Imagens Joaninas (Com exclusividade)
Por Carlos Drummond de Andrade
(Uma entrevista imaginária de CDA com Dom João VI, publicada no Correio da Manhã, Rio, domingo, 14 de março de 1958. Acervo: Biblioteca Nacional, Rio, pesquisa: Cristina Silveira)
Graças à gentil interveniência de Tiago de Melo, pôde este cronista, na noite de ontem, trocar algumas palavras com o Príncipe D. João, que pela segunda vez desembarca em terra carioca. Com absoluta exclusividade.
Embora fatigado pela viagem e pelas emoções da chegada festiva S. A. recebeu-nos com um sorriso benévolo, pondo-nos à vontade.
– Sente-se meu filho. Foi bom você ter vindo, eu estava querendo saber as novidades.
– Mas, Alteza…
– Já sei que veio entrevistar-me, mas prefiro fazer-lhe umas perguntinhas.
– Grande honra para mim, Alteza.
– Não vou perguntar tudo porque o Juscelino ficou de passar dentro de 5 minutos e levar-me a Brasília. Queria até que eu desembarcasse lá de avião e não aqui de bergantin. Que môço original! Me diga uma coisa: os portos continuam abertos?
Pensei antes de responder:
– Sim, Alteza. Só que não são muito praticáveis.
– Ahn…
– Tanto assim que uma das metas fala em empregar 34 milhões de dólares no aparelhamento e ampliação dêles e na compra de uma frota de dragagem.
– Boa idéia. Em todo caso todas as nações podem comercializar livremente com o Brasil, não é?
– É, sim senhor. (A essa altura, já me sentia desobrigado das exigências da etiqueta, em face da bonomia do Príncipe). Quer dizer, tem uma que não pode ainda não.
– Qual é? Andorra?
-Não. A Rússia.
– E por quê?
– E melhor o senhor perguntar ao alcaide da cidade.
– De um modo geral é fácil vocês importarem o que necessitam.
– Facílimo. Quer dizer, depende. Às vezes o neto do importador consegue receber a mercadoria. A legislação cambial e alfandegária é perfeita, e de jeito nenhum tolera contrabando de roupinhas de nylon.
– Mas vocês exportam facilmente seus produtos, heim?
– Está um calor danado, o senhor não acha?
Dom João riu. Quis saber se dessa vez foi preciso escrever P. R. (Príncipe Regente) à porta das casas, a fim de reservá-las para o séquito real, como há 150 anos. Expliquei-lhe que P. R., hoje em dia, é sigla de partido, como tantas outras, e não dá direito à requisição de domicílio. De resto não há casas a ocupar. Sua comitiva tem de ficar no sereno ou fazer incorporação para daqui a dois anos.
– Outra coisa. Minha escola médico-cirúrgica progrediu muito, eu sei. Tem bom hospital?
– Tem um enorme, em frente a Ilha do Governador, dizem para ser inaugurado no tricentenário do seu embarque…
– E o meu museu de história natural?
– Mudaram daquela esquina da Rua dos Ciganos para o Paço S. Cristovão e ficou muito bom, mas botaram um mafuá, um serviço de remonta militar e mil coisas no gênero, em redor, para animar o local: animou demais.
– Minha academia de belas-artes?
– Vai bem, mas os artistas saem de lá e, se são modernos, não têm onde expor, porque a sala de exposição o gato comeu.
– O gato?
Sim, a Novacap.
O bom príncipe manifestou o desejo de tomar banho de mar em Paquetá, onde possui uma casa.
– Perdão, possuía. Hoje é do Barreto Pinto, então não sabe?
– Ah… Falar em comida, não se podia arranjar por aí um franguinho assado, coisa de dois patacos no máximo?
Esclareci que seu prato predileto chama-se hoje galeto al primo canto, e disse-lhe o preço das coisas nesta corte. D. João ficou de repente assustadíssimo:
– Sabe que mais? Volto para Lisboa!
[Correio da Manhã, Rio, domingo, 14 de março de 1958. BN-Rio, pesqmcs1375]