Governo Lula deve anunciar novas demarcações, mas segue lento com políticas indígenas
Desde o início do mandato, governo Lula vem colocando como prioridade atender demandas dos povos indígenas
Foto: Ricardo Stuckert/PR
Esvaziada pelo governo Bolsonaro, Funai teve dificuldades para executar parte do orçamento que recebeu em 2023
Por André Borges
Edição: Giovana Girardi
Agência Pública – Quando o cacique Raoni Metuktire subiu a rampa do Palácio do Planalto ao lado do presidente eleito Luiz Inácio Lula da Silva, no dia 1º de janeiro de 2023, o governo dava um recado claro sobre o espaço que os povos indígenas passariam a ocupar na gestão federal. Depois de quatro anos de esvaziamento e paralisação de políticas voltadas aos povos originários na gestão Bolsonaro, os indígenas voltariam a ter suas pautas analisadas e atendidas.
Passado pouco mais de um ano da gestão Lula, é inegável que houve avanço em algumas frentes, como a própria criação do Ministério dos Povos Indígenas (MPI), o retorno das demarcações e o enfrentamento da crise humanitária que solapa o povo Yanomami, alvo de todo tipo de atrocidade na gestão anterior.
Conforme a Agência Pública apurou, o ministro da Justiça, Ricardo Lewandowski, encaminhou, nos últimos dias, seis processos de homologação de terras ao MPI e à Casa Civil: Potiguara de Monte-Mor (PB), Xukuru-Kariri (AL), Morro dos Cavalos (SC), Toldo Imbu (SC), Cacique Fontoura (TO e MT) e Aldeia Velha (BA). São as que faltam de uma lista de 14 prometidas no ano passado. A homologação está pronta para ser assinada e anunciada pelo presidente Lula.
Muitas ações previstas, no entanto, seguem em ritmo muito abaixo do projetado, como revelam os dados federais. Há dinheiro disponível, mas falta execução.
A Pública teve acesso a um panorama financeiro da Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai), compilado pelo Instituto de Estudos Socioeconômicos (Inesc). Os dados do orçamento federal foram extraídos do sistema Siga Brasil e fazem uma comparação entre os resultados de 2022 e 2023. Para eliminar distorções, todos os valores foram corrigidos pelo IPCA, até fevereiro deste ano.
As informações revelam um grande descolamento entre aquilo que o órgão federal teve autorização para gastar, o montante que chegou a empenhar (reservar para algum tipo de ação ou projeto) e o que efetivamente utilizou.
Por que isso importa?
- Agenda foi apresentada como prioridade pelo governo Lula no início do terceiro mandato, após retrocessos nos quatro anos anteriores
- Apesar da sinalização, processo de reestruturação da Funai, falta de pessoal e excesso de burocracia, além dos entraves colocados pelo Congresso, ainda dificultam avanços
No primeiro ano do governo Lula, a Funai teve autorização para executar R$ 846,8 milhões. Esse valor, que incluiu um incremento orçamentário feito ao longo de 2023, superou o total do ano anterior, que havia ficado em R$ 673,8 milhões. Mas, na hora de gastar, o resultado de 2023 acabou sendo mais tímido que 2022, se considerado o efeito inflacionário. A execução financeira do ano passado foi R$ 589,7 milhões, 13% abaixo dos R$ 666,2 milhões gastos pela fundação no ciclo anterior.
A distância entre os valores autorizados e aqueles efetivamente gastos pela Funai também chama atenção quando o assunto são as “ações finalísticas” da fundação, ou seja, medidas que têm impacto direto na vida dos povos indígenas. Uma das principais ações do órgão federal é aquela que trata da regularização, demarcação e fiscalização de terras indígenas, além da proteção dos povos isolados.
Entre 2022 e 2023, o gasto realizado com rubrica orçamentária saiu de R$ 50,6 milhões para R$ 91,4 milhões. Foi um aumento relevante, que quase dobra a execução de um ano para o outro. Esse resultado perde força, porém, quando se observa aquilo que o governo dispôs, em 2023, para essas medidas: um total de R$ 222 milhões, ou seja, quatro vezes o que havia destinado no ano anterior, quando R$ 55 milhões foram autorizados para essas ações.
Para Leila Saraiva, assessora política do Inesc, a complexidade na execução dos recursos pela Funai é parte da explicação para o resultado tímido, paralelamente ao completo esvaziamento do órgão na gestão anterior. “A Funai tem dificuldades estruturais para executar os recursos, uma estrutura arcaica que envolve suas 39 coordenações regionais. E a isso se soma o legado de destruição deixado pela gestão Bolsonaro. Muito teve de ser refeito no ano passado”, diz.
Saraiva destaca o esforço feito pelos servidores do órgão no ano passado, ao demonstrar que houve um grande volume de recursos empenhados para utilização. No caso das ações voltadas à demarcação, por exemplo, o empenho chegou a 98% do total autorizado em 2023. Ocorre que os empenhos podem ser revisados ou até mesmo cancelados, ou seja, não se trata da realização efetiva de uma política pública.
