Insignificância

Ilustração: Reprodução/
O Bule

Por Carla Dias

De segunda a sábado, passa pelo mesmo lugar, no mesmo horário. Trabalhar, dizia seu pai, é a melhor forma de se destacar entre tantos.

O Bule – O tempo ela não perdeu, mas já aceitou que não fez bom uso dele. Durante os vinte e cinco minutos de caminhada, da estação do metrô ao restaurante popular onde trabalha, sente uma liberdade que não encontra nos cômodos da própria casa, onde vive aos esbarrões com três irmãs e dois sobrinhos.

A sensação de aprisionamento que a toma não é por eles, pessoas de coração em bom lugar, de dedicação ao trabalho que deixaria seu pai abismado e satisfeito. Não vem da necessidade de se empilharem em um beliche e uma cama de casal ou precisarem negociar o uso da máquina de lavar.

Herdaram a máquina de lavar da vizinha, senhora meio doida por causa de um desarranjo nervoso crônico. Toda vez que ela saía pelas vielas do bairro, a gritar palavrões, uma das irmãs tratava de resgatá-la e levá-la para casa, lhe fazendo companhia até a irmã mais velha aparecer para assumir o posto.

As irmãs nunca souberam o que acontecia depois de o surto nervoso crônico libertar a vizinha. Para ela era um momento único. Adorava como ela voltava ao próprio corpo. Seus olhos ganhavam vida, como se alguém tivesse colocado seu espírito no lugar. Ela sorria e dizia que era bom ter companhia.

Seguiam-se horas de conversa das que adoram tocar a madrugada e alimentar a mente das pessoas. A voz daquela mulher tinha a cadência da generosidade, de quem não atropela o outro apenas porque sabe das coisas há mais tempo e com mais sabedoria do que a maioria dos que vivem por ali.

Ela tinha acabado de completar dezoito anos quando o pai morreu. A mãe o seguiu em menos de um mês. Muitos escolheram acreditar que ela morreu por não suportar viver sem ele, mas a verdade é que ela ficou doente da mesma enfermidade.

Deixou que as irmãs escolhessem a verdade menos devastadora, mas preferiu o fato: seus pais partiram depois de uma vida de lida pesada, moedas contadas, assistência de menos, excesso de faltas, o que tentavam, às vezes em vão, esconder das suas meninas.

Quanto a ela, ganhou duas filhas de aniversário. Desde então, vem dobrando turnos no restaurante, fazendo bico até do que tem de aprender na hora para atender à demanda existencial de tantos: colocar comida na mesa.

Colocou comida na mesa. O pai ficaria orgulhoso. Vem colocando comida na mesa há mais de quinze anos, sem lamentar as mãos fatigadas de tanto encontrar a água da torneira do restaurante. O corpo curvado na conta do extra que costuma fazer por lá mesmo, limpando o lugar depois do almoço.

Não reclama, porque houve dias em que achou que veria as irmãs tocarem seus estômagos vazios e exigirem cuidado e ela falharia em lhes prover o alimento. Teria de confessar ao pai, durante as orações, a cara enfiada no travesseiro para calar grito e choro, que falhou. Essa tragédia ela vem evitando, como se o malabarismo existencial nunca fosse parar.

O pai ficaria orgulhoso dela, que trabalha dezesseis horas por dia, e há tanto tempo, que às vezes fica acordada em vez de dormir, só para gastar pensamento, reconhecer que está viva. Há dias em que sonha com ele a dizer trabalhar muito para se destacar entre tantos e entristece. Não conseguiu realizar o sonho do pai. Não se destacou. Na verdade, há dias em que o mundo age como se ela não existisse. Há dias em que ela duvida da própria existência.

*Carla Dias é paulista de Santo André. Escritora, baterista e produtora cultural, autora dos livros Os estranhos (romance – sic, 2009), O observador (contos – Penalux, 2016), Livro das confissões (poesia – Patuá, 2018), Baseado em palavras não ditas (romance – Edição do Autor, 2019), entre outros. É cronista do Crônica do Dia desde 1998, ano de lançamento. Baterista da banda OsQuatro, vem trabalhando um repertório autoral com algumas canções/poemas de sua autoria musicados por amigos músicos.

 

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