Manuel Ferreira, B.Léza e como a Morna é também Neorrealismo
Veladimir Romano*
Em diferentes oportunidades, nem sempre se dispõe tempo necessário para familiarizações com objetivos onde esperamos encontrar informação, realidade, virtude; alinhamento ao trabalho que desejamos efetuar.
Por isso, o herói do dia pode muito bem ser o equivalente ao ministro, como aconteceu a seu tempo com Mário Lúcio que, do alto desse pedestal, certa vez, anunciou às ilhas crioulas da costa africana, na sua posição de ministro da Cultura de que «a Morna nasceu em Santiago».
Melhor fosse o tivesse pronunciado em Manila, Darfur ou em Tijuana; ao invés de julgar a memória histórica da Arte pelos farrapos da Política onde indulgente servilismo facilmente toma conta da nossa razão.
Quando ambições de superioridade se transformam numa construção superficial, causas depois nascem orientadas em tempos, mas sem perderem oportunidade quando se filiam observações que podem ser discutíveis, mas não deixam de efetuar reflexos com mau presságio e debate social.
Lembro a seu modo nas páginas de uma das edições da revista/jornal Artiletra, devido ao crescente de opiniões desta natureza, elas indignarem pessoas atentas aos acontecimentos e, com isso, revoltadas com opiniões onde a sua natureza seja identificada nos princípios cretinos de uma crescente tendência para aquilo ao qual poderemos chamar de “racismo cultural”.
Uma aberta queda [indesejável mas persistente] monopolizadora das correntes agora conduzidas pela independência. No período colonial foram expressões musicais de Santiago mais declaradamente tradicionais como o Funaná, Batuco, entre outras formas criadas pelo saber intuitivo do povo de Santiago, aquelas as vítimas de censura aplicadas pelo regime colonial ao elegerem a Morna, como a Coladeira, Valsa ou Mazurca, Fox-Trot, Bolero, marchas e solos, a boa novidade produzida pelo mundo crioulo enquanto a discriminação trancou o evoluir doutras.
Mesmo a tutela imperial da Monarquia nunca terá limitado esta expressão artística e criativa dos santiaguenses ou os primeiros anos da República alguma vez complicou a liberdade cultural do povo.
As coisas ganharam negativismo depois do Estado Novo ao criar sua própria imitação e entendimento sobre a riqueza da diversidade em lugar tão pequeno como as ilhas de Cabo Verde, preferindo estabelecer obstáculos aos quais o restante do povo das outras ilhas são e foram completamente alheios.
Durante algum tempo vivemos o movimento das marés no instante preciso quando se revela, ora dissimula, ficou um pouco dessa ideia em édito iconoclasta a qualquer pretexto expressar esquemas soberanos aclamados pela eventualidade de quantos gostam de imperar pelos conflitos, comprometer, criar barreiras divisórias.
Usemos as palavras do ilustre Guillame Du Bellay (1522-1560): «Dont ils sont les maris et le Turc l´adultèré… leurs changes, leur profits, leur banque et leurs trafiques…».
Compreende-se faz tempo sobre estes alguns ao transformarem Santiago a um hipotético vazio, ele ser o centro universal deste culto crioulo. Será aquilo que Nicolo Paganini (1784-1840) disse ser… «Giunta delle speziere, prouveditori alla mercanzia» [partindo do princípio de serem duas frases metidas a metáfora, fica ao critério do/a Leitor/a, qualquer necessária tradução]. Vivemos com traficantes da cultura.
Ora, sendo a partilha muito diferente do monopólio, certamente, qualquer Caboverdiano que se preze, perante tal desolação e recusa, espera nunca prestar vassalagem à ruina e abundante desperdício de tempo consumido em torno a fantasias.
Já se adivinhava que o epicentro da Morna viria trazer cegueiras, manifestar soberba entre navegações à vista e tentáculos prontos a semear outras realidades até à liberdade de expressão; pois, Cabo Verde, vive o seu sistema censório qual a nossa Imprensa submeteu a razão e verdadeiro interesse informativo.
Cabo Verde não criou espaço ao jornalismo de investigação, pesquisa e manutenção de fontes.