“Esse dado sobre o empenho é positivo, já que a média do que é empenhado na Funai fica em torno de 70%. Mas a forma com que os processos administrativos se dão internamente trava muitas ações, além de o órgão sofrer com a falta de servidores nas coordenações regionais. Tudo isso dificulta a execução financeira”, diz a assessora do Inesc.
Questionada sobre os dados, a Funai declarou que “o orçamento autorizado para um determinado ano deve ser empenhado no próprio ano, mas não há necessidade de ser liquidado e pago no mesmo ano”. Segundo a fundação, as etapas da execução da despesa podem ser realizadas nos exercícios seguintes.
A Funai foi indagada sobre sua dificuldade de utilizar um recurso do qual teve autorização, além de medidas que possa adotar para destravar sua execução orçamentária. Não houve resposta sobre o que pode ser aprimorado.
Homologações de terras
Parte dos gastos realizados com a homologação de terras indígenas é usada nas indenizações que o governo tem de fazer para bancar ocupações de boa-fé dentro dessas áreas. No ano passado, a gestão Lula retomou as homologações, depois de quatro anos sem nenhum reconhecimento de terra indígena ter sido feito por Jair Bolsonaro. O resultado, porém, também ficou abaixo do que o Palácio do Planalto havia prometido.
Ainda no período de transição de governo, no fim de 2022, foi feita a promessa de realizar 14 homologações de terras indígenas nos primeiros cem dias de 2023. Paradas há anos, elas dependiam apenas da assinatura presidencial.
A realidade, porém, é que apenas oito homologações foram confirmadas durante todo o ano passado. Dado a efemérides, o governo homologou seis terras durante o Acampamento Terra Livre (ATL), ocorrido em abril do ano passado, e outras duas durante as celebrações do Dia da Amazônia, em setembro de 2023.
Conforme a reportagem apurou, a expectativa é entregar as outras seis nos próximos dias. Se o governo seguir sua lógica de anúncios em datas comemorativas, deve aproveitar o Dia dos Povos Indígenas (comemorado nesta sexta, 19 de abril) ou a 20ª edição do Acampamento Terra Livre, que será realizado na semana que vem em Brasília. Questionada, a Casa Civil não se manifestou sobre o assunto.
Em entrevista à Pública no início do mês, a titular do MPI, Sonia Guajajara, admitiu que os planos de demarcação acabaram sofrendo um revés após a aprovação, pelo Congresso Nacional, de uma lei que estabeleceu um marco temporal para o reconhecimento dessas terras. Locais que não estivessem ocupados por esses povos na data da promulgação da Constituição, 5 de outubro de 1988, não teriam esse direito. A tese foi derrubada pelo Supremo Tribunal Federal, mas o Congresso dobrou a aposta, dificultando a política indigenista do governo.
Não foi o primeiro entrave colocado pelo Legislativo à agenda. Ao criar o MPI, a ideia do governo era que o órgão fosse responsável pelo processo de demarcação. Essa atribuição, porém, foi retirada da pasta pelo Congresso logo no início do mandato, que manteve o poder de publicação de portarias demarcatórias nas mãos do Ministério da Justiça. Já a Funai saiu da estrutura do Ministério da Justiça e passou a ser vinculada ao MPI.
Questionado sobre os reflexos desse esvaziamento, o MPI declarou que, mesmo com a perda da competência para emitir a portaria declaratória, “segue atuando ativamente na efetivação das demarcações de terras indígenas, tendo em vista sua supervisão ministerial sobre a Funai e sua competência para atuar em defesa do bem-viver dos povos indígenas”.
Embora tenha criticado o ato do Congresso, a pasta procura se alinhar ao Ministério da Justiça. “Os ministérios são todos órgãos de um mesmo ente, a União, e atuam em estreita articulação para a efetivação do comando central”, declarou.
“Desse modo, remanesce papel ativo ao MPI nos procedimentos demarcatórios, seja como órgão de supervisão, seja por lhe caber a articulação para efetivar os direitos indígenas, seja na colaboração que presta a outros órgãos (como o MJSP) no desempenho de funções relacionadas à pauta indigenista.”
O órgão declarou ainda que tem atuado com cooperação técnica, mediações de conflitos em terras indígenas, planos de gestão territorial e ambiental e participação em desintrusão de ocupantes ilegais em terras indígenas.
Nesta quarta-feira (17), o MPI reinstalou e empossou os membros do Conselho Nacional de Política Indigenista (CNPI), que estava paralisado há oito anos. O CNPI é um colegiado consultivo, vinculado ao MPI, responsável pela elaboração e pelo acompanhamento de políticas públicas destinadas aos povos indígenas. Sua composição é paritária entre indígenas e representantes do Estado brasileiro, com igualdade de direito a voz e voto. Está prevista uma agenda do conselho com o presidente Lula nesta quinta (18).
Pressões da bancada ruralista
Luís Ventura, secretário-executivo do Conselho Indigenista Missionário (Cimi), avalia que a perda das demarcações do MPI deve ser entendida no contexto da composição do atual Congresso Nacional, que, “durante todo o ano 2023 e até agora, agiu de forma sistemática para impedir e dificultar a demarcação de terras indígenas”. Além disso, há interesses diversos dentro do próprio governo.
