhuma palavra que pudesse confundi-los. Ou seja, confundindo até o Estado de Israel, de 5 mil anos atrás, com o Israel de agora. Uma coisa meio alucinante.

Mas, de qualquer forma, é importante a gente ficar atento. Essa gente está demonstrando que eles não estão para brincadeira. Eles querem, sabe, continuar muito forte, não é só no Brasil, não; é no Brasil, na América Latina, na Europa inteira, eles estão ganhando corpo, negando o quê? Negando a democracia, negando as instituições. E falando as maiores barbaridades possíveis.

Kennedy Alencar: Teve discurso contra a vacina.

Presidente Lula: Eles não têm nexo, não têm limite. Vale qualquer mentira. Esses dias eu estava vendo um vídeo, alguém me mostrou um vídeo. Um cidadão, que eu não sei quem é, dizendo que eu estou morto. “Não, o Lula está morto”. “Esse aí já é o quarto sósia dele”.

Kennedy Alencar: Não dá para levar isso a sério.

Presidente Lula: Mas isso é veiculado na televisão, nas redes sociais, como se fosse verdade. Essas e outras mentiras absurdas e mais absurdas. Ou seja, como é que você vai combater isso se você não tiver uma decisão que não é só de um país, é do sistema ONU, para que a gente possa controlar as chamadas empresas de aplicativos naquilo que diz respeito à violência contra a democracia, a violência contra as pessoas.

Ou seja, porque você não pode confundir liberdade de você dizer as coisas sérias com a liberdade de você provocar as pessoas ao suicídio, levar crianças a se mutilarem, como tem acontecido.

Então é preciso que a gente discuta isso a nível internacional, a ONU está discutindo isso. Nós achamos que a gente vai ter que discutir esse assunto no G20, depois a gente vai ter que discutir nos BRICS, a gente vai tem que tentar ver se em uma dessas Assembleias Gerais da ONU a gente dedique pra discutir isso.

O dado concreto é que a humanidade está virando vítima dos algoritmos. Ou seja, ela está sendo manipulada com inteligência artificial, como jamais aconteceu em qualquer outro momento da história da humanidade. Ora, se isso não preocupa os democratas do mundo, a mim me preocupa.

Kennedy Alencar: Presidente, Bolsonaro falou de anistia e falou: “olha, eu quero passar uma borracha sobre o passado para pacificar”. Você acha que o Bolsonaro merece anistia?

Presidente Lula: Deixa eu te falar, ele não foi nem julgado. Gente, como é que alguém começa a pedir anistia antes de ser julgado? Tá numa fase de inquérito. As pessoas são meia dúzia que foram julgadas, o restante ainda está todo mundo sendo investigado. Tem que terminar o processo, as pessoas têm que ser ouvidas, tem muita gente ainda para ser investigada, ainda está se levantando quem financiou.

O cidadão está pedindo anistia antecipada. Ou seja, não é assim. Você primeiro vai ser julgado, cometeu muita barbaridade, você vai ser julgado, você vai ser apreciado, você vai ter seu advogado de defesa. Eu só quero que você tenha a presunção de inocência que eu não tive. Eu quero que você tenha pra você dizer o que você fez, o que você não fez. É um direito seu, é um direito da democracia.

Sabe, pro meu melhor amigo e pro meu pior inimigo: o direito de defesa pleno, mas tem que ser ouvido. Tá pedindo anistia? Quer apagar a bobagem que fez? A bobagem é que ele se acovardou, pensou no golpe, não teve coragem, foi embora para os Estados Unidos com antecedência, achando que ia acontecer, e que a sociedade iria sair todo mundo apavorado e ele ia voltar dos Estados Unidos ungido pelas massas. O que não aconteceu.

O que aconteceu? É que as instituições assumiram a responsabilidade pela democracia e você agora está num processo de investigação, você prestou o primeiro depoimento seu, vai prestar outro depoimento. Eu sei que quando o cara é covarde, ele não fala. Quando o cara é covarde e vai prestar depoimento, o advogado fala: “não fala nada, não fala nada”.

E eu sei que ele ficou quietinho, com a boca fechada. Porque ele fala bobagem o dia inteiro. Falava bobagem quando era presidente de manhã, de tarde, de noite, levantava 4 da manhã pra fazer as fake news dele. Agora no processo ele chega todo mofino, todo brando, sem querer falar. Então é isso que vai acontecer, vai ser investigado, vai ter depoimento, e, um belo dia, vai ter um julgamento. Se você for inocente, você é inocente. É vida que segue.

Kennedy Alencar: O senhor falou que foi um ato para defender o golpe. A gente está falando da extrema-direita e do autoritarismo dela. E da importância de o Brasil ter uma direita democrática e uma alternância de poder. A gente viu no palanque o Tarcísio de Freitas, governador de São Paulo.

