Horror feminista
Por Cynthia Beatrice Costa
Com um profundo estudo de personagem, Santa Maud integra a onda de filmes perturbadores protagonizados por mulheres
A complicada relação entre duas mulheres costura o tenso fio narrativo de Santa Maud (de 2019, mas lançado em 2021), um horror psicológico dirigido pela estreante inglesa Rose Glass.
O Bule – Nele, a jovem enfermeira Maud (Morfydd Clark) é contratada como cuidadora da dançarina Amanda (Jennifer Ehle), que foi obrigada a abandonar uma gloriosa carreira nos palcos devido a uma doença terminal. Logo Maud tentará conduzir Amanda à luz – isto é, ao que ela entende por luz.
Maud é fanaticamente católica. Não frequenta a igreja, porém. Em vez disso, encontra em um isolamento social quase absoluto a oportunidade de exercer sua fé da maneira mais intensa possível, o que inclui a manutenção de um pequeno santuário em seu minúsculo apartamento, conversas constantes com Deus e, em momentos mais radicais, o autoflagelo.
O fanatismo religioso está longe de ser incomum em filmes do gênero. Da mãe de Carrie, a Estranha aos tantos exorcismos já realizados nas grandes telas, passando por cultos satânicos e afins, sabemos que a crença fervorosa é um bom combustível para o horror.
Santa Maud, no entanto, consegue driblar algumas convenções ao nos colocar em dúvida sobre o que estamos de fato vendo e, especialmente, ao nos oferecer um retrato psicológico aprofundado da personagem principal. Por mais desequilíbrio que demonstre, Maud nunca deixa de ser uma protagonista cativante e até mesmo comovente.
Com frequência, a desoladora solidão feminina parece mais assustadora do que qualquer possível presença metafísica. Vagando pela decadente cidade litorânea onde vive (cenas filmadas em Scarborough, no condado inglês de North Yorkshire), Maud nos mostra uma existência cinzenta, de tédio e desamparo, marcada ainda por cima pela memória de um grave erro profissional que cometera, provável motivo de sua recente conversão.
Do ponto de vista psicanalítico, o filme de Glass é um prato cheio. A devassa Amanda, que fala palavrões, fuma, bebe e mantém a vida sexual ativa mesmo estando doente, serve de contraponto extremo à pudica Maud, que busca se concentrar muito mais na vida eterna do que na vida terrena.
O relacionamento entre enfermeira e paciente, íntimo por natureza, parece ainda mais erotizado pelos momentos de fruição espiritual vividos em êxtase por Maud e não de todo rejeitados por Amanda.
O contraste entre as duas e a maneira como uma tenta seduzir a outra compõem o pano de fundo para a progressão do fanatismo aniquilador de Maud ao longo dos 84 minutos de filme.
Estaríamos diante de sua culpa, de sua tentativa desesperada de remediar um erro passado, ou de pura repressão sexual, do tipo que costuma colocar as mocinhas de filmes de terror na mira de demônios e assassinos?
Além da direção comedida de Glass, que nos permite desfrutar dessa ambiguidade, colaboram para a profundidade do filme as interpretações de Clark, perfeitamente perturbadora no papel de Maud, e de Ehle, alçada à fama nos anos 1990 como a Lizzie da adaptação de Orgulho e Preconceito da BBC.
Santa Maud integra, assim como os recentes Midsommar e Maria e João, o atual movimento de filmes de horror em que a conquista da autonomia feminina guia a ação. Nesse sentido, tem ainda a vantagem de ser dirigido e escrito por uma mulher e protagonizado por duas mulheres.
Há, ainda, a autonomia dos próprios corpos de Maud e Amanda, estejam eles possuídos ou não: aqui, ninguém é exorcizada. Trata-se de uma obra essencialmente feminina, sobre a relação de mulheres entre si e consigo mesmas.
Santa Maud foi indicado ao BAFTA de melhor filme britânico em 2021. No Brasil, encontra-se disponível para aluguel em streaming nas plataformas YouTube, Google Play e Apple TV.