A trágica história de Fortunato, o verdugo de Ouro Preto, que enforcou quatro em Itabira do Mato Dentro
Grafite num muro da Rua Al. Alexandrino, Santa Teresa, Rio, março de 2018
Fotos: Cristina Silveira
A Vila de Utopia inicia hoje a série Laços de sangue e de crime. Trata-se de uma coletânea de notas, crônicas e reportagens noticiando os crimes ocorridos na cidadezinha de Itabira, hoje pertencente à mineradora Vale. Começamos com a trágica história de Fortunato, reportada em inúmeros jornais das capitais do país. Reproduzimos três delas. Boa leitura.[MCS]
Violação de Corpos. Cinismo de Estado
1877 Minas Gerais. Há nesta província uma criatura, encarcerada desde 1833 (44 anos), pelo assassinato perpetrado na pessoa de sua senhora, e que só deixa as trevas do cárcere para mostrar-se nas sombras do patíbulo.
Chama-se Fortunato, o algoz, cuja vida resume tudo o que de mais torvo e miserável se pode imaginar na terra e na sociedade.
Nascido escravo, áureo nessa triste condição os vícios e infortúnios que a acompanham: embriaguez, ingratidão, ignorância e corrupção precoce. Tão danosas sementes não podiam deixar de produzir dentro em pouco frutos de maldição.
Assim aconteceu. Fortunato assassina sua senhora, é condenado à morte pelo júri e salva a sua cabeça da forca sujeitando-se ao ofício desgraçado de algoz, que desde então tem exercido nesta província e também na do Rio de Janeiro.
Do cativeiro passou deste modo para a calceta do galé e desta para a sinistra tarefa de carrasco. Sempre a escravidão com seus horrores e sombrias projeções sobre a fronte do desgraçado, cuja natureza embrutecida não tem hoje, exceto a forma, nada que o assemelhe ao homem; nem a inteligência, que jaz inteiramente obumbrada, nem a vontade, nele convertida agora em instinto, nem a sensibilidade, inteiramente extinta em longa existência de atrocidades, as primeiras cometidas por impulso próprio, movimento das más paixões que a sociedade não tratou de refrear pelo ensino, todas as outras perpetradas por ordem e com recompensa dessa mesma sociedade, de cuja sanguinária justiça é ele o executor terrível.
Desde 1838 acha-se preso na cadeia de Ouro Preto, e, em sua pavorosa e desgraçada existência, Fortunato tem como algoz público, realizado oitenta e oito execuções!
Este algarismo aterrador, síntese da abjeção do verdugo, da desgraça de suas vítimas e de uma miséria social repulsiva que a civilização cristã fará desaparecer, nos enche de tristezas profundas e reclama um paradeiro da lei.
Há cerca de dois anos um distinto escrito nacional, narrando eloquentemente a miséria existência de Fortunato solicitou para ele o perdão do imperador. Se nos fora licito dirigir também um grande pedido ao primeiro magistrado da nação e ao parlamento da pátria, nós o faríamos com ardor.
Não seria apenas uma solicitação em prol desse desgraçado, mas suplica d’alma, brado da religião e da sociedade, para que se rasgue de nossa legislação a página negra onde o espirito draconiano do passado exarou em letras medonhas a pena da morte, talião terrível que perpetua o crime pelo crime e vincula a fúria selvagem do bandido à serenidade brutal do carrasco.
Não seria então o verdugo só o liberto do bárbaro destino, mas o próprio instrumento do suplício que se quebraria para sempre nas mãos ensanguentadas de algoz.
Eis, segundo o Mosaico de Ouro Preto, as execuções capitais realizadas pelo mísero Fortunato:
No Ouro Preto, 2 execuções, na Itabira 4, em Mariana 5, no Serro 8, na Conceição 2, na Diamantina 2, na Leopoldina 5, em S. João Nepomuceno 1, Mar de Espanha 4, Barbacena 3, em Sabará 4, no Curvelo 3, em Pitangui 2, em Queluz 2, em S. João del Rey 2, na Campanha 1, em Caldas 1, em Pouso Alegre 1, no Bonfim 9, na Oliveira 5, no Piauhy 1, no Araxá 5, na Barra Mansa 1, em Campos 5, no Feijão Cru 5, na Piranga 3, no Rio Preto 1, em Jacuhy 1, em Três Pontas 1, em Baependi 2, na Uberaba 3. Soma 88!
[Jornal de Recife (PE), 21/8/1877. BN-Rio]
1889 Um pouco de tudo
A propósito do último carrasco escreveram ao Jornal do Comércio da corte, de Ouro Preto:
“Sob esta epigrafe publicou uma folha da capital do império a notícia do falecimento, na cadeia desta capital, em 9 de julho de 1883, do carrasco Januário, que exercera o seu desprezível emprego desde 1835 até aquela data, e anunciou a exposição de uma fotografia tirada logo depois de seu falecimento.
No dia seguinte o dr. Lacerda, digno diretor do Museu Nacional, em carta publicada na mesma folha, prometeu, em benefício da ciência, empregar meios para obter os crânios do carrasco Januário Fortunato, também há alguns anos falecido na mesma cadeia, iniciando com esses dois espécimes uma coleção de crânios de criminosos, que ainda não possuímos.
