Farmacêutico, fazendeiro e poeta: a construção de uma síntese

Fotos: Humberto Martins

“… a vida exigia de mim uma definição prática. O pai me sustentava, eu não trabalhava, eu era vadio e não ganhava nada. Formei-me em Farmácia. Não tendo nenhuma vocação para isso, fui para o interior para ser fazendeiro.” (Drummond)

“…No momento em que chegou a minha vez de trabalho no campo, fugi da responsabilidade, alegando falta de jeito  para lidar com a terra e com os animais. Cedi a minha parte e fui cuidar de nuvens, no exercício da literatura.” (Drummond)

Não viveu entre cadinhos, grais e pistilos, bulas, cápsulas, lâminas, microscópios, laboratórios, vigilâncias, frascos, êmulos, ampolas, receitas e balcões. Foi um ‘farmacêutico do ar’. (…) Revelou, desnudou e infectou: almas, mentes, corações, histórias, utopias e vida.Com e por palavras e não placebos. Palavras e não alopatia. Palavras-fármacos vitais.” (Marcelo Dolabela)

Por Graça Lima*

Espero que essas citações cumpram a função de ocuparem um outro lugar para além de uma mera estratégia de retórica ilustrativa:  o de  abrir  a trilha pela qual  este texto pretende conduzir o pensamento em direção à síntese anunciada no título.

No início de outubro deste ano, estiveram em Itabira a diretora da Faculdade de Farmácia da UFMG, professora Ana Paula Lucas Mota, a vice-diretora, professora Gisele Assis Castro Goulart  e os profissionais da Cedecom/TV UFMG em visita à terra natal de Carlos Drummond de Andrade com o objetivo de  colher material para um documentário sobre o poeta.

Recepcionados pela superintendente da  Fundação Cultural, Vanessa Silva Faria e pela coordenadora do Memorial Drummond, Solange Duarte Alvarenga, durante dois dias percorreram  pontos culturais da cidade de forma a desvendar a poesia que os habita e a matéria bruta de onde irromperam versos e prosa inconfundíveis do hoje considerado Poeta Maior.

Drummond, farmacêutico do ar (Arte: Reprodução)

“As pessoas passam pelas cidades, mas é muito melhor quando as cidades passam pelas pessoas”, no dizer do jornalista, publicitário e escritor paulistano Ronny Hein, autor da coletânea de narrativas de viagem, intitulada Queria ter ficado mais. Creio que essa sensação foi vivida aqui, no Matto Dentro, pela equipe da UFMG. Digo isso a partir de tudo o que se seguiu a essa visita.

2025 é o ano do centenário de formatura em Farmácia de Carlos Drummond de Andrade. Na biografia do poeta, esse dado não despertava atenção: o itabirano não exerceu a profissão de farmacêutico,  comentava com discrição  sobre esse fato, embora a “farmácia” se fizesse tema nas linhas e entrelinhas de poemas, relatos e crônicas publicados aqui e ali na complexa, extensa  e variada obra do poeta.

Entretanto, a Faculdade de Farmácia da UFMG veio lançar luzes sobre essa obscuridade, lá e cá, com a  decisão de comemorar os cem anos de formatura do poeta: um  gesto de pura  sensibilidade das professoras idealizadoras.

Reconheceram elas, num exercício de ampliação do sentido da palavra “farmacêutico”, que o poeta, ao exercer seu ofício, trazia da formação em Farmácia a disciplina, o equilíbrio, a organização, a meticulosidade, o olhar clínico para o cotidiano e a vida, o gosto na busca da essência da palavra em toda a sua dimensão.

“No azul do céu de metileno/a lua irônica/diurética/é uma gravura de sala de jantar.”

“ E sobre nossos corpos se avoluma/o lago negro de não sei qual infusão.”

“Povo doente o brasileiro? Ou povo irremediavelmente viciado em remédio? Paro aqui, pois preciso ir à farmácia da esquina para indagar qual o novo remédio-porrete para mal-estar cívico, sintoma de doença epidêmica que no momento castiga cada brasileiro.”

Durante a visita, aflorou a ideia de incluirmos, durante a Semana Drummond, a sempre última de outubro, o tema Farmacologia Poética em uma mesa de debate com a presença das professoras Ana Paula e Gisele, anteriormente citadas, e das professoras itabiranas Delci Cristina e esta que escreve esse artigo.

Atento, o público acompanhou com interesse a discussão cujo viés sobre a produção literária do poeta sabia-se pouco visibilizado e frequentado.

Ao final da discussão, a diretora Ana Paula fez um comentário, uma sugestão e um anúncio: em todos os pontos visitados, identificou uma lacuna  referente à formação do poeta além do reduzido dado biográfico: “ 2025 – formou-se em Farmácia, mas não exerceu a profissão”.

Sugeriu, então, que se criasse, em um dos pontos culturais dedicados ao poeta em Itabira,  um espaço  no qual se expusessem documentos, fotos, objetos,  textos em verso e prosa relacionados à  trajetória drummoniana como aluno do curso de Farmácia e o reflexo dessa formação em sua obra.

E mais: anunciou a doação para Itabira de alguns itens relativos à vida estudantil do jovem Carlos na antiga Escola de Farmácia e Odontologia nos idos de 1920.

Essa visita renderia outros frutos. No dia 7 de novembro de 2025, a Diretoria da Faculdade de Farmácia realizou a cerimônia  comemorativa do centenário de formatura do aluno-poeta. Foi um dia de homenagens traduzidas em uma pluralidade de linguagens sob diferentes perspectivas, como testemunha a programação.

A diretoria da Faculdade de Farmácia realizou a cerimônia  comemorativa do centenário de formatura do aluno-poeta, com participação da professora itabirana Graça Lima

Documentário Cedecom e TV UFMG – “Drummond – Farmacologia das Palavras”

Mensagem especial –  “Pedras, palavras e silêncio: o universo de Drummond”

Profa. Raquel Virgínia Rocha Vilela

Leitura dramática – “Drummond e a Pharmacia: 100 anos de uma formatura 

Odilon Steves, ator, diretor e professor de teatro

Mesa de debate: “Drummond – Entre a Farmácia e a Poesia”

Prof. Roberto Said

Prof. Sérgio Amaral

Profa. Graça Lima

Mediador: Prof. Gerson Pianetti

Inauguração da Obra bidimensional: “Mundo, vasto mundo”

Artista Lara Reis

Descerramento da placa comemorativa:

100 anos da formatura de Drummond em Farmácia

Como visto, o mês de outubro, já entronado no calendário itabirano como o “mês Drummond (Semana Drummond – Flitabira)”, neste 2025 estendeu-se a novembro com o reconhecimento oportuno, sensível, traduzido em homenagem ao centenário de formatura do poeta pela  Faculdade de Farmácia da UFMG.

Parodiando Drummond, a todos os envolvidos nas comemorações, “gratidão, esta palavra-tudo”.

E fica para a Fundação Cultural a tarefa de acolher a ideia sugerida pela direção da Faculdade de Farmácia e criar o espaço dedicado à relação Duummond/Farmácia/Literatura.

*Graça Lima é mestra em Linguística pela UFMG, especialista em Língua Portuguesa e Literatura Brasileira pela PUC-MG e em Arte e Cultura Barroca Mineira pela UFOP.

Leia também: UFMG celebra centenário da formatura de Drummond no curso de Farmácia

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