O senhor esteve recentemente com ele em uma relação muito civilizada do ponto administrativo e político. Esteve com Zema, havia outros políticos. Como o senhor avalia a presença de figuras, governadores de Estado, como Tarcísio de Freitas e o Caiado, num ato que o senhor mesmo disse que foi para defender o golpe?

Presidente Lula: Olha, primeiro essa gente toda, tinha até obrigação de estar lá, porque essa gente toda só foi eleita por conta do Bolsonaro. Eles sabem disso. O Tarcísio sabe que ele só foi eleito pelos votos do Bolsonaro. O Tarcísio era uma figura completamente desconhecida em São Paulo. Mesma coisa o Zema.

O Caiado já era uma figura mais conhecida. Mas ele também teve apoio. Eu não vejo nenhum problema de eles estarem lá. Quando nós fizemos a campanha das diretas, estava cheia de governador de estado participando, eu acho isso importante. O que eu acho é que os discursos, como nem todo mundo fez discurso, os discursos foram muito vaselina.

O discurso era um discurso recomendado pelos advogados. “Olha, cuidado com as palavras, não fale nada que possa depor contra uma instituição, não fale nada que possa depor contra a democracia.” Então parecia um colégio de iniciantes.

Mas o dado concreto é que o ato foi feito para defender os golpistas. Esse é um dado concreto. O ato foi feito para defender, eles querem dar uma dimensão política, de democracia ao que eles faziam e não o que fez a Suprema Corte, porque o que eles querem passar, na verdade, é isso. A democracia é do jeito que eles queriam.

Kennedy Alencar: O Alexandre de Moraes falou que tem que estar vigilante, que não pode ser como o Bambam que apanhou do Popó em 36 segundos. Tem que ter vigilância.

Presidente Lula: É isso, é isso. Eu nem lembrava porque eu não assisto isso. Mas é um pouco do jeito do Bambam, o fortão, achando que pode tudo e vamos lá. Agora que a porca entortou o rabo, os bichinhos estão pianinho. Agora é democracia, agora é Estado de Paz.

Eles não têm paz. Eles mentem o tempo inteiro, mentem o tempo inteiro, mentem. Se a gente pudesse medir por quilômetro quadrado a quantidade de mentiras que eles contam, a gente daria uma volta em todas as galáxias, e ainda sobrava mentira.

Então, deixa eu te falar, Kennedy, deixa eu te falar uma coisa e aproveitar a oportunidade dessa entrevista. O problema é o seguinte: eu, quando concorri às eleições, tinha como missão recuperar esse país. E meu objetivo é recuperar esse país.

Kennedy Alencar: Nós vamos falar disso, sobre a economia.

Presidente Lula: Quando chegar dia 31 de dezembro de 2026, eu quero mostrar como é que está esse país em comparação com o país que eu encontrei. Como é que está o nível de emprego, como é que está o nível de escolaridade, como é que está a qualidade da educação, como é que estão as universidades, como é que estão os centros de pesquisa desse país, como é que está a qualidade da comida.

Eu quero mostrar isso. Eu quero fazer uma diferenciação entre a democracia exercida plenamente com a participação do povo e o desgoverno que dizia altamente: “Eu não entendo de economia, não entendo de política, quem manda é não sei quem. E que resolveram privatizar as empresas públicas para fazer fundo para gastar durante o ano eleitoral.

Se você um dia conversar com o pessoal da equipe econômica, você vai perceber que eles utilizaram quase 60 bilhões de dólares para tentar ganhar as eleições. Eu estou falando de 60 bilhões de dólares, o equivalente a 300 bilhões de reais. Com a quantidade de distribuição e de desoneração de coisa que eles fizeram pensando em ganhar as eleições. O que eles não contavam é que o povo, apesar do bandido da Polícia Rodoviária Federal que tentou atrapalhar os eleitores, o povo foi mais esperto e votou pela democracia.

Kennedy Alencar: Presidente, eu quero falar de economia com o senhor, política industrial, as perspectivas pro ano. Mas nessa questão da democracia, o senhor diz que é um filho da democracia. A hora da verdade, a operação da Polícia Federal, ela mostrou o envolvimento muito grande de militares na tentativa de golpe e a gente viu voltar a circular na praça a tese de que o golpe não aconteceu porque havia legalistas no alto comando.

Esses legalistas, no dia 30 de outubro de 2022, viram o resultado da eleição, a vitória do senhor. Toleraram e protegeram o acampamento golpista até 8 de janeiro. Estavam esperando o quê? O ministro da Defesa, José Múcio, aplica uma estratégia de acomodação dos militares. Pergunto para o senhor: Essa estratégia não está errada? Esses militares não têm que ser punidos? Que legalistas são esses que toleravam acampamento golpista até 8 de janeiro?

