Na obra de Nei Lopes, reflexão para o Dia Nacional da Consciência
Lenin Novaes*
O dia 20 de novembro é feriado. Não é data bíblica e nem cívica, ao contrário do que se pensa e imagina, como é habitual no calendário anual brasileiro: dia de Santo Antonio, São João, São Pedro, Todos os Santos etc. Trata-se de data que tem o marco de reflexão política, sinalizada no símbolo de um herói brasileiro, marginalizado por muitos anos: Zumbi dos Palmares. Ele lutou bravamente pela libertação dos escravos e morreu no dia 20 de novembro de 1695, com data cunhada no Dia da Consciência Negra.
Para Nei Lopes, compositor, escritor, intérprete e palestrante, “o Dia da Consciência Negra” é dia de trabalho, não é feriado, nem feriadão. É importante para se refletir sobre os porquês de o Brasil, depois de mais de 100 anos não ter conseguido colocar o contingente majoritário de sua população (pretos e pardos, afrodescendentes) em pé de igualdade com os outros segmentos étnicos que constituem a sociedade nacional. É dia de reflexão, antes de tudo”.
Ele diz que “Zumbi é um paradigma, pela verdadeira epopeia que viveu. Depois de ser considerado um “bandido” pela História colonial, hoje é o protótipo do herói negro. E isso é bom. Mas nós, afrodescendentes, temos muitos outros heróis, invisibilizados por várias circunstâncias. O Dia da Consciência Negra deve servir também para revelar e reverenciar esses personagens”.
Faz alguns anos que não encontro Nei Lopes, depois que se mudou de Vila Isabel. Enviei mensagem para ele a propósito do Dia Nacional da Consciência Negra, pois é um dos mais conceituados pesquisadores da cultura e da vida social afro-brasileira. E, em resposta, além de algumas considerações, me disse que “estou em meio a um trabalho onde compilei informações sobre, por exemplo, estilos de arquitetura africana, catedrais monumentais escavadas em rochas na Etiópia no século XII d.C; o avanço da Civilização Zanje, erigida no litoral oriental africano pela colaboração de populações bantas locais miscigenadas com grupos originários da Pérsia; a importância do ouro extraído e trabalhado na África para o desenvolvimento da Europa renascentista; a presença, na Ásia, de africanos que se tornaram grandes líderes políticos e militares; a existência de rotas comerciais ligando a África tropical ao Mediterrâneo, a qual possibilitou contatos enriquecedores em ambos os sentidos; a importância de impérios negro-africanos como Gana, Mali e Songai, erigidos por lideranças locais, muitas vezes eclipsadas pela historiografia, em proveito de “árabes” que, na verdade, eram berberes, antigos habitantes do norte do continente etc, etc, etc… Enfim, trago aqui essas questões para balizar o que acho importante discutir nas celebrações de mais um Dia da Consciência Negra”.
Ele se despediu advertindo que “quem só souber falar de escravidão – paciência! – que fale. Mas eu, se puder falar, falarei de conteúdos que contribuam para criar ou reforçar a autoestima positiva da juventude afrodescendente. Que merece ouvir coisas boas, bonitas, edificantes sobre o passado de nosso povo e nossa ancestralidade”.
E aí, estimados leitores e leitoras do Vila de Utopia, me dei conta de que um dos víeis de reflexão no Dia Nacional da Consciência Negra institui abordar um personagem atuante da vida brasileira, assim como Nei Lopes. Ele tem uma trajetória de vida dedicada à música e ao estudo das culturas de matrizes africanas. Nei é artista plural, assim como as suas produções são tantas e diversas. Seus contos e crônicas, seu romance são narrativas carregadas de vida, trazem a presença de personagens comuns, famosos, referências a fatos históricos e lugares pitorescos.
O humor fino e a ironia são traços da sua escrita. Recentemente, recebeu prêmios que reconhecem o valor da sua obra, como o Faz Diferença, Segundo Caderno, Prosa, do Globo e o de melhor música, 28º Prêmio Shell de Teatro, composição para o musical Bilac vê estrelas. Com dezenas de livros publicados (para todos os leitores), inúmeros prêmios, Nei participa de coletâneas, antologias e parcerias. Isso aponta um caráter de generosidade e de gratidão com os parceiros e com os leitores.