Quem governa, ainda com toda a propaganda do direito democrático vigente, por outro lado impede, através de artifícios, outro tipo de jornalismo e, ao jornalista, resta-lhe obedecer puxado a rédea-curta.
Criou-se um sepulcro coberto a veludo-negro onde todos se iluminam com archotes quando é preciso. Mais valia como grande músico, Mário Lúcio tivesse tido a feliz ideia de haver criado um verdadeiro “Arquivo Sonográfico”, coisa que Cabo Verde não tem e, pelos vistos nada incomoda restantes ministros da matéria cultural.
Na Rússia de Catarina II [a “Grande”, pelo enorme contributo às artes], ao importar talentos italianos e não só, fez nascer a Ópera russa, mas nunca disse ter esta modalidade musical nascido ali.
Na Finlândia o Tango é uma expressão nacional mas este povo nunca afirmou ali ter nascido tal coisa. No Acre ou Ceará, não afirmam serem criadores do Chorinho como Fado não nasceu em Bragança e ninguém discute que o Flamenco seja de Madrid.
Neste sentido, sabendo da riqueza contida na Morna, esta conseguiu estabelecer razões chamando singular atenção ao seu propósito.
B.Léza, ainda da sua aventura por terras de Sotavento, acumulou informação suficiente guardando para mais tarde construir uma pequena monografia incluindo fotos, algo muito curioso e de sentido pedagógico como ele tanto gostava.
Mais um inédito absoluto descoberto recentemente e guardado em caixotes nunca abertos onde espólio ficou retido pelo tempo como ausência. O Estado Novo e a consequente guerra colonial tocou a todos, marcou negativamente a vida portuguesa e das colónias; contudo, do passado, ficaram coisas boas e das relações, nasceu uma positividade inegável.
O jovem Manuel Ferreira já feito jornalista, embora colocado como soldado ao serviço, foi em Cabo Verde onde estranhamente descobriu rara felicidade, crescendo também como escritor. A Morna desafiou-lhe a já pródiga inteligência e daqui à intuição criativa, foi um salto.
Manuel Ferreira é aquele personagem encaixado na perfeição numa Caboverdianidade adquirida por direito próprio e, ao frequentar como tanta gente o reduto genuíno do mundo mais crioulo do Atlântico, navegou a novas águas.
É com B.Léza e frequentando os locais, como a casa do músico que se inicia uma paixão franca até ao iluminismo espiritual daquilo que aparece diante dos olhos e da alma. De sua autoria obras onde se faz a construção duma escrita depois apelidada de “Neo-realismo”, aprendemos essa nova faceta em “Morna”, edição de 1948 da Início [Contos de Cabo Verde]; depois “Hora di Bai”, ficção editado pela Europa-América, “A Aventura Crioula” no ensaio, “Morabeza”, “Morna _Expressão do Lirismo”.
Terão sido os primeiros escritos a chegar longe, atravessando fronteiras não só pelo reconhecimento e mérito mas pela novidade do tema, incluindo prémios. Nas suas obras, Manuel Ferreira é absorvido por várias figuras, focaliza nomes históricos onde se reconhece a Brava, São Vicente e pouco mais, ainda que descobrindo o amor da sua vida ao travar conhecimento com não menos ilustre nativa das ilhas por quem se apaixonou, casou.
Orlanda Amarilis, igualmente autoridade na escrita das ilhas, nunca emendou fosse o quer que fosse nessa escrita e daqui o verdadeiro estranho quando teimosamente alguns procurarem numa afirmação derrotista, a Morna ter nascido em Santiago.
B.Léza no seu trabalho da Pequena Monografia da Música das Ilhas Cabo Verde deixa-nos ou faz impar retrato da riqueza musical por episódios:
1< Não foram encontradas referências sobre qualquer profundo entendimento da música em torno de criações da Morna pelos diferentes cantos da ilha de Santiago.
2< Não se descobre qualquer partitura elementar com mornas locais.
3< Não se descobrem duetos, grupos dinamizadores “pau & corda” em locais referenciados.
