“Interar”
Por Glenio Cabral
__ Ô tio, me ajuda a “interar” essa passagem?
Sim, eu “interei” a passagem daquele guri. Nem me lembro mais quanto foi que eu dei. Só sei que o valor era pequeno, dois ou três reais, talvez um pouco mais, e ele só viajou depois da “interada”.
Mas então fiquei com a aquela palavra na cabeça. Interar, interar, interar. O que era interar, afinal? Pela forma como era falada, devia ser algo como completar, como cobrir o que está faltando.
O problema é que não me lembrava de ter conjugado alguma vez esse verbo nas minhas aulas de português. Então, com a palavra cutucando o meu juízo, busquei o pai dos burros a fim de aplacar minha inquietação.
E pra minha surpresa, por mais que eu folheasse o dicionário, não encontrava sinais do misterioso verbo. O que estava acontecendo? Será que eu me encontrava diante de mais um desses casos de neologismos incorporados ao uso popular?
Mas então, conversando com meu amigo e escritor Rogers Silva, descobri que não poderia encontrar o tal verbo no dicionário porque estava faltando um “i” na história. “I”, de inteirar.
Aí sim, a coisa passou a fazer sentido. Na verdade, o verbo é inteirar, de tornar inteiro, de tornar um o que está só pela metade. Ou até menos disso. E embora o verbo sem o “i” significasse a mesmíssima coisa no uso popular, senti-me mais culto com essa descoberta, inteirando-me, pois.
Inteirar, portanto, não é dar tudo. É dar uma pequena parte pra que as coisas aconteçam.
Afinal, as pessoas precisam se esforçar por suas metas, não ganhar as coisas de mão beijada. Por isso quem pede alguém para inteirar algo está querendo dizer que “eu já fiz a maior parte, você me ajuda agora a completar só o que está faltando?” Aí sim, dá vontade de ajudar.
Não que não devamos ajudar com 100%. Em alguns casos isso será necessário. Quem passa fome, por exemplo, não deve comer só 10% do que precisa. Mas há casos e há casos. E nos casos em que só inteirar é possível, fazer 10% significa viabilizar os 100%.
Em outras palavras, inteirar não é estimular a dependência ou a preguiça. Mas é fazer aquele pouco que acaba virando muito. É dar aquele empurrãozinho que faz toda a diferença.
É aquela palavra amiga dita na hora certa, aquele abraço oportuno durante o luto, aquele quase nada que de nada não tem nada. Na verdade, está mais pra quase tudo.
Inteiremos, pois. Não importa se com “i” ou sem “i”, o que vale é a disposição para ajudar.
Inteirar não tira pedaço de ninguém. Mas completa o que está faltando em muita gente.