Sua narrativa literária flui em casos contados ao pé do ouvido. Em histórias para serem compartilhadas na sala de aula ou numa roda de leitores jovens e adultos. Somos capturados pelo ritmo do texto no contato com a sonoridade e o movimento das palavras, escrita feita de melodia e ritmo. Sem falar da intensidade de imagens que brotam. Vemos as cores e texturas, sentimos cheiros e sabores, escutamos os sentimentos de pessoas, lugares e coisas.
Compartilhamos as emoções das personagens e do narrador. Podem ser gente conhecida do autor, gente anônima para os leitores ou conhecida publicamente. Nei empresta um caráter de grandeza a cada uma, a cada criatura presente em seus textos. Por um lado, temos uma linguagem coloquial e íntima, por outro lado, sofisticada e erudita. Nei transita entre essas linguagens com naturalidade. Ele nos aproxima de grandes acontecimentos históricos da humanidade, em especial da arte, sem pedagogias nem ensinamentos. Os nomes dos lugares, a origem das coisas. A informação brota de sua narrativa e nos captura. Ao ler seus textos, passamos a conhecer mais sobre o Rio de Janeiro, o Brasil. Isso porque Nei traz fontes históricas, artísticas, antropológicas, geográficas, étnicas e sociológicas para suas narrativas. Não é uma escrita forçada, isso está no cerne da sua criação.
Assim o lemos e apreciamos seus tantos casos que têm o negro como protagonista. O negro tem vida e voz. Fala de um lugar: nem idealizado nem subestimado. Ora o autor aponta problemas brasileiros, como a ignorância, a pobreza, o descaso pelo subúrbio, ora nos faz sentir orgulho da nossa brasilidade, ao destacar idiossincrasias como o jogo de cintura e a criatividade. Com palavras precisas (e preciosas), ele fala da nossa história, das origens do povo brasileiro, da formação cultural que nos caracteriza. Aborda a tradição, como a velha guarda das escolas de samba cariocas, mas também aponta o impacto da internet nos meios de comunicação, os neologismos, o americanismo, os vícios de linguagem. São histórias contadas ao vivo. Em uma linguagem por vezes íntima, por vezes erudita. Musical. Ler Nei Lopes é a oportunidade para o leitor ir além das palavras, dos ditos, das linhas. Um entrar nas entrelinhas, nos subterrâneos da língua e da nossa existência.
A descrição do perfil e do talento de Nei Lopes é de Ninfa Parreiras, professora e pesquisadora, mestre em Literatura Comparada pela USP, na solenidade em homenagem a ele na Feira Literária de Santa Tereza (Flist), em maio do ano passado.
Nei Lopes é bacharel em Direito e Ciências Sociais pela Faculdade Nacional de Direito da antiga Universidade do Brasil, atual Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Ele tem publicado vasta obra literária: Rio negro, 50 (romance ambientado no Café e Bar Rio Negro, ponto de encontro de intelectuais negros cariocas em meados do século XX, Record); Dicionário da história do samba (com L.A. Simas, Civilização Brasileira); A lua triste descamba (romance, Pallas); Dicionário da hinterlândia carioca; Esta árvore dourada que supomos (romance); Dicionário da antiguidade africana (Civilização Brasileira); Enciclopédia brasileira da diáspora africana (Selo negro, 4ª edição); Oiobomé, a epopeia de uma nação (romance); História e cultura africana e afro-brasileira (Prêmio Jabuti, paradidático); Mandingas da Mulata Velha na Cidade Nova (romance; Vinte contos e uns trocados (Record); Novo dicionário Banto do Brasil e Partido alto, samba de bamba, entre outros.
O seu Dicionário Banto do Brasil (1ª versão, 1996), em 2001, subsidiou o repertório de bantuísmos consignados no Dicionário Houaiss da língua portuguesa, que acolheu algumas centenas de hipóteses etimológicas levantadas por suas pesquisas e referidas no corpo da obra. Naquele ano participou do projeto musical “Ouro Negro”, em homenagem ao ilustre maestro Moacir Santos, escrevendo letras para cinco temas do homenageado, em canções gravadas, respectivamente, por Gilberto Gil, Milton Nascimento, Djavan, João Bosco e Ed Motta.