Desejamos auxiliar o distinto diretor em suas investigações antropológicas, começaremos retificando estas notícias menos exatas, que atribuímos a informações incompletas.
Não houve na cadeia desta capital outro carrasco além de Fortunato, que nasceu em Lavras, era filho de Engracia e Jeronymo, escravos de Antônio Carlos Garcia, e faleceu na enfermaria da mesma cadeia a 9 de julho de 1883.
Parece, pois, que houve engano de nome, e que Januário e Fortunato são o mesmo indivíduo.
Fortunato era de cor preta, tinha os cabelos carapinhados, olhos pretos e vivos, semblante risonho, sessenta e duas polegadas de altura, um aleijão na mão esquerda, e duas grandes cicatrizes, uma no estomago e outra nas costas.
Foi recolhido à cadeia em 7 de julho de 1833, por ter, meses antes, assassinado sua mulher Anna Custódia de Jesus, julgado e condenado a galés perpetuas 35 anos depois, em 13 de novembro de 1868.
Não consta o julgamento da apelação ex-ofício interposta das decisões do júri para a relação da corte, cujo distrito compreendia o território desta província.
Fortunato exerceu o oficio de algoz durante 40 anos, a partir de 1835; infelizmente só há notícia de algumas execuções que fez em diversos termos desta província, sendo a primeira em 1840, na cidade de Itabira, e a última em 1858, na Diamantina.
Neste período de 18 anos (1840-1858) deu se a morte na forca a 41 sentenciados, incluindo-se neste número três mulheres.”
A referida folha explica do seguinte modo como Fortunato se tornou carrasco:
“Fora condenado à morte e conjuntamente com ele foram condenados os autores dos seus dias; não havia em Minas um executor para a sentença que passara em julgado; e Januário requereu ao governo ser provido no ofício de carrasco, comutando-se em prisão perpetua a pena de morte a que estava condenado.
Deferido o pedido, realizada a transação imoral, entrou Januário em exercício, e as primeiras execuções que fez, as primeiras pessoas que matou, foram seu pai e sua mãe.
Vive, é certo, esta tradição, mas o fato não passa de puro invento, pois não é correto que Fortunato fosse condenado à morte, nem as pode crer que houvesse um governo, um juiz tão perverso, que mate como o próprio Fortunato, que atendesse à imoral solicitação e permitisse àquele desgraçado executar seus próprios pais.
Um dos sentenciados à morte, que devia ser executado por Fortunato, no dia anterior ao designado para a execução, tentou matá-lo, atirando-lhe profundo e extenso golpe de navalha no estomago e nem assim escapou-lhe às garras; Fortunato curou-se e enforcou o seu ofensor, cuja execução fora adiada.
Não foi este o único atentado contra a sua existência; diz-se também que outro sentenciado, que devia ser enforcado por ele, fez-lhe um grande ferimento nas costas; o infeliz, porém que já parecia desligado da espécie humana, continuou a exercer a profissão.
Consta-se que em certa ocasião, voltando de uma viagem a um dos termos do norte da província, onde tinha ido exercer o ofício, deixou embriagados, na vizinha cidade de Mariana, os soldados, que o conduziam, e veio só recolher-se à cadeia desta capital.
Fortunato tinha 25 anos de idade quando foi preso, faleceu com 75 e foi sepultado no Cemitério das Dores, da freguesia de Antônio Dias. Esteve, pois, na cadeia 50 anos.
Pouco antes de falecer tirou-se lhe, no leito da enfermaria, a fotografia, que não sabemos se é a mesma exposta aí.
Não sendo marcadas as sepulturas no Cemitério das Dores, é difícil saber a que contém os restos mortais do carrasco; se houver, porém quem o indique, o dr. Lacerda terá o primeiro crâneo de sua projetada coleção.
[Diário de Pernambuco, 8/1/1889. BN-Rio]
1928 O último carrasco mineiro
O preto Fortunato, durante 41 anos de “ofício”, executa oitenta e sete sentenciados.
A história do preto Fortunato, o ultimo carrasco mineiro, constitui uma triste página da crônica judiciária do vizinho estado. Durante os 41 anos em que Fortunato exerceu o seu sinistro ofício, foram executados em várias cidades mineiras oitenta e sete condenados.
Há pouco, um jornal mineiro publicava interessantes dados sobre a história do último carrasco naquele estado. Desses dados extraímos o que segue e que, certamente, interessará aos leitores.
Como Fortunato se tornou carrasco. Fortunato José era filho da freguesia, depois cidade de Lavras, na Oeste de Minas. Era escravo de d. Custódia, viúva de João Paiva, que criou o moleque Fortunato com excepcional bondade e carinho.
Apesar, porém, dos cuidados, do afeto mesmo, com que era tratado desde criança, os maus instintos se desenvolviam dentro da alma do escravo. Trazendo d. Custódia sempre em sofrimentos, Fortunato se entregará ao jogo, à embriaguez e outros vícios.