Presidente Lula: Primeiro, Kennedy, vamos ser francos. Em nenhum momento da história desse país os militares estão sendo punidos como estão sendo punidos agora. Lembre algum momento em que general foi chamado pela Polícia Federal para prestar depoimento. Coronel, todos, todos que foram provados e todos que provarem que participaram serão julgados, serão punidos.

Não fique preocupado com isso. O que você não pode é o seguinte: é que nós fomos procurar nas Forças Armadas as pessoas para exercer o comando, as pessoas que não estavam comprometidas com isso. Eu tinha assistido o discurso do general Tomás (Paiva) uns dias antes.

Eu tinha assistido um discurso dele, que eu achei extraordinário o discurso dele sobre a questão da política. Por isso é que ele veio assumir o comando do Exército. Assim vale para o Olsen e vale para o Damasceno. São pessoas que não estavam envolvidas com o bolsonarismo, que estavam com independência, subordinados aos comandantes da época. Todos foram afastados e nós agora estamos tentando reconstruir a civilidade nas Forças Armadas.

Eu fico imaginando. Eu fiquei sabendo de uma notícia ontem que um cidadão, um coronel que mora em Campinas, em um apartamento, tinha uma quantidade de munição, uma quantidade de arma que explodiu dentro da casa dele. Ou seja, colocando em risco o prédio todo. A minha pergunta é a seguinte: que grau de responsabilidade tem uma pessoa que tem a patente de coronel do Exército Brasileiro para colecionar quantidade de arma dentro de casa? O que ele queria com armas e munição? A serviço de quem ele estava? A quem que ele queria fazer bem? Não pode.

Então deixa eu falar. Eu estou convencido que nós estamos no caminho certo e estou convencido que o Múcio tem feito um trabalho adequado. Ou seja, nós precisamos aproximar a sociedade brasileira e as Forças Armadas. Não se pode tratar a vida inteira como uma forte inimiga. As Forças Armadas têm um papel, o papel delas é constitucional.

Eu valorizo isso desde quando eu fui presidente da outra vez. Eles têm que cumprir a constituição, eles têm que garantir a soberania nacional, eles têm que garantir a nossa soberania do espaço aéreo, a nossa soberania da nossa riqueza mineral, a soberania da nossa floresta, do nosso rio e cuidar do nosso povo. É isto que é o papel das Forças Armadas e é isso que vão fazer. E é isso que o Zé Múcio está cuidando de fazer para que aconteça no Brasil.

Kennedy Alencar: Quero uma palavra do senhor sobre os 60 anos do golpe de 64. O general Tomás Paiva falou para não ter celebração nos quartéis. Muita gente fala “que beleza, um avanço”. Ora, deveria haver um mea culpa porque eles acabaram com a democracia durante 21 anos. Pergunto: no seu governo, o senhor fez um ato em 8 de janeiro em memória sobre o ato de 2023, para que nunca mais se repita. Como o senhor vai tratar essa questão dos 60 anos de golpe militar.?

Presidente Lula: Eu, sinceramente, vou tratar da forma mais tranquila possível. Eu estou mais preocupado com o golpe de 8 de janeiro de 2023 do que com 64. Eu tinha 17 anos de idade, estava dentro da metalúrgica Independência quando aconteceu o golpe de 64. Isso já faz parte da história. Já causou o sofrimento que causou.

O povo já conquistou o direito de democratizar esse país. Os generais que estão hoje no poder eram crianças naquele tempo. Alguns acho que não tinham nem nascido ainda naquele tempo. O que eu não posso é não saber tocar a história para frente, ficar remoendo sempre, remoendo sempre, ou seja, é uma parte da história do Brasil que a gente ainda não tem todas as informações, porque tem gente desaparecida ainda, porque tem gente que pode se apurar. Mas eu, sinceramente, eu não vou ficar remoendo e eu vou tentar tocar esse país pra frente.

Eu tenho um compromisso de fazer esse país voltar a crescer economicamente. Eu quero que esse país seja a quinta ou a sexta economia do mundo. Eu quero gerar emprego de qualidade. Eu não quero ficar remoendo, fazendo as coisas sempre pensando no passado, no retrocesso, dar a volta por cima.

Eu fico pensando que, nesse tempo que teve o golpe militar, eu passava muita fome com a minha mãe e os irmãos. Não quero ficar lembrando disso, não. A fome que eu passei com a minha mãe, já passou. Agora eu quero que as pessoas comam, que as pessoas trabalhem, quero que as pessoas vivam. E obviamente que isso faz parte da gente construir o futuro do Brasil e não ficar apenas discutindo o passado.

Kennedy Alencar: Presidente, queria falar com o senhor agora sobre economia. A gente teve um primeiro ano em que o senhor recuperou políticas públicas que haviam sido destruídas, relançou o Bolsa Família, Minha Casa, Minha Vida.

