Laços de sangue e de crime em Itabira do Matto Dentro – Loucura, Vileza e Porcaria
Obra de Gustavo e Otávio. Exposição Os Gêmeos, no CCBB, Rio. MCS, outubro de 2022
Pesquisa e Fotos: Cristina Silveira
1874 Itabira. O major Luiz Augusto de Figueiredo e Souza. Ao público. Chegando ao meu conhecimento, por cartas que recebi de Itabira, que o sr. capitão João José Martins da Costa Cruz, que se diz muito rico de dinheiro e pobre de dignidade, andava como máscara de bando pelas ruas daquela cidade, apregoando que eu lhe era devedor da quantia de dois contos e tanto, porque descobrira um engano em contas, que tínhamos ajustado em 1871, contas que já tinham sido revistas e examinadas por seu bastante procurador e confidente, o honrado e bem conhecido negociante, João da Silva Torres, em razão de nessa ocasião ter o mesmo Cruz posto duvida no recebimento de três contos e trezentos mil réis, quantia esta que provei com documentos ter-lhe pago, tanto o dito sr. Torres, convencido da exatidão das mesmas contas e de minha boa-fé, fez ver isto mesmo ao sr. Cruz, que lhe autorizou em carta de me entregar a clareza de trezentos e oitenta mil réis, que lhe havia passado naquela data de ajuste de contas de todos os nossos negócios; e que Cruz já tinha tomado para seu advogado o sr. Dr. João Baptista de Carvalho Drumond, que depois de examinar os meus documentos e os achar bons, aconselhou-me que, diante da obstinada posição do sr. Cruz, que, dizendo-se prejudicado, nada contra mim promovia, comprazendo-se somente em querer a todo transe diminuir-me o conceito, eu o chamasse à juízo para ajustar contas e dar-me quitação plena de pago e satisfeito.
Anuindo ao conselho, porque já se tinha frustrado o meio conciliatório exigido pelo sr. Dr. Carvalho Drumond, procurador de Cruz, entreguei meus documentos ao meu advogado, que fez citar à Cruz, para juízo conciliatório, preliminar indispensável para seguir o ajuste seus termos regulares.
No dia da audiência compareceu Cruz, acompanhado por seu advogado. Depois de ter o meu advogado acusado a citação, e mostrado que o fim da citação era uma reparação em termos pela injuria que Cruz arrogava-me, dizendo-se por mim prejudicado, quando nada lhe devia, porque nossas contas se achavam saldadas e examinadas, estando em meu poder os documentos e títulos de dívida, e que a reparação só seria completa com uma quitação de pago e satisfeito firmada por Cruz, tomou a palavra o seu advogado, que, cingindo às explicações menos justas, que por Cruz lhe foram transmitidas, se opunha a quitação, por estar convencido que se davam duvidas, que precisavam ser esclarecidas.
O meu advogado opôs-se energicamente, dizendo que não havia meio termo possível diante da honra ofendida, e que a reparação só se daria na quitação, que era o mais solene desmentido às palavras atiradas por Cruz contra mim.
Novamente tendo a palavra o sr. Dr. Carvalho, autorizado por Cruz, deu-me a quitação, que abaixo segue-se, e constante do protocolo que tendo-lhe sido pedida, bem que por meios incompetentes, a quitação, e tendo ele ex credor (note-se bem) declarado que nada mais quer reaver, desistindo de todo e qualquer direito, que por ventura possa ter, mas de que não tem certeza absoluta, por não ser infalível, e sendo isto em direito uma quitação, não vê porque se exigirá outra coisa.
Ora, sendo tão claras essas frases, e encerrando o mais solene desmentido ao sr. Cruz, entendi, aconselhado por meus amigos, que devia contentar-me, porque minha honra está reivindicada.
Escrevendo para o público, dou aos meus amigos notícia do desenlace da questão e procuro salvaguardar meus direitos futuros, dizendo: nada devo ao sr. João José da Costa Cruz.
Meu procedimento é cauteloso, e necessário mesmo, porque o sr. Cruz há dito às pessoas do Itambé e de Itabira que, depois que levou uma queda de um animal, seu juízo deslocou-se, pelo que pode, por sua morte, deixar qualquer escrito prejudicial a mim, porque o homem sem imputação moral obra às cegas.
Assim procedendo não o faço por medo de sua fortuna, que diz ser de trezentos contos, porque, se ela dista muito do pouco que possuo, como diz ele, ganho muito licita e honestamente para viver com independência, como o tenho feito, e, se a minha fortuna está muito distante da sua, também não nos podemos encontrar em honra e dignidade, por nos distanciarmos, e por isso o único mal, que me pode causar sua fortuna, é tornar-me vítima do bacamarte.
Finalmente, uma história: o homem, que vive 70 e muitos anos, sem se relacionar com a sociedade escolhida, desconhecido para que foram feitos a escova, pente e tesoura, e depois diz: eu sou rico, engana-se, porque a gente boa chama isto loucura, vileza e porcaria.
Florença, 6 de fevereiro de 1874. Luiz Augusto de Figueiredo e Souza.
[Diário de Minas, 17/2/1874. BN-Rio]
Algum desacerto de conta ocorreu, faltou foi clareza na apresentação dos números e documentos antes do embargo ocorrido e ter chegado ao Tribunal de Justiça.
Quanto a viver isolado da comunidade, João José a Costa Cruz foi conhecido tropeiro em meados do século XIX, portanto, vivia sempre em viagens mercantis, mas nem por isto deixou de se casar e formar família.
Do seu legado temos aí inúmeros descendentes e sua antiga sesmaria que ainda se mantém basicamente com as mesmas divisas e confrontações, embora tenha passado nas mãos de diversos proprietários e conta ainda, salvo engano, com mil alqueires ou medida próxima a esta.
E o mesmo deixou testamento bem claro e nele constando a alforria de seus escravos com algum legado a eles.