Faria Lima é o novo território do crime organizado como revelam operações da PF, MPF e da Receita expondo a face oculta do poder
Foto: Wilfredor/Wikimedia Commons/ CC BY-SA 4.0
Operações sucessivas no coração financeiro do país expõem como facções criminosas se infiltraram em combustíveis, fundos financeiros e empresas de fachada
Por Valdecir Diniz Oliveira*
Um ciclo de operações deflagrado em 2025 pela Polícia Federal e Receita desnuda um modelo de negócios do crime organizado que se profissionalizou muito além do tráfico de drogas, com o PCC e redes associadas operando em cadeias formais da economia: combustíveis, logística, intermediação financeira e estruturas de investimento ancoradas na Faria Lima.
O símbolo dessa virada foi a concentração inédita de mandados de busca e apreensão em endereços do maior centro financeiro do país, onde a Polícia Federal, o Ministério Público e a Receita mapearam a passagem do dinheiro ilícito por fintechs, fundos e empresas que ofereciam “lastro” e circulação pretendidamente legal para capital criminoso.
O que representa a Faria Lima no mapa do poder
A avenida Brigadeiro Faria Lima, em São Paulo, é considerada o coração financeiro do Brasil. Ali se concentram sedes de bancos de investimento, corretoras, fundos imobiliários, fintechs e escritórios de advocacia e consultoria que movimentam bilhões de reais diariamente.
É o espaço simbólico da elite econômica brasileira, comparado a Wall Street em Nova York. Por isso, quando operações da Polícia Federal atingem empresas instaladas na Faria Lima, o impacto é muito maior: revela que o crime organizado não está restrito às periferias ou ao tráfico de drogas, mas já se infiltrou no núcleo do mercado financeiro nacional.
Três operações, uma mesma estrutura
Deflagrada no mesmo eixo temporal, a Carbono Oculto operou como força-tarefa com foco no fluxo financeiro e nas estruturas societárias em São Paulo, incluindo mandados na Faria Lima, enquanto as operações Quasar e Tank miram a cadeia de combustíveis e suas rotas de sonegação, adulteração e lavagem.
Nas operações em São Paulo, foram cumpridas ordens judiciais diretamente no núcleo financeiro com foco em fintechs, fundos e postos que utilizavam interpostas pessoas e insumos desviados (como metanol) para compor o ciclo da fraude – um elo revelado entre o varejo de combustíveis e estruturas financeiras de maior complexidade.
Em paralelo, a ação integrada de MP-SP, MPF e polícias (Federal, Civil e Militar) alcançou oito estados, mobilizou 1.400 agentes, mirou 350 alvos e identificou uma sonegação estimada em R$ 7,6 bilhões, com controle de 40 fundos de investimento (cerca de R$ 30 bilhões) associados ao ocultamento patrimonial, o que dimensiona a migração do crime para a economia formal e para a intermediação financeira sofisticada.
Como o dinheiro sujo vira ativo legal
Os relatórios e comunicados públicos dessas operações convergem: o setor de combustíveis funciona como caixa e rota de sonegação (por adulteração, triangulação e uso de laranjas), enquanto estruturas financeiras, os fundos de investimento, veículos societários e fintechs, dão cobertura contábil e aparência de legalidade ao capital, permitindo que valores de grande volume circulem longe da origem criminosa.
A Carbono Oculto detalhou técnicas de uso de interpostas pessoas e insumos químicos para burlar impostos, conectando o elo “varejo” ao “financeiro”. Já Quasar e Tank desenharam o mapa da cadeia completa: produção, distribuição e venda, onde a fraude tributária e ambiental se somava à lavagem, com estimativas de sonegação bilionária e o uso de fundos para blindagem e ocultação de patrimônio em escala nacional.
O crime organizado já opera como empresa
A concatenação dessas frentes (finanças, combustíveis, logística) ajuda a explicar por que investigações setoriais isoladas, no passado, não alcançavam o “núcleo” financeiro.
Já o desenho atual das atuais investigações mostra que o crime organizado internalizou práticas corporativas, com diversificação de receitas, governança de risco (com laranjas e camadas jurídicas), e “compliance invertido”, em que o uso de estruturas reguladas (fundos, fintechs) confere fachada de legitimidade.
Ao atingir simultaneamente os pontos de entrada (postos, distribuidoras), os mecanismos de fraude fiscal (adulteração, triangulação) e os veículos de ocultação (fundos, fintechs), Carbono Oculto, Quasar e Tank expõem a cadeia como um só organismo: a cada operação, uma camada distinta cai, e o arranjo completo fica visível.
A disputa política sobre o combate às facções
A presença de equipes de investigadores no coração financeiro de São Paulo tem significado político e regulatório: a ofensiva não é apenas sobre o “varejo” criminal, mas recai também sobre o sistema que viabiliza o empacotamento do dinheiro ilícito em ativos “limpos”, pressiona o debate no Congresso e tensiona espaços de autorregulação do mercado.