Esse ano tem programas novos, como o Pé-de-Meia, para ajudar quem quer cursar uma universidade a ter a sua economia para pagar os seus estudos. E a gente está vendo uma previsão do crescimento do Produto Interno Bruto aumentar. Estava previsto 1,6, já está em 2. Eu queria entender, na sua cabeça, como que o Lula está vendo a economia? Inflação na meta, juros em queda e crescimento do PIB?

Presidente Lula: Ô Kennedy, apenas para que as pessoas que estão nos assistindo compreenderem o seguinte: nós tivemos um primeiro ano em que a gente teve que reconstruir esse país, inclusive criar ministérios que tinham sido destruídos. Vou dar o exemplo de um ministério muito importante, que tinha sido destruído, que era o Ministério da Cultura. Então você teve que reconstruir os ministérios. Você teve que reconstruir as políticas públicas e você teve que reconstruir muitas das coisas que a gente tinha deixado acontecendo ainda no tempo da Dilma e que tinha sido paralisado.

Só para você ter ideia, são 187 mil obras que a gente vai ter que reconstruir. Só de creches, são quase 3.000. Habitação, 87 mil casas que estavam paralisadas desde 2013. Tudo isso é um processo de você fazer avaliação, de você chamar empresa, rediscutir preço com as empresas, para você começar. Além disso, nós lançamos 2 milhões de novas casas até 2026.

Então, o que eu tenho dito para as pessoas entenderem: é como se você tivesse comprado uma terra e você começasse a querer produzir naquela terra. Então nós tratamos a terra, recuperamos a terra. Antigamente a gente falava aramos a terra, sabe, colocamos adubo, colocamos semente. E esse ano de 2024 é o ano da gente começar a colher aquilo tudo que foi plantado em 2023. E é muito importante que a gente veja o mundo assim porque agora é que a gente vai começar a colher aquilo que nós plantamos.

Eu vou te dar um exemplo: você sabe que só o mercado externo para a agricultura brasileira nós abrimos, só no mês de janeiro, 14 novos mercados e, no mês de fevereiro já abrimos 6, e que no ano inteiro já abrimos 62 novos mercados para exportar as nossas carnes e nossos produtos agrícolas?

Você sabia que agora, nesse mês de março, entre fevereiro e março, vamos ter o anúncio de mais de 100 bilhões de reais de investimento na indústria automobilística brasileira, que fazia décadas que não fazia investimento? Possivelmente por causa da vinda da empresa chinesa para a Bahia.

As empresas que já estavam aqui resolveram fazer investimento. Então, todo dia tem uma empresa anunciando investir 2 bilhões de dólares, 1 bilhão de dólares, 3 bilhões de dólares. Ou seja, nós vamos chegar a 100 bilhões de reais de investimento na indústria automobilística nesse novo período. É uma coisa extraordinária. Você sabe o que vai acontecer na questão energética deste país. Ou seja, o Brasil é efetivamente o centro do mundo quando a gente discute a questão climática e a questão energética. O Brasil tem um potencial extraordinário.

Kennedy Alencar: É o plano de transição energética, a economia verde. É isso?

Presidente Lula: É isso. E ninguém compete com o Brasil. Ninguém compete nesse Brasil, seja solar, seja eólica, etanol, de primeira geração, de segunda geração, seja biodiesel. Ou seja, é uma capacidade de fazer crescer a economia. Eu tive a semana passada com a presidenta do Citibank e ela falou para mim e pro Haddad: “Presidente, há muitos anos eu não via o otimismo de investimentos estrangeiros no Brasil como a gente está vendo agora.” Isso dito pela presidenta do Citibank.

Kennedy Alencar: Quanto que vai valer o PIB, o crescimento do PIB?

Presidente Lula: Em janeiro do ano passado, eu estava em Hiroshima quando a presidenta do FMI veio me dizer que a economia brasileira ia crescer 0,8%. Eu falei para ela muito simpaticamente assim: “Minha querida, você não conhece o Brasil. E, se você não conhece o Brasil, não tenta adivinhar o que vai acontecer no Brasil.” A gente vai crescer mais.

O mesmo vou te dizer agora: os pessimistas, aqueles avalistas, sabe, de prejuízo, aqueles avalistas de desgraça. “Não, porque não vai crescer, porque as coisas estão ruins”. Primeiro vai crescer. Nós vamos crescer mais do que qualquer previsão. Vamos chegar a três ou um pouco mais de crescimento esse ano.

E por que que nós vamos crescer? Porque as coisas estão acontecendo. Você pode pegar qualquer área do governo, qualquer área, escolha uma área, Kennedy, sorteie, e vamos pesquisar. Em todas as áreas, a gente está investindo o dobro do que foi investido no governo do outro cidadão. O dobro.