“Caberia ao MPI essa atuação de articulação interna, o que é difícil num governo de composição que acabou integrando interesses muito divergentes entre si, alguns deles contrários aos direitos dos povos indígenas. Para que o MPI possa atuar de forma determinada precisaria dispor desta força política dentro do governo e, claro, de um diálogo permanente com os povos indígenas, fortalecendo suas reivindicações no Executivo”, diz.
Para a Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib), instituição que foi comandada por Sonia Guajajara antes de ela assumir o ministério, o governo não teve força para encarar a bancada ruralista do Congresso.
“Surgiu de nós a proposta de criar um ministério indígena, e naquele momento uma das principais discussões era que o MPI tivesse o papel, dentro do governo federal, de ter o processo de demarcação de terras indígenas como uma das suas principais atribuições”, declarou Kleber Karipuna, coordenador executivo da Apib.
“Infelizmente, nós temos um Congresso Nacional anti-indígena e isso fez com que essa atribuição saísse do MPI, o que enfraqueceu não só a política indigenista de demarcação de terras, como um dos principais objetos de funcionalidade do MPI”, diz Karipuna.
A expectativa é que o MPI assuma um papel de articulador junto aos outros órgãos, para fazer com que essa pauta volte a avançar. No ano passado, nenhuma portaria de demarcação chegou a ser publicada pelo Ministério da Justiça, durante a gestão do então ministro Flávio Dino, conforme informações levantadas pelo Instituto Socioambiental (ISA).
Todas as oito homologações presidenciais recebidas do Ministério da Justiça e assinadas em 2023 – último ato formal para concluir o reconhecimento da terra indígena – estão relacionadas a portarias publicadas em anos anteriores pelo ministério.
“É difícil fazer uma leitura linear da atuação federal, porque sabemos que temos um governo heterogêneo, com diferentes posicionamentos políticos”, diz Márcio Santilli, presidente do ISA e ex-presidente da Funai.
“Além disso, não podemos nos abstrair do papel que o Congresso tem jogado. A correlação de forças com o governo mudou e o Legislativo tem um peso maior do que teve no passado. Veja, por exemplo, a retomada do marco temporal pelo Congresso, com a derrubada do veto de Lula. Fora isso, em relação à execução financeira da Funai, sabemos que o órgão perdeu quadros técnicos importantes.”
Existem pelo menos 25 processos de demarcação aguardando a assinatura do Ministério da Justiça, para depois seguir à Casa Civil da Presidência da República, segundo Luís Ventura, do Cimi. Outras 255 terras indígenas estão com processos de demarcação em andamento. O país tem 511 terras indígenas homologadas.
Apesar de um cenário de retomada, há um sentimento de frustração entre os representantes indígenas. “A gente poderia ter avançado muito mais. Do ponto de vista administrativo, não havia nenhum impedimento quanto a isso [a demarcação das 14 terras] durante o ano de 2023 e nós tivemos apenas oito terras indígenas demarcadas”, queixou-se Kleber Karipuna, da Apib.
“É óbvio que é muito mais do que foi feito nos últimos seis anos, mas a esperança de se avançar nessa pauta foi em parte frustrada, porque a expectativa era a homologação de ao menos 14 terras indígenas.”
A Apib reconhece que “a Funai ainda está se recuperando do esfacelamento que viveu”, mas aponta que o órgão ainda está fragilizado, principalmente na parte de pessoal. “Essa baixa execução de orçamento é, também, reflexo desse contexto de fragilidade que o órgão indigenista passou. Isso é algo sério que precisa ser visto pela presidência da Funai, que deve estar fazendo suas próprias cobranças dentro do governo”, diz Karipuna.
Saúde Yanomami
Diferentemente do que ocorreu na gestão orçamentária da Funai em 2023, os desembolsos realizados para o enfrentamento da emergência humanitária da população Yanomami tiveram forte desempenho pelo Ministério da Saúde.
Os dados reunidos pelo Inesc apontam que, enquanto os recursos autorizados para essas ações foram de cerca de R$ 1,8 bilhão em 2022, no ano passado eles saltaram para R$ 2,2 bilhões, sendo que a execução financeira chegou a 95% do total em 2023.
O patamar de gastos sinaliza o empenho da Secretaria de Saúde Indígena (Sesai), vinculada ao Ministério da Saúde, em enfrentar os desastres sanitários, como a situação vivida pelos Yanomami. Parte da explicação para a alta execução passa pelo tipo de contratação dos serviços do setor, que estão baseados, em grande medida, em convênios firmados com prestadores de serviço.
Apesar das dificuldades, a Apib afirma que, de maneira geral, 2023 também traz uma avaliação positiva, com a retomada da política indigenista pelo Estado, com a retomada do Conselho Nacional de Políticas Indigenistas e do Fórum do Conselho Distrital de Saúde Indígena.
Reportagem originalmente publicada na Agência Pública