Matar e morrer em Itabira: o descaso 

Mãe deixa igreja no centro de Lviv com o corpo do filho, morto num bombardeio russo a uma base militar da Ucrânia

Lucas Ferraz*

Acabo de chegar de uma experiência de quase um mês cobrindo a guerra na Ucrânia, evento cujas dimensões ainda estão para ser conhecidas, mas que certamente mudará o mundo tal como o conhecemos até aqui.

Uma guerra revela sempre o pior da espécie humana, mas também é possível entrever, ainda que em menor medida, reflexos do que existe de melhor. O mais forte é testemunhar a dor, a revolta, a impunidade e o medo.

São os sentimentos que vi em grande parte da população ucraniana, que protagoniza nestes dias o maior deslocamento em massa no mundo desde a Segunda Guerra Mundial (1939-45).

Na cidade de Lviv, no oeste do país, acompanhei num dos dias de cobertura o velório de quatro soldados ucranianos mortos num bombardeio russo realizado contra uma das bases mais importantes das Forças Armadas da Ucrânia, não por acaso utilizada pela Otan (a tal Organização do Tratado do Atlântico Norte) até pouco antes da invasão da Rússia.

Ali, revivi o sentimento da morte violenta, repentina e acintosa. Ver a dor de tantas mães exacerbou ainda mais a dor da minha própria mãe, que também se despediu há pouco de um filho morto de forma violenta num episódio que muitos em Itabira também chamam de guerra.

Este texto amadureceu nos dias de trabalho na Ucrânia. Ao longo de minha carreira de jornalista, me dediquei a documentar e relatar os infernos, as injustiças e as dores dos outros. Agora uso o ofício para relatar alguns círculos de um inferno particular, mas de interesse público e bem brasileiro. As guerras, afinal, precisam ser narradas.

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Estou escrevendo sobre um episódio cujo desfecho é incerto – como a guerra da Ucrânia, e como quase tudo que é objeto do jornalismo, que também conta a história a quente. Há uma investigação em andamento.

Embora a Polícia Civil de Itabira tenha sugerido que ela está praticamente encerrada, há fatos e procedimentos ainda desconhecidos que sugerem o contrário.

Alguns desses fatos mostram como o descaso é inerente à função e responsabilidades sociais. Também expõem as travas de um sistema judicial decadente, de um país igualmente decadente. Vale registrar, com uma certa dose de esperança necessária: por sorte, nem todas as pessoas se comportam da mesma maneira.

De toda forma, este texto deve ser lido como umas memórias documentadas de um itabirano sobre matar e morrer na sua cidade. Sobre violências continuadas, silêncios e omissões. Meu irmão não é a única vítima.

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Enterro no cemitério de Lviv de um dos militares ucranianos mortos em ataque da Rússia a base que era usada por tropas da Otan até dias antes da guerra (Fotos: Lucas Ferraz)

Quem vai reparar uma mãe ucraniana que perdeu o filho por bombas jogadas por decisão de Vladimir Putin? Elas não têm essa esperança.

No Brasil, onde a vida vale ainda menos e a ode à violência ganhou contornos inimagináveis, com mais armas em circulação e uma apologia às milícias promovida pelo governo sem precedentes na história brasileira, fica ainda mais difícil esperar reparação.

A Polícia Civil de Minas Gerais funciona com quase metade de sua capacidade. Faltam investigadores, escrivães, delegados, além de uma estrutura mínima de trabalho. É um problema de Estado, de política e também orçamentário.

Isso sem falar na morosidade e na baixa eficiência da Justiça, outro problema estrutural brasileiro. Em Itabira, a juíza da área criminal não consegue atender em tempo útil as demandas fundamentais para solucionar um crime ou realizar uma investigação policial digna desse nome.

É um cenário que ajuda a agravar a engrenagem da impunidade numa cidade que está largada, vendo cinicamente seus filhos serem eliminados. A vida já não é mais besta na cidadezinha qualquer de cento e poucos mil habitantes, berço do minério de ferro, das barragens de rejeito e do maior poeta da língua portuguesa.

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Na noite do dia 16 de julho de 2021, meu irmão, Gabriel de Freitas Ferraz Araújo, foi assassinado com quatro tiros logo após deixar a filha na casa da mãe, no bairro Jardim das Oliveiras.

Ele foi alvejado dentro do carro, na frente da residência onde acabara de entrar. Uma clássica execução. Uma moto encostou ao seu lado, um homem desceu e disparou à queima roupa.

A primeira falha da polícia ocorreu ainda no local do crime ao não apreender o telefone celular do meu irmão, que estava dentro do veículo.

Em crimes de homicídios, principalmente, o telefone celular pode trazer informações cruciais. Teria ele recebido uma ameaça?