Kennedy Alencar: Vamos falar de política industrial. O senhor lançou uma nova política industrial, daí vem aquela crítica: “Ah, vão pegar e vão dar subsídio para setores. Não vai ter competitividade”. Por que que é importante?

São R$ 300 bilhões que o senhor está prevendo do plano de reindustrialização do Brasil. Eu queria discutir isso com o senhor. Por que o Brasil tem que ter política industrial? E como isso é bom? O que muda na vida do cidadão?

Presidente Lula: Mas antes de chegar na política industrial, deixa só eu continuar com meu raciocínio de porque eu acredito que a economia vai crescer rapidamente. A economia vai crescer rapidamente por uma razão. Eu queria que você guardasse essa frase na sua cabeça. Eu vou dizer uma frase, que é o seguinte. Para mim ela é antológica. Talvez, para a economia, isso não valha nada, mas a verdade é o seguinte: muito dinheiro na mão de poucos significa favela, desemprego, analfabetismo, subnutrição, significa miséria.

E pouco dinheiro na mão de muitos significa distribuição de riqueza, ou seja, quando todo mundo tem um pouco, que todo mundo consome, que todo mundo compra, que todo mundo investe, a economia vai e vai de vento em popa. E é o que está acontecendo nesse país agora. É o que está acontecendo e vai acontecer.

As pessoas vão começar a comprar, é só você pegar a questão de crédito. Nós vamos anunciar mais coisas importantes ainda, está tudo pronto, nós vamos anunciar crédito consignado para o conjunto da classe trabalhadora brasileira, porque, hoje, o crédito consignado é só para aposentados e funcionários públicos. E são mais de 40 milhões de pessoas que vão ter acesso consignado.

Kennedy Alencar: Crédito consignado para os trabalhadores, está planejando isso?

Presidente Lula: Nós vamos mostrar o que vai acontecer nesse país. As pessoas vão aprender a fazer economia com a coisa prática. Se não tiver dinheiro circulando, a economia não vai para lugar nenhum. Se o dinheiro sair do Itaú para o Bradesco, do Bradesco para o BTG, do BTG para o PX, do PX não sei para onde, ninguém vai ficar bem, só eles. E o que nós queremos é que o dinheiro chegue na mão das pessoas mais humildes das pessoas, das pessoas mais humildes, do trabalhador de fábrica, da empregada doméstica, a comerciária.

E, depois, é uma coisa interessante que as pessoas têm que compreender: nós queremos criar um país de classe média, um país de padrão de consumo de classe média, um país de educação de classe média, um país de transporte de classe média. É esse país que nós queremos criar. E é isso que nós estamos preparando para acontecer neste país. Quando a gente fala de Bolsa Família, “mas o Lula só pensa em pobre, só pensa em pobre?”. Não. Eu penso em tirar o pobre da pobreza. Eu não fiz apologia pela pobreza.

Eu fiz um compromisso de fé de que nós vamos acabar com a pobreza, fazendo com que o pobre vire o cidadão de primeira classe. E eu vou repetir uma coisa que você já cansou de me ouvir, mas eu vou repetir. É o seguinte: nós precisamos garantir que vamos acabar com o preconceito contra o pobre.

As pessoas acharem que pobre gosta de comprar coisa de má qualidade, que pobre gosta de se vestir mal, que pobre gosta de ir no fim da feira, que gosta de carne de segunda. Isso é bobagem. A gente quer viver bem, a gente quer viver bem, a gente quer estudar, a gente quer ter liberdade para que possa construir esse país muito mais forte, Kennedy, e esse país está nas nossas mãos.

Por isso que eu falo todo santo dia: não espere da minha parte mau humor com relação à economia. Eu falo para o Haddad: “Haddad, é o seguinte, quando você falar, você fala de forma positiva, como diria o Celso Amorim: ativo e altivo. Porque nós temos que acreditar para fazer acontecer. Temos que acreditar para fazer acontecer. Veja o que está acontecendo com a Petrobras hoje.

Kennedy Alencar: Eu queria falar isso. Retomar a questão da política industrial e da Abreu e Lima, que é uma coisa icônica, a refinaria em Pernambuco. Por que que é importante a política industrial, presidente?

Presidente Lula: É importante a política industrial pelo seguinte: porque é através da indústria que você gera emprego mais qualificado, emprego melhor remunerado, é mais investimento em ciência, mais investimento em tecnologia, mais investimento na chamada indústria de dados, na indústria digital. É uma coisa extremamente importante. Por isso é que nós estamos com algumas coisas que são essenciais para a indústria da saúde.

O Brasil tem o SUS, que é um complexo de saúde que nenhum país do mundo com mais de 100 milhões de habitantes tem um sistema como nós temos o SUS. Então, o poder de compra deste SUS é extraordinário. Então, em vez de ficar comprando dos outros, vamos tentar construir uma indústria de saúde aqui no Brasil. E isto vale, vale para a questão energética.