O Dicionário da História Social do Samba é uma parceria dele com o Luiz Antonio Simas, professor de História e amigo. Nei Lopes considera “o dicionário boa ferramenta de trabalho para quem quer estudar o samba. As informações que contém, antes estavam esparsas em livros como os de José Ramos Tinhorão, nosso mestre e inspirador; e, agora, estão disponíveis em um livro só, organizado por verbetes. Com ele queremos, eu e o Simas, fazer compreender que samba não é carnaval, nem é só escola de samba: é bem mais do que isso, uma das expressões mais fortes e amplas da cultura brasileira”.
No ano de 2005, seu CD Partido ao cubo foi eleito o melhor disco de samba no Prêmio da Musica Brasileira. No mesmo ano, a carioca Pallas Editora publicou o livro O samba do Irajá e de outros subúrbios, um estudo da obra de Nei Lopes, resultado de tese de mestrado defendida pelo antropólogo Cosme Elias, na UERJ. E, em 2009, a paulistana Selo Negro inaugurou a coleção Retratos do Brasil Negro, com a publicação da biografia Nei Lopes, escrita pelo jornalista Oswaldo Faustino.
No início de 2012, Nei Lopes gravou depoimento à posteridade, sobre sua trajetória, no Museu da Imagem e do Som, MIS-RJ. Em novembro daquele ano recebeu o Título de Doutor Honoris Causa da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ). Antes disso, por seu trabalho como intelectual e artista, em 1998, ele foi agraciado com a Medalha Pedro Ernesto, conferida pela Câmara Municipal do Rio de Janeiro. E em novembro de 2005 recebeu do governo brasileiro, a Ordem do Mérito Cultural, na classe de Comendador; e, em 2013, recebeu a Ordem de Rio Branco, do Ministério das Relações Exteriores, no grau de Cavaleiro.
Em junho de 2006 foi focalizado pela Revista O Globo (nº 100) na reportagem 100 brasileiros geniais; e, em 24 de janeiro de 2007, teve foto sua publicada na seção Retratos Capitais, da revista Carta Capital, com a legenda: “Em música e nas letras, a voz do samba e da consciência negra”. Em novembro de 2007, Nei Lopes foi agraciado com a Medalha Tiradentes, outorgada pela Assembleia Legislativa do Estado do Rio de Janeiro (Alerj). No ano de 2009 foi eleito “Homem de Ideias”, pelo suplemento Ideias, do Jornal do Brasil. Além dessas, Nei tem em seu currículo homenagens prestadas pelas Câmaras Municipais de Niterói, RJ; Seropédica, RJ; e Belo Horizonte, MG.
Em 2014 Nei Lopes publicou também o livro Contos e crônicas (Ed. Objetiva, coleção “Para ler na escola” – composta por livros de Carlos Heitor Cony, Ignácio de Loyola Brandão, João Cabral, João Ubaldo, Joel Rufino, Heloísa Seixas, Moacyr Scliar, Ruy Castro, entre outros). E, em 2015, ganhou o Trofeú Bibi Ferreira, pelo conjunto de canções do musical Bilac vê estrelas, de Heloisa Seixas e Júlia Romeu, estando também indicado para o Prêmio Shell de Teatro pela mesma obra.
Nei Lopes também é conferencista. Na Academia Brasileira de Letras, em maio de 2010, fez conferência sobre O negro na literatura brasileira: autor e personagem, publicada, inclusive, na edição nº66 da Revista da ABL. Em setembro de 2011 participou da Bienal do Livro do Rio de Janeiro, na seção “Café literário”, em conversa com o escritor angolano Papeteia. Essa performance se repetiu em 2012, na Tarrafa Literária, em Santos, São Paulo, na companhia do romancista José Eduardo Agualusa, também angolano. E com Papeteia, novamente, em 2015, na FLINKA, no memorial da América Latina.
Leitores e leitoras do Vila de Utopia, sugiro conhecer/adquirir a obra musical de Nei Lopes, nos CDs Tem gente bamba na roda de samba, A arte negra de Wilson Moreira e Nei Lopes, Negro mesmo, Canto banto: 300 anos de Zumbi, Sincopado o breque, De letra & música, Celebração: Nei Lopes 60 anos, Partido ao cubo, Chutando o balde, Samba de fundamento e Samba a rigor. Obviamente, também, os livros dos títulos mencionados.
