Faze de tua dor um poema
Praça do Largo do Machado, Rio
Foto: Cristina Silveira
Antonio Chrispim*
1º Ato – NO CAFÉ DAS MUSAS
A cena representa etc. etc.
O poeta lírico (recitando):
– No quadrante esquecido à margem da alameda,
nem a sombra ficou d’aquela hora feliz!
Não sentirei, já velho, a saudade de seda
d’aquele tempo azul em que eu tanto te quis!
O coro de azêmolas:
– Bravo! Bravíssimo! Muito bem! (zurros e coices prolongados).
O poeta lírico:
– A noite já vem perto…
O poeta satírico (que, desgraçadamente, não fez versos):
– E você, tão mau, quer adormecer-nos antes de chegar a noite!
O coro de azêmolas:
– Atrevidaço! Imbecil! Zebroide! (Chuva de pedras, assobios e garrafas sibilando no ar, como rimas.)
O poeta lírico:
– Obrigado! Obrigadíssimo! É assim mesmo! É esta a coroa de louros… de louros e de espinhos! Coragem, meu povo! Guerra aos bárbaros! (Cai-lhe uma garrafa na testa,) Ai! Socorro! Ai! Corja de bestas! Então vocês não enxergam?
O poeta satírico (ileso, atrás dum barril de chope):
– Entre os versos e as garrafas, prefiro as garrafas. Também estão vazias, mas podem encher-se!
O coro de azêmolas (obrigado moralmente a aplaudir):
– Não é que o cabra tem a sua presença de espírito? Ora essa!
O poeta lírico:
– Eu morro! Eu mo…rrro…
E morre. Assistência. Pano.
2º. Ato – No HOSPITAL
O poeta lírico não morreu. Fora uma síncope. No hospital, esvaído em sangue, pensado, tratado, mimado, faz versos à irmã Anna Maria.
O poeta lírico (voz tremula):
– Brancura irreal de tuas mãos! Brancura
que minhas mãos jamais hão de manchar!
Há em ti a puríssima doçura
dos lírios…
Entra um repórter.
O repórter:
– Está melhor? Como passou? Sua idade? Residência? Doeu muito? Como foi isso? Quebrou a perna? Seus livros? O nariz vai bem? Apanhou? Bateu? Quantos eram? Mais de vinte? O café ficou estragado? Está com sono? Tem um retrato bom?
O poeta lírico (num sonho):
– Dos lírios… dos lírios…
O repórter:
– Heim? Lírios? /Que negocio é esse? Falava em lírios? Brigou por causa deles? Ou é de lírios?
O poeta lírico:
– Dos lírios de Florença… Uma rima em ar… Que diabo, é tão fácil!
A irmã Anna Maria:
– O doente não está bem. Tenha a bondade de voltar depois. O repórter sai. O poeta lírico descobre a sua rima em ar, e dá um pulo imenso que o repórter ainda observa, da porta. Pano.
3º e último ato (irremediável) – NA RUA
Os jornais gritam a loucura do poeta lírico. Um caso perdido. A poesia nacional de Into fechado. Entrevistas. Clichês. Comentários.
Um transeunte:
Céus! Que horror! Enlouqueceu! Que horror! Céus! (Etc. etc. Cai para traz.)
O coro de azêmolas:
– Heim? Que foi? Heim? Que foi? (isso durante vinte e cinco minutos.)
O transeunte (no chão):
– O poeta… o poeta lírico! Enlouqueceu! Meu sobrinho!
O coro de azêmolas cai também para trás, soltando uivos e guinchos horrorosos. Outro poeta lírico (de pouca fama):
– Graças a Deus! Agora eu trepo!
Numerosos poetas líricos:
– Eu também! Eu também!
Um burguês:
– Anda depressa, Serafina!
Serafina:
– Quinzinho, toma modo, menino! Olha a gente!
Quinzinho (novíssimo):
– Eu quelo vê… eu quelo vê o que é isso!..
Um homem gordo:
– Quem? Enlouqueceu? Ah, sim.
Um homem magro:
– Coitado! Também, a culpa foi dele.
Uma linda mulher:
– Ele vivia me perseguindo. Mas eu dei-lhe um contra!
Outra mulher linda:
– Bobo que ele foi, heim? Enlouquecer!
O poeta satírico (atrás duma ninfa):
– Antes ele do que eu!
O coro de azêmolas imobiliza-se. A noite cai como uma pedra.
Pano.
*Antônio Crispim é um dos pseudônimos de Carlos Drummond de Andrade
[A Revista (MG), 1926. Hemeroteca BN-Rio – Pesquisa: Cristina Silveira]