“Ah, a Alemanha quer produzir aço verde, a Alemanha deve investir no Brasil. Nós temos aqui a energia. Quer hidrogênio verde? Nós temos. É esse país que nós queremos oferecer e é por isso que uma política de industrialização é importante. “Ah, vai dar subsídio.” É engraçado. As pessoas aqui no Brasil estão contra o subsídio pra gente crescer. Mas quando o Biden anuncia trilhões de subsídios, os Estados Unidos é bom.

Aliás, tem uma hipocrisia. Uma vez eu fui visitar o Mubarak, ele era presidente do Egito. Aí a imprensa brasileira dizia que Lula visita um ditador. Na semana seguinte foi o Obama visitar. O Obama visita o presidente. Agora eu fui visitar o Al-Sisi, o presidente do Egito, outra vez os jornais aqui do Brasil falando que visitei um ditador. Quando eu virar as costas e for lá o Biden vai ser “Biden visita presidente”.

Ou seja, essa coisa de nivelar por baixo. Aqui no Brasil tudo é nivelado por baixo. Ô, Kennedy, fazer política industrial é você acreditar que esse país vai voltar a ter, quem sabe, 20 ou 25% do PIB baseado no crescimento industrial, no crescimento científico e tecnológico. Não é que a gente não tenha tecnologia no grão de soja, no crescimento genético, no investimento genético, no frango, num porco, no boi.

A gente antigamente demorava quatro, cinco anos para matar um boi. Hoje você mata com 15 meses, carne de primeiríssima qualidade. Então, tudo isso é investimento em genética e investimento em tecnologia. E o Brasil tem que entrar nessa.

É por isso, Kennedy, se você quiser eu vou te convidar para ir comigo agora, no mês de março, inaugurar a Faculdade de Matemática no Rio de Janeiro. Nós estamos selecionando todos os meninos que participaram das Olimpíadas de Matemática, meninos e meninas que ganharam medalha de ouro, nós estamos fazendo o vestibular e vamos colocar 100 no primeiro ano, 100 no segundo, 100 no terceiro, 100 no quarto.

E tem mais ainda, nossos gênios vão ficar dentro do Brasil estudando. Já tem apartamento para esses meninos ficarem. E nós vamos fazer agora mais seis escolas técnicas para formar técnicos. Não é pra formar licenciatura, não, é pra formar técnicos. Porque eles têm que aprender uma profissão para ajudar a desenvolver a cidade onde ele mora.

Kennedy Alencar: Presidente, o tempo está acabando. O senhor falou do papel…

Presidente Lula: Está acabando porque você quer, porque se depender de mim, eu estou…

Kennedy Alencar: Eu quero falar o seguinte, nessa questão da política industrial tem o papel das empresas privadas. Eu queria uma avaliação do senhor sobre a Vale, que é a maior empresa privada brasileira. O que a Vale não está fazendo que o senhor gostaria que ela fizesse e como o senhor está vendo a sucessão lá?

Porque as notícias foram a seguinte: o Lula queria indicar o Guido Mantega, ex-ministro da Fazenda, para comandar a Vale, os acionistas que resistiram, os estrangeiros. E a imprensa disse que o Murilo Ferreira, que foi indicado pela Dilma com o apoio do senhor para substituir o Roger Agnelli, seria um cotado e falaram agora o Paulo Caffarelli que presidiu o Banco do Brasil no governo Temer e a Cielo no governo Bolsonaro. Como é que o senhor vê a sucessão na Vale e o que o senhor espera da Vale para a economia brasileira?

Presidente Lula: Deixa eu contar, eu não discuto sucessão da Vale e também não discuto a Vale. Eu discuto a questão mineral nesse país. Eu vou lhe contar dois episódios meus. A Vale está tendo um problema no estado do Pará, a Vale está tendo problema no estado de Minas Gerais.

A Vale não pagou as desgraças que eles causaram em Brumadinho, não construiu as casas que prometeram, criaram uma fundação para cuidar para a Vale tirar e a Vale agora fica fazendo propaganda como se fosse a empresa que mais cuida desse país quando, na verdade, é só perguntar para os mineiros, é só perguntar para os paraenses.

O que nós queremos é que a Vale tenha mais responsabilidade, inclusive a quantidade de minas que está na mão da Vale e que ela não explora há mais de 30 anos e fica funcionando como se fosse dona e vendendo. A Vale, ultimamente, está vendendo mais ativo do que produzindo o minério de ferro. E ela está perdendo o jogo para algumas empresas australianas.

Então, o que nós queremos é ter uma nova política mineral, que esse país dê força a todas as empresas que querem cuidar dos chamados minerais críticos, que é a coisa que está na moda. Isso é moda. Minerais críticos só se está falando dos quatro anos para cá. Mas o dado concreto é que o potencial do Brasil tem que ser explorado e a Vale não pode ter o monopólio.

