Marcas da mineração descritas por Drummond podem ter impulso com Zema
Estátua de Carlos Drummond de Andrade no memorial projetado por Oscar Niemeyer em homenagem ao poeta em Itabira, Minas Gerais
Foto: Alexandre Rezende/ Folhapress
Se ganância chegar à Serra do Curral, governo do estado transformará Belo Horizonte em ‘retrato na parede’
Por Karla Monteiro*
Folha de S.Paulo – Majestosa, ela é o nosso contorno, a nossa muralha, o repouso para o olhar. O Belo Horizonte, afinal. Que tipo de idiota aprova um complexo de mineração no próprio quintal? Se você espiar atrás da nossa montanha, já tiraram um naco dela, tornando-a, em parte, paisagem de fachada. Agora querem triturar o resto: o equivalente a 57 campos de futebol, 57 hectares de Mata Atlântica.
Ao saber do perverso empreendimento da Taquaril Mineração S.A. (Tamisa), que conta com o entusiasmo do governador Romeu Zema, pensei em Carlos Drummond de Andrade, pensei em Itabira, pensei no livro de José Miguel Wisnik, “Maquinação do mundo“, lançado pela Companhia das Letras. No longo ensaio, o autor explorou a relação do poeta com a mineração.
Segundo conta no primeiro capítulo, “Chegada”, a obra nasceu do susto, do espanto ao se deparar, pela primeira vez, com a cidade natal de Drummond: Itabira do Mato Dentro: “A estranha singularidade do lugar incitava a ir mais fundo na relação do autor de ‘A máquina do mundo’ com as circunstâncias que envolvem a ‘estrada de Minas, pedregosa’, a geografia física e humana, a história da mineração de ferro”.
Destino mineral
Assim como Drummond, todo mineiro cumpre o famigerado “destino mineral”. “Por isto sou triste, orgulhoso: de ferro. Noventa porcento de ferro nas calçadas. Oitenta porcento de ferro nas almas.” O nome do Estado já carrega a nossa sina: Minas Gerais. Em vez de sermos chamados de mineiros, aliás, devíamos ser os minerados.
“O maior trem do mundo. Leva minha terra. Para a Alemanha. Leva minha terra. Para o Canadá. Leva minha terra. Para o Japão. O maior trem do mundo. Puxado por cinco locomotivas a óleo diesel. Engatadas germinadas desembestadas. Leva meu tempo, minha infância, minha vida. Triturada em 163 vagões de minério e destruição.”
“Maquinação do Mundo” é um livro triste, um ensaio sobre o vazio que a mineração deixa na nossa memória. Em 1910, o extinto pico do Cauê fora apresentado ao mundo num congresso internacional de geologia como uma das maiores jazidas de ferro do planeta. A partir daí, iniciam-se os embates que culminam com a criação da Vale Rio Doce, já nos anos 40, pelo governo de Getúlio Vargas.
Em verso e prosa, Drummond partiu para a briga. Nas crônicas de jornal, travava o embate direto com a Vale. Rastreando toda a produção do poeta, Wisnik fez o completo inventário das marcas explícitas e implícitas da mineração na vida do mineiro. De todos os mineiros: “Cada um de nós tem seu pedaço no pico do Cauê”.
A propósito, apesar de ter nascido nesta mina geral, também levei um susto a primeira vez que fui à Itabira, abraçada pela cratera, pelo espectro da montanha do Cauê. De qualquer lugar da cidade, enxerga-se a secular devastação. O ciclo minerador no Estado começou justamente, ali, na Itabira de Drummond.
Retrato na parede
Enquanto escrevo este texto, trava-se a luta pela Serra do Curral. Na argumentação contra a insanidade, os riscos que corremos. Hídrico, considerando que o empreendimento pode interferir na adutora que transporta 70% da água tratada consumida na capital.
Poluição sonora grave, com dinamites explodindo, atingindo inclusive o Hospital da Baleia, situado a menos de dois quilômetros do local destinado à exploração. Qualidade do ar, afetada pela poeira fina e ininterrupta. E, caso não seja suficiente, o imensurável dano ambiental na Reserva da Biosfera da Serra do Espinhaço.
Se a ganância vencer mais esta guerra, o legado do governo Romeu Zema para Minas Gerais será transformar também Belo Horizonte, assim como acontecera com Itabira, com Bento Rodrigues, com o rio Doce, com o rio Paraopeba, com o Córrego do Feijão, com as centenas vidas ceifadas pelos estouros de barragem em Mariana e Brumadinho… Num “retrato na parede”.
Barragem na cidade de Drummond
*Karla Monteiro é jornalista e escritora, publicou os livros “Karmatopia: Uma Viagem à Índia”, ”Sob Pressão: A Rotina de Guerra de um Médico Brasileiro” (com Marcio Maranhão) e “Samuel Wainer: O Homem que Estava Lá”