4< Não aprecem referências concretas na criação de espetáculos onde a beleza desta expressão se veja, variações mínimas se manifestem a casamentos, aniversários ou até homenagens, quer enterros com idêntica aparência que se conhece de outras ilhas.
5< Difícil tem sido em todas ocasiões descobrir difusão pela ilha nem notas válidas de solfejo dedicadas a qualquer começo da Morna.
6< Não se descobrem ou encontram históricos válidos de autores, nem sequer músicos genuínos, figuras ou viva compreensão instrumental que consigam simbolizar melodias singulares da ilha.
- Não se encontra técnica específica no domínio dos instrumentos mais utilizados na construção da Morna.
- Não se descobrem obras marcantes identificadas localmente, estilos, referência social, criadores, caso circunstância melodiosa mais verso.
- Compreender a Morna exige quase um guia de ouvinte permitindo situar essa manifestação artística, a expressão musical, correspondência do contacto cultural, enquanto a musicalidade cumpre o seu objetivo.
- Na teia musical da ilha, não atuam vertentes com o timbre sonoro que consigamos generalizar pela incorporação da Morna, esta nos ensine o caminho de Santiago.
Termina ele ou pudesse criar conhecimento específico desse caráter prático contido na Morna; possível de a identificar como elo fundamental na escala divisória onde se consiga encontrar tão reveladora raiz na “praxis”, dita válida, produzindo elementos comprovativos de certa Morna como feitura ideal numa empírica existência na génese desse processo cultural da ilha de Santiago.
As coisas nem são como as queremos, antes como devem de ser. A certas alturas, nem sequer estreita relação quando ao longo desses anos entre 1930-34, momento destinado por B.Léza à busca incessante de argumentos ao seu livro, sobrou a esta monografia uma missão relevante que hoje se dignifica por quem a criou [mas] entendemos, causará calafrios aos que preferem rebuscar invenções justificando vazios que a cultura de Cabo Verde não precisa.
Podemos encontrar e debater situações sociológicas, antropológicas, gnoseológicas, anímico-espiritual e até de utilidade social; contudo, B.Léza, ilumina a sua prosa e valida estes estudos como produto a uma razão vinculada aos diferentes acontecimentos quando ao tocar mornas em serenatas oferecidas ao público da ilha de Santiago, estranhamente fosse apupado [no presente, igual acontecimento se passou com Titina, daí que na sua última atuação na Praia, em choque e revoltada com este negativo acontecimento, escreveu num impulso a letra que depois Manuel D´Novas musicou e do qual deu ao conhecimento intitulada: “Nôs Morna”, um grito de protesto contra aqueles que denigrem património]. Pois, B.Léza e seus companheiros das tocatinas, devem ter sentido os mesmos calafrios e sombria surpresa.
Se tempos modernos trouxe outra posição e o encaixe da Morna, hoje se pode fixar na ilha de Santiago, bom será a todos nós numa nova geração de músicos e compositores… importante e como afirma o saudoso Fernando Quejas: «Pa nhôs ka txâ Morna morrê».
No entanto, isto através do velho código de honra, coesão, generosidade, estabelecendo afinal a própria evolução deste processo cultural; marcar elementos simbólicos do pedaço de História que a pequena nação está a construir e será o advento, espólio aos futuros. Devemos combater uma teomania solta e funesta, decidindo a conclusão da nossa obrigação nacional.
O famoso e eloquente Johann Wolfgang von Goethe (1749-1832), deixou-nos uma não menos frase, entendida até aos nossos dias com uma das mais esclarecedoras, ainda que pareça simples e óbvia, nunca antes havia alguém dito: «Die Kunst ist nichts anders als das Licht der Natur» [A Arte não é mais nada do que a Luz da Natureza].
Deste modo, o fogo desta gente, nunca poderá ser inflamação da nova ambição divina ou turva certeza desta alquimia malsana. A Morna é de todos, mas certamente nunca nasceu na remota Santiago, tal como na vez pouco esclarecida de um grande músico, poeta, autor; mas mau político e péssimo ministro se lembrou de referir de forma derrotista a sua posição fanática e despropositada.
*Veladimir Romano é jornalista e escritor luso-cabo-verdiano.