A Vale tem que ser mais uma empresa. Ela é maior, que trabalhe mais. A Vale ela não explica para a sociedade brasileira o compromisso dela com a empresa da Guiné-Conacri. Ele não explica por que desistiram de uma ação de 500 milhões de dólares porque a parte contrária descobriu que o diretor da Vale estava envolvido na corrupção e eles preferiram abandonar o processo.

A Vale não explica porque que ela desistiu da mina de Moatize, em Moçambique, que foi um esforço para a gente conseguir. Então eu acho que a Vale tem que saber o seguinte: não é o Brasil que é da Vale. É a Vale que é do Brasil. Não é o Brasil que tem que prestar conta para a Vale, é a Vale tem que prestar conta para o Brasil.

E eu sempre fui assim. Quando o Roger era presidente, eu tive uma extraordinária relação com o Roger. O que aconteceu na saída do Roger? A gente estava tentando reconstruir a indústria naval brasileira. A gente estava tentando construir e a gente queria construir navios grandes.

De repente a Vale vai e contrata três grandes navios de 400 mil toneladas da China. Aí eu chamei o Lázaro Brandão, que era o presidente do Bradesco, e eu falei: “Não é possível mais a gente fazer uma política industrial de construir uma indústria naval e o cidadão de uma empresa como a Vale não vai comprar”.

Então tiramos ele, e eu tinha uma extraordinária relação com Roger Agnelli. Lamento profundamente como aconteceu a morte do Roger Agnelli, mas a gente não pode. A Vale não pode pensar que ela é dona do Brasil. Ela não pode pensar que ela pode mais do que o Brasil.

Então, o que nós queremos é o seguinte: as empresas brasileiras precisam estar de acordo com aquilo que é o pensamento de desenvolvimento do governo brasileiro. É só isso que nós queremos.

O pessoal fica nervoso porque o Lula denuncia a privatização da Eletrobrás. O que fizeram da Eletrobrás foi crime de lesa pátria. Eu já estou com 78 anos, talvez não vá viver os 120 que eu quero viver, mas a sociedade vai descobrir o que aconteceu na Eletrobrás.

Kennedy Alencar: Possibilidade de reversão disso?

Presidente Lula: Não, até porque não vamos gastar dinheiro do povo nisso agora. Eu tenho coisa mais importante para fazer. Não vou ficar utilizando o dinheiro. Mas para que vender uma BR? Para que vender a empresa de gás que tinha a Petrobras para equilibrar o preço do gás desse país? Porque quando os governos são incompetentes e não sabem o que fazer, eles vendem as coisas.

Você está lembrado que nós tínhamos colocado quase 500 bilhões para financiar o desenvolvimento na crise de 2008 e 2009. Depois, no tempo do outro presidente, o BNDES teve que devolver quase 500 bilhões para o governo.

Dinheiro que poderia ter sido investido na indústria e poderia ter sido investido na questão da transição energética. Não, veio pro governo gastar dinheiro com eleição. Passou o tempo inteiro mentindo, não entregou nada. Você, que é jornalista informado, quando você viajar pergunta qual é o estado que tem 100 metros de estrada feita pelo Bolsonaro? Pergunte. Sabe por que não tem? Só este ano de 2023 nós investimos mais do que eles em quatro anos.

Kennedy Alencar: Presidente, só para encerrar a entrevista, que infelizmente o tempo acabou. Eu tenho notado o senhor mais ativo na articulação política, relação com Arthur Lira, presidente da Câmara, um encontro recente com Rodrigo Pacheco.

Você vai se envolver mais na articulação política, uma reforma ministerial está no horizonte para melhorar isso? Como o senhor está vendo a relação com o Congresso e a montagem do governo no segundo ano, ele segue como está?

Presidente Lula: Ô Kennedy, você sabe qual é a vantagem que você tem de fazer uma pergunta dessa para mim?

Kennedy Alencar: Qual?

Presidente Lula: É porque eu sou político e porque eu gosto de política. Eu convivo com a política do jeito que ela é. A minha relação com a Câmara é a melhor possível, com o Senado é a melhor possível.

Kennedy Alencar: Com o Supremo também que está ajudando na governabilidade.

Presidente Lula: Mas deixa eu te falar. O problema é o seguinte, é que eu tenho noção de que não é o Senado que depende do Governo Federal e não é a Câmara que depende. Eu tenho noção de que o presidente da República precisa mais dele do que eles do presidente da República. Porque quando eu mando uma medida provisória, um projeto de lei, eu tenho que convencê-los a votar naquele projeto e eu tenho consciência de que eles não são obrigados a querer tudo o que eu coloquei no projeto.

