Monólogo de um cansado prefeito cassado

 

Por Lúcio V. Sampaio*

HOJE, ao acordar como de costume, com leve náusea, dirigi-me até ao banheiro contíguo e lá mesmo fiz minhas costumeiras orações e abluções. Foi aí, ao levantar os olhos marejados diante do fosco espelho de sempre, avistei-me comigo mesmo, como era de se esperar, com esta minha cara de fuinha, meio enfezado, emitindo um snif-snif característico, direcionando meu aguçado olfato à procura de um financiador de campanha eleitoral, o primeiro que aparecesse à minha frente. Embaçado ainda pelas brumas da noite que acabara de dar lugar a este dia de nuvens outonais, o espelho que me encarava de forma vil e ameaçador, parecia-me perguntar o que eu realmente queria comigo mesmo. Foi então que lhe perguntei-me:

– O que me vês, espelho tosco, o que vês o que não me vejo? Aí, após esta pergunta em tom de súplica, sorriu-me o desgraçado, ao me ver refletido com olhos ainda sonolentos, mau hálito de ontem, dentes amarelecidos pelo estrume do tempo, e por essas minhas mãos – (ei-las!) – sujas desde ontem, quando fui cumprimentar em solenidade oficial na Câmara de Vereadores, dezenas, talvez centenas de outras mãos sujas iguais ou piores que … não, não importa isto agora, mas este rosto não posso descrevê-lo, pois assim estaria condenando a mim mesmo (e isto jamais o farei!); basta, portanto, que ele esteja refletido nesse espelho mofado de meu banheiro, às 7 e 30 da manhã, quando me preparo novamente para o cadafalso de mais um dia.

Bem sei que a qualquer momento, quando chegar ao Paço Municipal, e observar ao meu redor, terei de escolher qual  inimigo hei de dormir, entre uma audiência e outra. Sinto-me estar preparado para qualquer embate, mas terei sabedoria suficiente para realizar tal escolha? Fobias diversas me acometem só de imaginar que estou sendo gravado clandestinamente…

Pois me digo, estou ficando cansado desta disputa de grupos e grupões todos os dias, a toda hora, a ficar azucrinando meus sensíveis tímpanos, uma zoeira permanente, enquanto assino milhares de nomeações para os públicos cargos e funções, (que até calo na mão, ao lado do fura-bolo apareceu, acredite); para meus aliados, seguidores, eleitores querendo todos a compartilhar comigo meu desejo e meu gozo inesgotável.

É o que ando dizendo, estou muito, mas muito cansado mesmo, de tudo e todos. Mas, o que fazer quando querem tirar minha cadeira de alcaide, e um chão vazio e escuro se abre aos seus pés? Claro, um pulha eu não sou, tenho certeza disto, tenho boa índole, foi a mamãe que me assegurou, e ela está sempre certa de mim, aqui e no céu com quem novamente estarei, na santa glória um dia.

E há mais, espelho que me reflete: como se não bastassem as torpes injúrias e brutais difamações, ando sabendo por meio de meus assessores de imprensa, que me adoram e me servem às vezes de capacho, que o pessoal dessas tais redes sociais anda me taxando de ser mais um analfabeto funcional, pois tirei meu curso de madureza lá na escola Prof. Efigênia Alves, de qualidade indiscutível; e que mal sei assinar meu próprio nome nos documentos oficiais, contentando a rubricá-los, vê se pode?

E não mais entrarei em detalhes sobre meus cupinchas vereadores eleitos pelos sagrados votos dos cidadãos que aqui vivem. São todos uns abestados, comem aqui bonitinho, e se necessário lambem até o meu saco, mas são todos boas gentes, só querem o meu bem e um futuro venturoso para nosso povo. No entanto, estou eu aqui angustiado, temeroso ao que vai me acontecer, um frio me perpassa por inteiro, minha solidão úmida pelo vapor que vem do chuveiro ligado em chamas e eu nem sei quando hei de comer a primeira-dama do município, em cio, estendida ali em nossa cama de finos lençóis de cambraia, pô, querem maior sacanagem?

*Lúcio V. Sampaio, editor de O Cometa (1979/88)

 

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