Exército ilude golpistas em São Paulo
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Mutirão para moradores de rua frustra bolsonaristas crentes de que as Forças Armadas estão completamente alinhadas ao golpismo
Por Carla Jimenez
Uma fila quilométrica circundava a Praça da Sé na quarta-feira, dia 23, no centro de São Paulo. Estava perto da hora do almoço e a notícia da marmita grátis corria rápido pela área. Era só chegar naquelas barracas, rodeadas por policiais, militares do Exército e voluntários uniformizados ajudando quem se apresentasse para entrar num cercadinho.
Passando a barreira de metal, recebiam um vale-quentinha e ali se davam conta de que podiam ser atendidos nas dezenas de postos de atendimento do Mutirão Pop Rua, que reuniu mais de 40 instituições para ajudar uma população invisível a recuperar um pouco da sua existência.
A maioria fazia fila para tirar o RG e fazer o cadastro para os benefícios sociais do governo. Outros aproveitavam para solicitar sua certidão de reservista. Homens e mulheres trans foram mudar seu nome social na documentação. Alguns exibiam felizes o esparadrapo no braço depois de tomar vacina, ou o cabelo recém-cortado.
“Vou poder visitar a minha mãe!”, dizia, exultante, Donivaldo de Souza Tavares, de 45 anos, que mora num albergue da prefeitura, com comprovantes da sua documentação renovada em mãos. Dali, poderia se inscrever num programa municipal de emprego e garantir uma renda para comprar roupas novas e uma passagem para Leme, no interior paulista, onde mora sua mãe.
Quem diria que manifestantes golpistas, que se instalaram em frente aos quartéis do Brasil para contestar o resultado da eleição, dariam holofotes a esse mutirão? O que se viu foi com uma profusão de vídeos de influenciadores de extrema direita alardeando que a Praça da Sé, marco zero de São Paulo, estava sendo tomada pelo Exército no domingo, dia 20, que a cidade tomou conhecimento da operação da qual o Exército fazia parte.
Soldados fardados num dos principais cartões da cidade renderam as mais variadas especulações sob a hashtag #PraçadaSé em redes bolsonaristas. A crença geral é de que finalmente o golpe de estado ia começar ali, pelo centro de São Paulo.
Sim, militares estavam erguendo barracas em frente à Catedral da Sé no dia da Consciência Negra. E os golpistas obcecados pela tomada de poder a qualquer custo estavam convencidos de que suas preces haviam sido atendidas. Segundo eles, aquela movimentação era um treinamento do Exército, e o alarme falso se espalhou nos grupos antidemocráticos de WhatsApp e Telegram.
Eis que a realidade bateu à porta dos extremistas naquele mesmo domingo, quando a juíza federal Marisa Claudia Gonçalves Cucio se aproximou de um blogueiro de verde e amarelo que filmava a movimentação da praça: “Você não quer me entrevistar?”, perguntou ela a Jakson Vilar, que falava da tal manobra militar a seus seguidores.
Foi então que a juíza explicou ao blogueiro que a movimentação militar integrava o Mutirão Pop Rua, uma ação de três dias ao ar livre para ajudar as pessoas em situação de rua, invisíveis para milhões de “cidadãos de bem”, a regularizarem seus documentos e terem acesso a benefícios sociais garantidos pela Constituição.
A ação é derivada da Política Nacional de Atenção a Pessoas em Situação de Rua, instituída em 8 de outubro de 2021 pelo Conselho Nacional de Justiça, que prevê o respeito à dignidade da pessoa humana e o acesso aos direitos de cidadania e às políticas públicas para a população mais vulnerável.
Outros mutirões do gênero começam a ser replicados em áreas rurais do Brasil. É assim que se fortalece a democracia num país onde a Constituição prevê que “todos são iguais perante a lei”.
Mas naquele domingo, o mutirão fazia um contraste com os pleitos dos bolsonaristas. Os manifestantes não sabiam que as Forças Armadas são parceiras constantes de ações de cidadania. Não, o Exército não é feito só de golpistas.
Àquela altura, a ilusão coletiva de que um golpe militar era orquestrado na Praça da Sé obrigou os organizadores do Pop Rua a improvisarem uma operação de contrainformação: dois juízes da equipe organizadora ficaram até tarde da noite do domingo entrando em grupos de Telegram e passando o link com informações do evento real para evitar um choque de “visitantes”.
Em vez de receber os brasileiros do mundo paralelo bolsonarista, a ação de cidadania era para o Brasil real, para pessoas consideradas “párias” da sociedade por muitos desses “patriotas” desinformados.
Ao ver centenas de servidores voluntários do poder Judiciário orientando a população carente, dava até para dizer: as instituições no Brasil estão funcionando. Um dos voluntários me contou que um morador de rua havia descoberto naquele mutirão que tinha R$ 27 mil a receber do INSS.
Jamais saberia se não tivesse a oportunidade de estar ali, ao ar livre, com outros como ele. “Eles não se sentem à vontade para entrar em prédios públicos para ver sua situação legal”, contou a magistrada Cucio, que não escondeu o entusiasmo com o projeto. “Não estamos inventando nenhum direito, estamos simplesmente dando acesso”, disse ela, que atua na 12ª Vara Cível Federal de São Paulo.
Enquanto a juíza e os mil voluntários do mutirão se movimentavam pela Praça da Sé na última quarta, os golpistas tiveram de encarar outra decepção: a coligação Pelo Bem do Brasil – formada por PL, Republicanos e PP –, que lançou a candidatura do presidente Jair Bolsonaro à reeleição, recebeu uma multa de R$ 22,9 milhões do Tribunal Superior Eleitoral por seu pedido esdrúxulo de questionar a idoneidade de quase 60% das urnas apenas na eleição de segundo turno.
A malandragem visava manter os votos daquelas mesmas urnas questionadas no primeiro turno e sugeria que as do segundo turno não seriam confiáveis. Justamente os que deram vitória a Luiz Inácio Lula da Silva.
A tropa ficou desnorteada, ao mesmo tempo em que alguns atos em frente aos quartéis começaram a fraquejar. “Patriotas… nosso movimento está fraquíssimo hoje… desistir não é opção”, cobrava um militante do Rio num grupo de WhatsApp na última segunda-feira.
O ensaio para a “invasão do Capitólio brasileira” parece ameaçado. Até a imprensa passou a chamar os manifestantes pelo que eles de fato são: golpistas. Para sair do cativeiro montado pela extrema direita autoritária, é preciso ter coragem de recorrer ao óbvio, como se viu na Praça da Sé: mais democracia.
“A política anda conforme a sociedade se movimenta”, filosofava Joel Oliveira, exibindo seus documentos novos e o esparadrapo no braço depois de se vacinar no Pop Rua. Repetia a frase que ouvira, segundo ele, do jornalista Ricardo Boechat, que faleceu em 2019. Agora, é seguir o jogo.
*Carla Jimenez é colunista do The Intercept Brasil.
ISSO É DE MES PASSADO JKKKKKKKKKKKKKKKKKKKKKKKKKKKKKKKK, DESINFORMA MESMO