Ao não apreender o aparelho, a polícia deu brecha para algo mais grave: a testemunha do crime tomou posse do telefone do meu irmão após ele ser assassinado e o manuseou, alterando a configuração do seu WhatsApp, entrando e mudando fotos nas redes sociais dele e ainda realizando chamadas no seu número.

Registros do e-mail do meu irmão, habilitado em seu telefone, mostram que seu aparelho foi levado dois dias depois do crime para um endereço no centro de Itabira, por onde permaneceu por quase 12 horas. Só após esse passeio o telefone foi entregue à polícia. Por quê?

Achei que essas informações, passados mais de oito meses, estariam presentes no inquérito, mas elas ainda não tinham sido levantadas. Um ofício com esses registros foi enviado ao Ministério Público no final de janeiro.

*

O fato de o telefone celular do meu irmão não ter sido apreendido causou estranheza nos próprios investigadores. Duas escrivãs da Polícia Civil de Itabira que colheram meu depoimento na delegacia, em julho, se mostraram surpresas com a informação.

Antes da publicação deste texto, enviei uma pergunta ao delegado regional de Itabira, Helton Cota Lopes, que pediu para ser repassada à assessoria de imprensa da Polícia Civil em Belo Horizonte, indagando se “não recolher o celular de uma vítima de homicídio da cena de um crime fazia parte do procedimento padrão adotado pela Polícia Civil”. Não houve resposta, nem do delegado, nem da assessoria de imprensa.

Pode ser que o telefone não traga informação relevante. Mas impressiona que um objeto tão importante para a vida social de um ser humano assassinado, subtraído da cena do crime, seja tratado com tamanha desídia.

Num homicídio, o fator tempo é fundamental. Quanto mais ele passa, mais difícil fica para responsabilizar os culpados e reunir provas. Nesse processo urgente e penoso, muitas pessoas foram e são atentas, compreensivas e humanas.

Mas o mundo real é outro. “Na guerra, até os anjos perdem as asas”, me disse na Ucrânia um jornalista calejado em cobrir conflitos.

Itabira, após tanto tempo, tem finalmente um representante na Assembleia Legislativa de Minas. Ainda em julho, procurei o deputado estadual Bernardo Mucida, alguém que poderia, pela função parlamentar que tem, pedir informações e ajudar a jogar luz e pressão sobre o caso. Como deputado e itabirano da mesma geração que a minha, quem sabe ele não poderia ajudar na busca por reparação, verdade e justiça?

Conversei com Mucida numa noite de julho de 2021. O deputado falou de sua atuação parlamentar, do esforço que fazia para aparelhar e dar melhores condições de trabalho para a Polícia Civil. Em resumo, tratou-me como um eleitor e não pôde fazer nada além de discurso.

Quem tomou a iniciativa de escrever um requerimento à delegacia sobre o caso, cobrando investigação, foi um outro deputado estadual, nascido a 297 quilômetros de Itabira. Isso levou a outro episódio: a ameaça de um delegado.

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Uma das coisas que mais incomoda um policial é parente de vítima aparecendo na delegacia para falar sobre a investigação. Aprendi isso acompanhando inquéritos como repórter em Belo Horizonte, Brasília e São Paulo.

Minha experiência em Itabira não foi diferente, apesar do discurso dos policiais de que a família é essencial na investigação de um crime.

Muitas vezes um agente não tem nada para dizer e, para apresentar uma resposta, acaba falando qualquer coisa. Os desencontros, a menos que você mantenha a cabeça debaixo da terra, são inevitáveis.

Em agosto de 2021, semanas depois do assassinato do meu irmão, estive na delegacia para conversar com um investigador e lá reencontrei o delegado Diogo Luna, que eu havia conhecido dias antes e conduzia temporariamente o inquérito.

Na ocasião, o delegado Luna pediu para que eu vasculhasse as gavetas do meu irmão para ver se encontrava alguma anotação com a senha do telefone celular dele. Por que ele pedia isso se a testemunha do crime sabia a senha?

Ao me ver na delegacia, depois, conversando com um investigador, o delegado Luna fez uma cobrança. Segundo ele, eu não tinha feito o dever de casa que havia pedido. Disse que perdia tempo respondendo requerimento de deputado enquanto deveria estar trabalhando.

E ameaçou solicitar à Justiça um mandado de busca e apreensão dentro da minha casa – sim, na casa de uma mãe que tinha perdido o filho havia alguns dias – para ver se encontrava algo útil para a investigação.

O investigador que testemunhou a conversa, sério e respeitado em Itabira, ficou calado.

Antes de sair da sala, o delegado Luna disse que eu estava atrapalhando a investigação, enquanto a testemunha do crime estava ajudando a polícia.

