Funai de Bolsonaro é pior que a de 1968, diz indigenista que enfrentou a ditadura militar
Egydio Schwade: “Sou favorável a que uma indígena fosse vice do Lula”.
Quando andei pelo Sul do país, no final da década de 1970, conheci o então padre Egydio Schwade, indigenista, braço direito de Dom Pedro Casaldáliga (1998/2020), que presidia o Conselho Indigenista Missionário (Cimi), da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), na celebração da Missa dos Sete Povos das Missões, em Santo Ângelo (RS).
Schwade vivia com a Polícia Federal em seu encalço que gravava tudo o que ele denunciava, a política nefasta da Fundação Nacional do Índio (Funai) contra os os povos originários, que deveria proteger, mas neglicenciava a demarcação das terras indígenas, fechava os olhos à espoliação e invasão de suas terras. O país vivia ainda sob o jugo da ditadura militar, mas não era só o aparato repressivo que se preocupava com o “padre comunista.”
Diziam também que o então arcebispo de Porto Alegre, dom Vicente Scherer (1903/1996) tremia nas bases quando ele visitava a capital do Rio Grande do Sul. É que o indigenista ctambém não poupava a omissão e negligência do ultra-conservador arcebispo em relação à questão indígena, principalmente pela invasão de suas reservas pelos granjeiros (latifundiários).
Hoje, com 59 anos de indigenismo, Egydio Schwade critica a política anti-indígena do governo Bolsonaro e cobra apoio da esquerda aos povos originários, em entrevista a Murilo Pajolla, do Brasil de Fato. (Carlos Cruz)
Por Murilo Pajolla, do Brasil de Fato
As primeiras denúncias foram compiladas no chamado “Relatório Figueiredo”, produzido pelo então procurador Jader de Figueiredo Correia. O documento descrevia casos de tortura, abuso sexual e assassinatos em massa perpetrados pelo governo militar.
Em 1967, o SPI foi substituído pela Fundação Nacional do Índio (Funai). Em linhas gerais, no entanto, a nova organização deu continuidade às atrocidades conduzidas pelo SPI, perpetuando o projeto de dissolução dos modos de vida dos povos.
Por isso soa tão forte a declaração do filósofo, teólogo e indigenista Egydio Schwade, que ajudou a revelar a política genocida da ditadura: “A Funai de hoje é pior do que aquela de 1968. É muito pior. Esse governo do [presidente Jair] Bolsonaro simplesmente invade a cabeça dos índios”.
Aos 86 anos, 59 deles dedicados a denunciar as violações dos direitos dos povos originários, o gaúcho natural de Feliz vive com a esposa, a indigenista Teresinha Weber, em uma casa simples de madeira em Presidente Figueiredo (AM), de onde conversou com o Brasil de Fato, na entrevista disponível na íntegra a seguir.
Cofundador das principais organizações de defesa dos povos originários em atuação até hoje, Schwade ajudou também a desenhar a política indigenista do então recém-criado Partido dos Trabalhadores (PT).
Em Roraima, usou o método Paulo Freire para alfabetizar os Waimiri Atroari. Ouviu, espantado, o relato de aviões derrubando um pó venenoso que matou dezenas de habitantes da aldeia.
Observador atento da política, ele cobra mais apoio da esquerda aos povos originários. Diz querer ver uma mulher indígena concorrer ao cargo de vice-presidente ao lado de Luiz Inácio Lula da Silva (PT). E comemora a multiplicação de lideranças indígenas, escassas quando iniciou sua trajetória.
Um dos pilares do indigenismo brasileiro, Schwade se diz um socialista que não deixou de sonhar com uma sociedade de harmonia entre indígenas e não-indígenas. “O capitalismo não vai melhorar, é essencialmente mau. Então eu acho que a questão é que a gente deve realmente começar a ouvir esses povos [indígenas]”.
Confira a entrevista na íntegra
Brasil de fato: O senhor foi uma das principais vozes a denunciar o genocídio sofrido pelos indígenas durante a ditadura militar. E viveu momentos de conquistas, de avanços na causa indigenista que pareciam trazer algum suspiro de alívio. O senhor imaginava que viveríamos tamanho retrocesso, tal como os povos indígenas denunciam hoje no governo de Jair Bolsonaro?
