Mesas do Flitabira reafirmam a literatura como força política e poética com críticas contundentes ao massacre no Rio

Em destaque, Afonso Borges, Jeferson Tenório, Bianca Santana e Sérgio Abranches na primeira mesa de debates na abertura do 5.º Flitabira

Fotos: Carlos Cruz

Autores discutem Drummond, território, memória e justiça em noite marcada por denúncia, emoção e resistência

A noite de quarta-feira (29), na abertura do 5.º Festival Literário Internacional de Itabira (Flitabira), foi marcada por dois momentos densos e simbólicos da programação, no teatro da Fundação Cultural Carlos Drummond de Andrade (FCCDA).

As mesas Literatura, Encruzilhada e A Rosa do Povo e Terra, Água e o Passado como Encruzilhadas foram contundentes, com condenações enfáticas ao massacre ocorrido nos complexos da Penha e do Alemão, no Rio de Janeiro.

O massacre deixou 121 mortos, segundo a Polícia Civil, entre eles quatro policiais. As duas mesas apresentaram reflexões profundas sobre o papel da literatura diante da violência de Estado, da memória histórica e da degradação ambiental.

A Rosa do Povo como denúncia e resistência

A primeira mesa da noite celebrou os 80 anos do livro A Rosa do Povo, de Carlos Drummond de Andrade, discutindo a sua atualidade diante do cenário político brasileiro.

Sérgio Abranches abriu a conversa com uma fala contundente sobre o massacre no Rio. “Isso não é segurança pública. É uma sociedade vingativa contra os negros, contra os periféricos, contra o povo”, afirmou. Ele classificou o episódio como resultado da “falência absoluta do Estado”.

Jeferson Tenório relembrou o assassinato de Marielle Franco e o pedido de desculpas feito pela presidenta do Supremo Tribunal Militar, Maria Elizabeth Guimarães Teixeira Rocha, às vítimas da ditadura. “É uma encruzilhada que nos convoca a nos posicionarmos. A literatura também é ferramenta para isso. É a possibilidade de vocalizar nossa indignação, nossa raiva e nosso desejo de outro país”, disse.

Ele leu o poema Passagem da Noite, de Drummond, encerrando sua fala com a imagem da noite como metáfora da perplexidade nacional.

Já Bianca Santana fez o pronunciamento mais contundente da noite, denunciando o massacre como uma ação política e calculada.

“Isso é necropolítica. É marketing pela morte. É um governador que quer se eleger senador e usa o sangue do povo como propaganda. E nós, como escritores, como leitores, como cidadãos, não podemos normalizar essa carnificina. A literatura precisa ser trincheira”, afirmou.

Ela também leu trechos de A Rosa do Povo, destacando a força do poema como denúncia e esperança.

Afonso Borges destacou o papel dos festivais literários como jornadas de resistência e memória, traçando paralelos entre os festivais literários de Paracatu, Araxá e Itabira. “Estamos diante de uma escolha. E a literatura é uma ferramenta para não nos calarmos”, afirmou.

Itamar Vieira Junior, Morgana Kretzmann e Matheus Leitão fizeram críticas contundentes à atuação do Estado no massacre ocorrido no Rio de Janeiro
Terra, água e o direito à vida

Na sequência, a mesa Terra, Água e o Passado como Encruzilhadas reuniu os escritores Itamar Vieira Junior, Morgana Kretzmann – e o jornalista e também escritor Matheus Leitão.

A conversa foi marcada por emoção, denúncia e reflexões sobre o papel da literatura diante da violência de Estado, da degradação ambiental e da memória histórica.

Matheus Leitão abriu a mesa com um relato pessoal sobre o pedido de perdão feito na Catedral da Sé às vítimas da ditadura, da qual a sua família foi vítima. E relacionou o massacre no Rio à continuidade da violência institucional iniciada com a ditadura militar (1964-85).

“A ditadura segue presente nas periferias”, afirmou. Ele classificou o massacre no Rio como uma atualização do pior da história brasileira. “Do genocídio contra o povo negro por quase 400 anos ao que seguimos praticando hoje.”

Itamar Vieira Junior afirmou com contundência. “O que aconteceu no Rio nos lança de forma muito triste para a nossa própria história. É, sim, um genocídio”, enfatizou.

Ele apresentou seu novo romance, Coração Sem Medo, que encerra a Trilogia da Terra iniciada com Torto Arado e Salvar o Fogo.

“Esse terceiro livro é sobre os desterrados, aqueles que não puderam lutar pela terra e foram parar na cidade. E ali descobrem que terra e território continuam sendo vitais. Não há vida sem isso.”

A flor que rompe o asfalto

A escritora Morgana Kretzmann trouxe à mesa uma leitura poética e política do massacre, relacionando o episódio à necropolítica e à degradação ambiental.

“Foi uma ação de marketing pela morte. Uma ação política que instrumentaliza o sofrimento”, afirmou. Ela também leu trechos de A Rosa do Povo, incluindo o emblemático verso: “Uma flor nasceu na rua… rompe o asfalto.”

Autora de Água Turva, Morgana falou sobre como a literatura pode revelar territórios invisibilizados.

“Água Turva é uma metáfora para os crimes ambientais, políticos e sociais que são empurrados para debaixo do rio. Mas às vezes, isso emerge. E quando emerge, precisamos lidar com o problema, discutir, reagir.”

Ela destacou que o livro foi publicado na Alemanha com o título As Vozes do Yukumã, em referência ao maior salto longitudinal de queda d’água do mundo, localizado no rio Uruguai.

“É um lugar desconhecido até por brasileiros. Mas quando o livro foi publicado, os leitores quiseram conhecer esse território. Isso mostra um dos poderes da literatura: dar voz ao que está invisível.”

Encruzilhadas que exigem escolha

As duas mesas encerraram com uma convocação coletiva à responsabilidade. “Essas personagens, como as de Água Turva, chegam a uma encruzilhada e precisam decidir que país querem, que terra querem, que futuro querem”, disse Morgana.

Matheus Leitão reforçou. “Estamos diante de uma escolha. E a literatura é uma ferramenta para não nos calarmos.”

O Flitabira segue até domingo (2), com programação gratuita que inclui mesas literárias, lançamentos, oficinas, saraus, exposições e shows.

Nesta quinta-feira (30), o destaque é o lançamento do livro Memórias do meu Quilombo, de Dona Rosinha, líder comunitária do Morro de Santo Antônio, com participações de Conceição Evaristo, Fabiano Piúba e Luana Tolentino.

Serviço

5.º Festival Literário Internacional de Itabira – Flitabira

Data: De 29 de outubro a 2 de novembro, quarta-feira a domingo

Local: Fundação Cultural Carlos Drummond de Andrade e avenida lateral.

Entrada gratuita

Toda a programação é transmitida online pelo Youtube @flitabira

Acesse a programação completa em www.flitabira.com.br

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