A CNN e o Estadão registraram a abrangência territorial e setorial das ações, incluindo empresas instaladas em edifícios icônicos da Faria Lima e estruturas que se vendiam como sofisticadas enquanto funcionavam como camadas de opacidade para recursos de origem criminosa.
O Congresso sob pressão das investigações
Enquanto isso, nas últimas sessões no Congresso Nacional, propostas apresentadas sob o manto de “combate a facções”, a exemplo do chamado PL das Antifacções, têm sido criticadas por juristas e especialistas.
Isso por incluir dispositivos que, na prática, podem restringir o uso de instrumentos de rastreio financeiro e ampliar salvaguardas processuais que dificultam medidas cautelares amplas, como as que que viabilizaram as operações Carbono Oculto, Quasar e Tank.
O choque entre ofensivas policiais com foco em fluxos financeiros e a tentativa de reconfigurar o arsenal legal é agora parte central do tabuleiro político.
Esse movimento se intensifica à medida que as operações atingem atores com trânsito em setores regulados e áreas de influência econômica, deslocando o debate do campo criminal para o campo institucional.
Por que o discurso do “tráfico periférico” não se sustenta
Os números das operações recentes são um divisor de águas: sonegação de R$ 7,6 bilhões, 350 alvos em oito estados, 40 fundos controlando R$ 30 bilhões, mandados na Faria Lima e detalhamento do uso de insumos e laranjas para burlar impostos – nenhum desses elementos é compatível com a visão de facções restritas ao varejo de droga.
Eles demonstram o acoplamento com mercados formais e a dependência de infraestruturas contábeis e jurídicas, algo impossível sem algum grau de conivência e falhas de supervisão.
É por isso que a disputa política sobre instrumentos de investigação se torna tão sensível: quando o alvo deixa de ser “o ponto” e passa a ser “o veículo financeiro”, o conflito alcança interesses com poder de pressão na agenda política e financeira do país.
A conexão entre dinheiro público e lavagem privada
A mesma lógica de ocultação patrimonial revelada nas operações recentes também aparece no uso de verbas públicas.
Emendas parlamentares e transferências de recursos para municípios, muitas vezes sem critérios claros de distribuição, acabam em contratos com empresas de fachada ou intermediários locais.
Esses fornecedores funcionam como “pontes” para legitimar o repasse, mas na prática desviam parte do dinheiro para partidos, entidades privadas e até pessoas físicas.
Em alguns casos, entidades assistencialistas e políticos municipais dão cobertura ao esquema, criando uma aparência de legalidade, o que precisa ser também investigados pelo Ministério Público nas cidades para as quais os recursos são destinados.
É assim que o ciclo da corrupção se repete: recursos públicos entram em estruturas opacas, são fragmentados e redirecionados, reproduzindo o mesmo mecanismo de fraudes setoriais e camadas financeiras já visto em combustíveis, fundos e fintechs. É também outra modalidade do crime organizado.
Por isso, a rastreabilidade deve priorizar a identificação dos beneficiários econômicos e dos vínculos entre fornecedores recorrentes e sociedades que surgem nas investigações criminais.
O escândalo é sistêmico e ainda está em curso
O que veio à tona até aqui – e muito mais ainda está para ser revelado – não é uma série de casos desconexos, mas um escândalo estrutural: cadeias de combustíveis como caixa e rota de sonegação; fundos e fintechs como véu de legitimidade; empresas no núcleo financeiro servindo de camada de ocultação; e uma disputa legislativa que, muitas vezes, tenta redesenhar o campo de jogo no meio da investigação.
Carbono Oculto, Quasar e Tank expõem as engrenagens, cada uma revelando uma parte do mesmo mecanismo. Ao conectar o varejo, a fraude fiscal e o sistema financeiro, essas operações demonstram que o crime organizado brasileiro deixou de ser periférico e se tornou parte integrante da economia formal.
O impacto é duplo: de um lado, a revelação de que facções como PCC e Comando Vermelho operam com a mesma sofisticação de conglomerados empresariais; de outro, a constatação de que setores políticos, especialmente ligados ao Centrão e ao espectro conservador, atuam para blindar ou suavizar o alcance das investigações, seja por meio de projetos como o PL das Antifacções, seja pela manipulação de verbas do orçamento secreto.
O escândalo estrutural, portanto, não se limita às práticas criminosas em si, mas à simbiose entre facções, empresas de fachada e atores políticos que, juntos, criaram um sistema de proteção mútua.
É assim que o Brasil descobre que o crime organizado não apenas se infiltrou na Faria Lima, mas também encontrou guarida no Congresso Nacional, transformando o combate às facções em uma disputa política institucional que definirá os rumos da democracia e da economia nos próximos anos.
Fontes consultas: Agência GovEBC; Correio Brasiliense; Jornal do Brasil; UOL Notícias; O Globo.

*Valdecir Diniz Oliveira é cientista político, jornalista e historiador.