Egídio Schwade: É mesmo, eu passei vários momentos desses suspiros de alívio na minha vida. Agora mesmo no dia 1º de janeiro, fez 59 anos que eu iniciei o trabalho de indigenista no oeste do Mato Grosso. No período em que estive no Rio Grande do Sul, nós fizemos uma visita aos índios Kaingang.
Na semana santa, fizemos uma resolução de, em vez de ir à cerimônias [da Igreja Católica], ir ver a situação dos índios no estado. Começamos pela [Reserva Indígena] Nonoai. E no final escrevemos uma série de artigos para o [jornal] Correio do Povo relatando o que vimos.
Quando saiu o terceiro artigo, surgiu a primeira Comissão Parlamentar de Inquérito no Rio Grande do Sul. Como lá havia dois serviços [de atendimentos aos indígenas], um estadual e um federal, começou uma grande discussão, um acusando o outro.
Porque a reforma agrária que tinha sido feito no Rio Grande do Sul quase toda sido realizada sobre as áreas indígenas. E por outra parte o SPI [Serviço de Proteção ao Indígena, mais tarde transformado em Funai], roubava todos os pinheirais. Então ficou essa briga entre os dois que deu na famosa CPI dirigida pelo Jader Figueiredo.
Aí foi a primeira esperança. Nós investimos tudo. Pensamos: “agora vai mudar a política indigenista”. Mas os postos foram ocupados por militares. Ainda assim a gente pensava: “bom, tudo bem, mas vamos ver se eles têm experiência”. E aí já começaram os desmandos. Eles entregavam os postos para empregados deles. E desandou totalmente de novo. E a política de integração continuou a mesma.
Também de novo houve um momento em que a gente se engajou. Integramos um grupo de trabalho no final da ditadura militar fazendo um levantamento geral da área [do povo que habita o sudeste de Roraima] Waimiri Atroari.
Mas tudo foi abortado por essa política que se seguiu. A Nova República não trouxe nada de novo. A Funai de hoje é pior do que aquela de 1968. É muito pior. Esse governo do [presidente Jair] Bolsonaro simplesmente invade a cabeça dos índios. É muito ruim.
Hoje há um grande número de lideranças indígenas, que são protagonistas das lutas e ocupam de fato o seu lugar de fala. Quando o senhor atuava, isso não era comum. O senhor vê com bons olhos esse fenômeno? Ou acha que é um sinal de que os povos estão tendo que se inserir na cultura não indígena para se defender?
Não, eu acho uma caminhada positiva o que está acontecendo. Eu me lembro há 59 anos, quando eu comecei no noroeste de Mato Grosso. Tinha um padre que tinha feito uma viagem de reconhecimento pelas Missões [religiosas da Igreja Católica] pelo Brasil. E não tinha nenhuma organização indígena no país inteiro. E o índio vinha para o internato [católico, instrumento da política integracionista] não com a perspectiva de voltar à sua terra e defendê-la, mas de ir à Cuiabá para esconder a sua identidade indígena.
Então isso foi uma das coisas que primeiro chocou a gente. Por isso é que quando eu fiquei secretário do Cimi, os primeiros dois programas foram as Assembleias Indígenas onde eles pudessem livremente falar de seus problemas e também encontros dos missionários para mudar a cabeça deles.
Acho que isso [o protagonismo indígena] começou no período em que aconteceram essas assembleias, foi o maior avanço. Mas também a questão das terras indígenas: Nonoai foi libertada, Rio das Cobras no Paraná também. A própria [Terra Indígena em Roraima] Raposa Serra do Sol, onde eu estive na primeira reunião com o [bispo e defensor da luta popular pela terra] Dom Tomás Balduíno.
Essa assembleia foi fechada pela Funai e pela Polícia Federal por causa da nossa presença. Eles exigiam dos índios que nos expulsassem, o que não foi aceito. E foi aí que desencadeou o processo de luta pela uma terra com unidade, que mais de 30 anos depois foi homologada como Raposa Serra do Sol.
Então é muito positivo [o crescimento de organizações formadas por indígenas]. O que eu acho atualmente – e estou em diálogo com organizações indígenas e indigenistas, como Cimi, Opan e também com o Movimento dos Trabalhadores Sem Terra, o MST – é que os acampamentos indígenas [Acampamento Terra Livre (ATL), organizado pela Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib)] que fazem com muito esforço a cada ano em Brasília sejam feitos nas áreas mais conflitivas.