Não demorou para ficar claro que o cenário era outro. Ao contrário do que dissera, a testemunha se recusou a colaborar com o inquérito, segundo informou a polícia semanas mais tarde, e não forneceu a senha do aparelho.

O telefone foi enviado para o IC (Instituto de Criminalística) da Polícia Civil. Até a publicação deste texto, não há notícia sobre a conclusão da perícia.

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Encaminhei ao delegado regional de Itabira e à assessoria de imprensa da Polícia Civil algumas indagações sobre a ameaça de um mandado de busca e apreensão na minha casa. É esse o procedimento padrão da Polícia Civil? Não houve resposta nem da instituição, nem do delegado Helton Cota Lopes.

Segundo informaram, o “inquérito encontra-se em fase de conclusão, aguardando o cumprimento de algumas diligências”. “Tão logo os procedimentos sejam finalizados, mais informações serão repassadas”.

Ao delegado Diogo Luna, indaguei também o motivo do mandado de busca e apreensão que ele aventou e perguntei se ele já havia adotado esse procedimento em outras investigações. Sua resposta, enviada por meio da assessoria de imprensa:

“A Polícia Civil atua de forma imparcial, inclinada, única e exclusivamente, a apurar o fato. As delimitações preliminares, apuradas no início da investigação, dão conta da existência de envolvidos, em princípio, tratados como investigados, vítimas, testemunhas e informantes, cujo tratamento pode ser modificado no decorrer da apuração”, respondeu Diogo Luna, que prosseguiu:

“Dessa forma, a dinâmica da investigação pode motivar a representação judicial por providências de natureza cautelar para a busca de elementos informativos quanto ao fato, independentemente do tratamento inicial dado à pessoa. Nesses casos, compete ao delegado de polícia representar judicialmente pela busca e apreensão na casa de qualquer pessoa”.

*

No dia 25 de janeiro, a Polícia Civil de Itabira divulgou nota à imprensa informando a apreensão de um menor de 17 anos acusado de envolvimento em vários crimes na cidade.

Ele é apresentado como “suspeito de ter participado do homicídio” do meu irmão e de outras três pessoas, todas no segundo semestre de 2021. Seria um alento tal informação, não fosse a irresponsabilidade em que ela foi apresentada.

“Todos os crimes tiveram como motivação a disputa do tráfico de drogas”, disse a nota da Polícia Civil.

Se os policiais têm provas de que meu irmão estava envolvido no tráfico de drogas, devem apresentá-las. Trata-se de algo elementar.

Esse foi, inclusive, um pedido feito no início do inquérito: a família deseja a verdade – embora, como jornalista, já tenha aprendido que a verdade pode ser algo inatingível.

Mas, sem as provas, a polícia apenas mancha e agride a memória de um morto e dos seus. Como se tivessem matado meu irmão uma segunda vez.

Dias depois da divulgação da nota, o Ministério Público enviou um ofício à delegacia dizendo que “não houve apresentação do resultado da ordem de serviço (…) para que fosse apurado o evento, indicando a motivação do crime, o modus operandi, a provável localização da arma de fogo utilizada, e arrolar testemunhas diretas e indiretas” no inquérito.

A informação divulgada pela polícia provavelmente tem a ver com um primo nosso preso sob a acusação de envolvimento com o tráfico de drogas em Itabira. A morte do meu irmão – que nada tinha a ver com a tal disputa – teria sido um modo de atingi-lo. Talvez essa seja a forma mais fácil e rápida de apresentar uma resposta.

Se há provas, os familiares precisam conhecê-las. Afinal, a função primordial da polícia não é proteger a vida?

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É cedo para saber se a investigação vai conseguir apontar os responsáveis e sobretudo os motivos do crime. O tempo perdido e os resultados mostrados até aqui não permitem otimismo.

O que fica evidente é o descaso, uma peça importante na engrenagem de morte e violência de toda guerra.

*Lucas Ferraz é jornalista, correspondente em Roma, Itália, de várias publicações brasileiras, autor do livro Injustiçados

 

 

 

 

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1 Comentário

  1. Sei de sua dor e de sua revolta, também tenho experiência da incapacidade policial, ou talvez não seja incapaz a polícia… pode ser compromisso de manter o crime na ordem do dia como um delirante modo de vida. Se a polícia de Itabira não faz necropsia num corpo assassinado, o que esperar? Espera-se apenas que os meganhas prendam jovens pretos marcados pra morrer. Eles ficarão quietos sobre o corpo morto, não é a dor deles, eles não se importam, eles praticam a política do medo com suas caras de perversos e uma arma na cinta. “Aí meu, perdeu”, é o bordão da polícia para o povo.

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