Eles têm ideias e têm outros pensamentos. Então, o que é que nós temos? É que colocar em prática a arte de negociar. Mas isso, Kennedy, faz parte da democracia desde que o mundo é mundo. Então, veja, eu digo sempre: eu não converso com Centrão, não converso com o Centrão, eu converso com partidos políticos. Eu converso com o PP, eu converso com o União Brasil, eu converso com o PT, eu converso com o PSD, eu converso com o PSB, eu converso com o PMDB, eu converso com o partido político. E tenho conversado com todos e faço questão de conversar com todos e vou continuar conversando.

A semana passada eu fiz uma reunião com os líderes na minha casa. Essa semana que vem, quando eu voltar da Guiana, vou fazer com o Senado e vou tornar uma rotina fazer reunião. Sabe por que, Kennedy? Porque a gente precisar parar de ser soberbo. A gente precisa deixar de achar que a gente pode tudo, e pelo fato da gente ser presidente, quando eu quiser uma coisa eles vão acatar.

Não. Se eu quero que a pessoa goste de mim, se eu quero que a pessoa seja boa e generosa comigo, eu tenho que gostar deles, eu tenho que fazer um gesto, eu tenho que mostrar que eu respeito eles. É assim que eu vou tratar e é assim que eu quero ser tratado. Isso significa política elevada à quinta potência. Ou seja, política total. E eu acho que é isso que eu preciso para o Brasil dar certo. O meu compromisso é um só, Kennedy.

O meu compromisso é quando chegar o dia 31 de dezembro de 2026, pode até já marcar uma entrevista comigo, depois do Natal. Eu quero mostrar como é que está o Brasil. Eu quero mostrar quantos empregos foram gerados. Eu quero jogar o crescimento da massa salarial. Eu quero melhorar a qualidade da educação.

Você viu o que nós fizemos agora com o Pé-de-Meia? Você sabe o que é o Pé-de-Meia? Porque no Pé-de-Meia é o seguinte, você tem uma evasão escolar muito grande quando a meninada termina o ensino fundamental e vai para o segundo grau. As pessoas desistem da escola com 14 anos, 15 anos, porque tem que ajudar o pai ou a mãe.

Eu acho isso um crime contra a nação. O que nós fizemos? Nós resolvemos propor um projeto de lei colocando R$ 7 bilhões à disposição. Nós vamos dar uma poupança para esse menino. Ele não vai desistir da escola. Ele vai receber durante dez meses o equivalente a R$ 200 e, no final do ano, R$ 1 mil.

Ou seja, são 2 mil, mais 1 mil, são 3 mil. Se ele tiver 80% de comparecimento na escola e ele passar de ano, no ano seguinte ele vai receber mais dez vezes de R$ 200, e mais uma de R$ 1 mil. Se ele passar e tiver 80%, ele vai receber no terceiro ano.

Quando ele terminar o ensino médio ele está com R$ 9 mil na poupança. Aí tem gente que pergunta: “mas isso não é gasto?”. Não. Isso não é gasto. Gasto é se eu tivesse colocando esse dinheiro para combater o tráfico de drogas na molecada, se eu tivesse que construir mais cadeia.

Eu estou investindo na juventude brasileira. Eu estou dando uma chance para dar tranquilidade à família, ao pai e à mãe, sabendo que o filho está estudando. Junto veio a escola de tempo integral. Nós vamos terminar o mandato com 4 milhões de crianças em escola de tempo integral, pra dar garantia para a mãe poder trabalhar, para a mãe poder fazer as coisas sabendo que as crianças estão na escola.

Junto com isso, mais 100 escolas técnicas nós vamos fazer no Brasil, junto com isso, mais universidades que nós vamos fazer no Brasil. Ou seja, nós vamos criar a seguinte lógica: não existe na história da humanidade nenhum país desenvolvido sem antes investir na educação.

Então eu vou cumprir com a minha tarefa. E quem não gosta de mim faz o seguinte: eu sou o primeiro presidente do Brasil que não tem diploma universitário e sou o presidente do Brasil que mais fiz universidade nesse país. Pense, pense se é possível. É. Porque tem uma coisa que é importante, é a educação. O que eu não tive, eu quero que o povo tenha. Simples assim, Kennedy.

Kennedy Alencar: Presidente, é uma honra entrevistar o senhor. Tem muito assunto que não dá tempo de abordar, porque tem muita coisa para conversar.

Presidente Lula: Pode marcar uma nova. Quando você entrevistar o meu adversário, o coisa, aí você me convida outra vez.

Kennedy Alencar: Não, não tenho interesse nessa entrevista, não. Tenho interesse de entrevistar o senhor novamente. Agradeço muito a entrevista do senhor. Muito obrigado por nos receber e boa sorte no seu trabalho.

Presidente Lula: Obrigado a você, Kennedy. Obrigado.

Assista o trecho da entrevista em que Lula fala da Vale:

 

 

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