Admoestado frequentemente, mas com brandura, por sua senhora, o escravo tomou-lhe grande ódio e, um dia, enfurecido, ao ser censurado por uma de suas feias faltas, pegando num pedaço de pau, avançou para d. Custódia, prostrando-a, sem vida, com bordoada certeira na fronte.
Preso imediatamente, depois julgado, foi condenado à pena última, isto é, a morrer na forca. Mas a pena não chegou a ter execução. Embora não houvesse, ao que parece, nenhum acordo oficial com Fortunato ficou estabelecido que sua pena seria comutada em prisão perpetua, com a condição de servir ele de algoz.
Aceita a proposta, desempenhou Fortunato “criteriosamente” as suas funções durante mais de 40 anos, sucedendo a Antônio Rezende, o antigo carrasco.
As vítimas. A maneira porque o algoz negro consolava as suas vítimas, revelava bem a fria crueldade do homem. É um traço que vale por um retrato moral.
Na véspera, ou horas antes da execução, ia ele conversar com os sentenciados, para consolá-los. Corria entre o povo que Fortunato, nessas ocasiões, pedia aos condenados dinheiro para que o laço fosse feito de forma que a morte se desse instantaneamente.
Se os presos não podiam pagar-lhe ou não tinham dinheiro – essa, a lenda – ele preparava um laço que demorava a morte alguns minutos, fazendo o condenado sofrer horrivelmente.
Fortunato, porém, sempre se defendeu dessas acusações, declarando que o seu laço era sempre um só, que produzia a morte a mais rápida possível.
O seu modo de consolar era sempre o mesmo para todos os sentenciados. Passando as mãos enormes sobre a cabeça da vítima, e apalpando-lhe a nuca, ele dizia:
– Não precisa ter medo, cabra. Isso aqui desloca num instante. Você nem sente. É assim como quem toma óleo de rícino… É só virar num gole, e acabou…
O retrato psíquico do carrasco
O preto Fortunato era alto, musculoso e ainda se conservava forte em 1877.
Tinha a testa curta, o nariz achatado, os molares bem salientes, o cabelo começando logo acima das sobrancelhas, os olhos fundos, a boca larga, os dentes perfeitos, os lábios não muito grossos, o queixo largo coberto por uma barba rala, orelhas pequenas, era, no dizer do nosso informante, um homem feio, mas não horroroso, como diziam aqueles que o viam não com os “olhos da cara”, mas com os da alma, isto é, com predisposição a odiá-lo pela sua profissão e pela sua história.
Muito amável para com as pessoas, Fortunato atravessava as ruas cumprimentando a toda gente, mas trazendo sempre a tiracolo uma corda enrolada. Não tinha confiança nas cordas das forcas dos municípios, senão da corda da forca de Ouro Preto, que fora escolhida por ele. Por isso, quando ia executar algum criminoso fora da velha capital, sempre levava a sua corda.
Em 1877, apesar de seus 69 anos de idade e 44 de prisão, queixava-se apenas de reumatismo.
Foram as seguintes as execuções praticadas por Fortunato:
Em Ouro Preto: 2 execuções; Itabira: 4; Mariana: 5; Serro: 1; Conceição: 2; Diamantina: 2; Leopoldina: 5; S. João Nepomuceno: 1; Mar de Espanha: 4; Barbacena: 3; Sabará: 4; Curvelo: 3; em Pitangui: 2; Queluz: 2; S. João D’El-Rey: 2; Campanha: 1; Caldas: 1; Pouso Alegre: 1; Bomfim: 9; Oliveira: 5; Piumhy: 1; Araxá: 5; Barra Mansa: 1; Campos: 5; Feijão Cru: 5; Piranga: 3; Rio Preto: 1; Jacuhy: 1; Três Pontas: 1; Baependi: 2; Uberaba: 3. Somam 87!
Teria executado seus próprios pais? Corria em toda Minas que Fortunato José enforcara seu pai e sua mãe, em S. João d’El-Rey. Ele sempre protestava indignado, contra essa imputação, afirmava que, de fato seus pais morreram na forca, mas suplicados por seu antecessor, Antônio Resende.
[Diário Nacional (RJ), 1/8/1928. BN-Rio]
É interessante pensar a forma como o Estado brasileiro, desde de sua formação, coloca homens em iguais condições uns contra os outros, confundindo-os acerca de quem são seus verdadeiros inimigos… No Arquivo Público Mineiro há um registro fotográfico do carrasco Fortunato, em seu leito de morte, na Cadeia de Ouro Preto, onde faleceu em 1884.
Segue o link:http://www.siaapm.cultura.mg.gov.br/modules/fotografico_docs/photo.php?lid=31236
Sim, Cristina. Sempre penso sobre o efeito tenebroso da escravidão na destruição das memórias familiares de pessoas negras. Como traçar suas árvores genealógicas? Quantos escravizados e libertos conseguiram tirar uma fotografia de si e dos seus?
Maura, que interessante a foto deste símbolo da atrocidade do Estado brasileiro, que só conhece o sistema capitalista.