*Lenin Novaes, jornalista e produtor cultural. É co-autor do livro Cantando para não enlouquecer, biografia da cantora Elza Soares, com José Louzeiro. Criou e promoveu o Concurso Nacional de Poesia para jornalistas, em homenagem ao poeta e jornalista Carlos Drummond de Andrade. É um dos coordenadores do Festival de Choro do Rio, realizado pelo Museu da Imagem e do Som – MIS. É Assessor de Imprensa do Centro de Ciências da Saúde (CCS) da Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ.
A luta sempre continua!
Uma boa trajetória bem contada e poderia ser cantada.
Todo dia é dia de todos que vivem nesse manto esplendoroso chamado Brasil
Nei Lopes reflete bem em sua reflexão na reportagem realizada pelo jornalista Lenin Novais, na qual ele se refere ao – negro brasileiro – do qual concordo com o seu relato. E sem distanciar da análise crítica, gostaria de colocar um lado que me incomoda, quando vejo um atleta brasileiro, negro, ser considerado o “maior Atleta do Século” não está integrado à luta do povo negro organizado deste país. Sem perdemos à dicotomia dos fatos, fico a meditar sobre a carência de heróis e até os heróis negros, o preconceito e o racismo de quem não consegue conviver com a nossa força milenar, se sente incomodado. Mais à frente Nei Lopes trata o assunto com autoridade quando ele se refere aos negros que poderiam ser considerados nossos heróis, mas que se encontram na invisibilidade. É sem dúvida uma boa pauta para discussão.
Prosseguindo, de mim, confiscaram o direito de referenciar os meus orixás, negam-me a força expressa de Zumbi dos Palmares. E se luto por uma data a referenciar o meu líder, lá vem o Capital a se intrometer e incutir na cabeça do povo que temos feriados demais, ou que o dia devia ser de trabalho, como se a data nada representasse para esse povo milenar, que rasgou com sangue os caminhos desse país de extensões continentais, que trouxe esperança, tradição, cultura, e progresso e sua força de trabalho a custo zero no período escravocrata para esse povo brasileiro, que insiste em negá-lo.
Nei avança e aborda em sua reflexão, questões prementes, tais como: “…Mas nós, afrodescendentes, temos muitos outros heróis, invisibilizados por várias circunstâncias. O Dia da Consciência Negra deve servir também para revelar e reverenciar esses personagens”, ao fechar a questão.
Lenin, a parcela desta reportagem que segue, é instigante e vale a releitura: “… “estou em meio a um trabalho onde compilei informações sobre, por exemplo, estilos de arquitetura africana, catedrais monumentais escavadas em rochas na Etiópia no século XII d.C; o avanço da Civilização Zanje, erigida no litoral oriental africano pela colaboração de populações bantas locais miscigenadas com grupos originários da Pérsia; a importância do ouro extraído e trabalhado na África para o desenvolvimento da Europa renascentista; a presença, na Ásia, de africanos que se tornaram grandes líderes políticos e militares; a existência de rotas comerciais ligando a África tropical ao Mediterrâneo, a qual possibilitou contatos enriquecedores em ambos os sentidos; a importância de impérios negro-africanos como Gana, Mali e Songai, erigidos por lideranças locais, muitas vezes eclipsadas pela historiografia, em proveito de “árabes” que, na verdade, eram berberes, antigos habitantes do norte do continente etc, etc, etc… Enfim, trago aqui essas questões para balizar o que acho importante discutir nas celebrações de mais um Dia da Consciência Negra”.
Ao se despedir, Nei adverte que “quem só souber falar de escravidão – paciência! – que fale. Mas eu, se puder falar, falarei de conteúdos que contribuam para criar ou reforçar a autoestima positiva da juventude afrodescendente. Que merece ouvir coisas boas, bonitas, edificantes sobre o passado de nosso povo e nossa ancestralidade”.
Não abro mão abro de certos valores. Fomos Subjugados por mais de 300 anos e a história não apague isto, pois não estamos numa sala de aula em que o professor (a) contou é introjetou uma história segundo a ótica da cultura vigente. Hoje, os metres negros querem contar a história real, a partir de nosso conhecimento, sem escamotear a verdadeira história.
E os negros que rechaçam a condição de submissão de inferioridade, cobra uma nova postura do poder, com políticas públicas inclusivas, sem perder de vista esse hiato a que fomos remetidos nas disputas pelas oportunidades iguais em todos os setores desde país. (José Norberto de Jesus)