Por exemplo, faz um acampamento de mil pessoas lá em Arariboia no Maranhão dos Guajajara. Quero ver sobrar um caminhão com toras roubadas lá dentro. E a mesma coisa aqui, que estão agora tentando de novo invadir a Raposa Serra do Sol. Estão invadindo cronicamente já os Yanomami. É simplesmente uma calamidade.
O senhor ajudou a fundar as principais organizações que atuam até hoje lado a lado com os indígenas. O Conselho Indigenista Missionário (CIMI), a Operação Amazônia Nativa (Opan) e a Comissão Pastoral da Terra. Também contribuiu decisivamente para desenhar a política indigenista do PT durante seu nascimento. O senhor se sente satisfeito ao ver como essas organizações evoluíram?
Eu acho que essas organizações, de modo geral, mantiveram sua política. Claro que há a evolução, mas eu acho importante sempre ver um pouco mais as origens, né? Nesse sentido, os culpados nesse ponto, de não aprofundar essa questão é o próprio PT [Partido dos Trabalhadores].
Eu acho que o PT, durante os 13 anos que governou o país deixou muito a desejar no apoio a povos que vivem o socialismo nu e cru – e mesmo organizações como o MST que fazem experiências socialistas fortes, quilombolas… Então eles deveriam dar prioridade de apoio, principalmente a garantia de suas terras. E foi muito lento esse apoio.
Eu inclusive seria favorável a que uma indígena, como aquela índia [Txai] Suruí que foi representar o Brasil – muito bem, por sinal – lá em Glasgow [na COP 26, conferência da ONU sobre mudanças climáticas], ou a Joênia Wapichana [única parlamentar indígena no Congresso brasileiro] fossem a vice do Lula. Isso haveria de agitar, no meu entender, as bases de novo, como foi em 1989, para uma nova esperança.
Então de modo geral eu acho que as essas organizações se mantiveram bem dentro de suas linhas, a grosso modo. Embora eu ache que sempre há necessidade de atualização e principalmente de presença e divulgação mais forte. Se bem que são as organizações que estão aí. Sinto-me feliz de ter podido participar da criação de todas, seja do Cimi, seja da Opan e seja da CPT.
Aos 86 anos, o senhor se diz um homem socialista. Qual é o papel das sociedades indígenas na superação do capitalismo? Será possível construir uma sociedade de harmonia entre indígenas e não indígenas?
No meu entender os indígenas são o mais forte paradigma que nós temos para superar o capitalismo. Isso eu acho por exemplo com a declaração da índia lá em Glasgow, a Suruí. Ficou claro, foi a única mensagem realmente que o Brasil trouxe para lá de valor.
E o modelo que eles nos apresentam nega nossos avanços tecnológicos, e muitas dessas coisas têm que ser evitadas mesmo. Eles são o paradigma mais claro que nós temos à frente. Se a gente olhar, por exemplo, o MST nos acampamentos deles, é uma vida socialista também. E quanto mais próximos dos indígenas, mais bonita e alegre fica a vida.
O capitalismo é sempre acumulador para o indivíduo. Se ele não tem mais condições de acumular aqui no Brasil, vai lá nas ilhas Cayman ou nas Bahamas. Eu acho que tem que encontrar uma forma maior de fazer presente o socialismo.
O capitalismo não vai melhorar, é essencialmente mau. Então a questão é que a gente deve realmente começar a ouvir esses povos. Eles não são egoístas como nós. Nós temos medo que no dia em que eles dominarem, nós não teremos mais vez. Mas eles vão ajudar a cuidar, são muito mais generosos do que nós.
Eu, por exemplo, convivi com povos que foram taxados de criminosos violentos. Nunca me senti mais seguro em outra parte. Apesar das dificuldades que trouxe a estrada a essas aldeias, eles arrumavam comida para nós e para eles e dividiam tudo. E quanto mais levamos as tecnologias, de agricultura ou na saúde… A gente tem o que contribuir também. E eles aceitariam. Eu acho que vai por aí uma mudança dos nossos sonhos para um mundo melhor.
Edição: Vivian Virissimo
Gostei da proposta do Padre Scchwade, a de uma índia ser candidata a vice com o Lula.