Em visita ao poeta, Drummond pede ao Cometa que persista na defesa de sua terra natal
Carlos Cruz*
Na edição posterior à visita que a turma de O Cometa fez ao filho mais ilustre de Itabira, em 14 de fevereiro de 1981, Drummond reforçou a linha editorial do jornal, após enaltecer o papel fundamental que o advogado e tributarista itabirano José Hindemburgo Gonçalves tivera na luta pelos direitos da cidade frente à mineração:
“O que fiz (em defesa de Itabira), isso em outra ocasião, foi esforçar-me, pelas colunas do “Correio da Manhã”, no sentido de obter que a Cia. Vale do Rio Doce cumprisse os seus estatutos, transferindo para Itabira a sua sede, arranchada docemente no Rio de Janeiro. Nessa campanha, por sinal, a artilharia pesada de argumentos, de que me vali, foi fornecida por um valoroso conterrâneo, o José Hindemburgo Gonçalves. Nada conseguimos. É tão comum Itabira perder suas causas e seus direitos!”, lamentou o poeta.
E Drummond prosseguiu, finalizando a sua carta à redação do jornal, em 31 de março de 1981: “Como eu tenho esperança nas novas gerações, e vocês do COMETA constituem um posto avançado da gente nova, espero que continuem se mexendo e pedindo e reclamando e orientando os demais – por amor à nossa Itabira”.
O Cometa foi um jornal de política, ideias, humor e cultura. E foi também o responsável pela reaproximação de Itabira com o poeta Carlos Drummond de Andrade, que nunca se esqueceu de sua terra natal, embora muito conterrâneo ainda hoje o acuse de omissão, o que é uma grande inverdade histórica.
Foi no Cometa que Drummond publicou, em 1984, os poemas O maior trem do mundo e Lira Itabirana: “O Rio? É doce./ A Vale? Amarga./ Ai, antes fosse/ Mais leve a carga.”
Amabilidades
A troca de amabilidades e colaboração entre jornal e poeta teve início com a publicação da primeira carta ao Cometa, em dezembro de 1979:
“Prezado Lúcio Vaz Sampaio: Grata surpresa O Cometa Itabirano. Espírito independente, diagramação moderna, impressão ótima. Gostei. Só que me pareceu um tanto … drummondiano em demasia. Claro que me tocou a generosa lembrança do meu nome em várias páginas. Mas eu entendo que a missão de vocês deve ser antes crítica do que enaltecedora, e há muita coisa a fazer em defesa e benefício de nossa Itabira. A entrevista com Dom Mário Gurgel, excelente. Dá que pensar o que ele observa com propriedade: as pessoas se interessam mais pela Vale do que por Itabira. É lamentável isso. (…). Abraço cordial e agradecido do velho itabirano, Carlos Drummond de Andrade.”
No dia 14 de fevereiro de 1981, a turma de O Cometa visitou o poeta Carlos Drummond de Andrade, que assim definiu a visita. “Foi uma boa conversa entre conterrâneos.”
De fato, foi o que ocorreu. Pontualmente, depois de autorizado pelo porteiro a pegar o elevador, às 10h batemos campainha no sétimo andar da rua Conselheiro Lafayete, em Copacabana, cidade de São Sebastião do Rio de Janeiro.
Drummond atendeu muito atencioso, cumprimentou um a um – e nos conduziu até a biblioteca. “Esperem um momento. Fiquem à vontade. Daqui a pouco quero saber de tudo o que vocês têm para me contar.”
Na sala anexa, o poeta itabirano concluía entrevista com a professora de Literatura da USP Rita de Cássia Barbosa. Não demorou, eles se levantaram. Dirigiram-se até a nós. “Quero apresentá-la aos meus conterrâneos”, Drummond conduziu a professora em nossa direção. Cumprimentamos e ela se despediu.
“Então, podemos conversar”, propôs o poeta. Drummond não liberou a gravação, mas permitiu que fossem feitas fotos à vontade. E chamou Dolores, sua mulher, para nos apresentar e participar da conversa.
Dolores nos revela as impressões que teve do pouco tempo em que morou em Itabira, quando Drummond lecionou Geografia e Português no Ginásio Sul-Americano. Não foram boas lembranças, tanto que o casal permaneceu pouco tempo na cidade.
E Drummond seguia nos perguntando. Queria saber de tudo sobre a Cidadezinha Qualquer. Mas, claro, o poeta falou – e muito, pura poesia para os nossos ouvidos. Perguntou pelo nosso chargista, cartunista e diagramador Genin, que não estava presente na visita.
“Gosto muito de suas caricaturas. E do bom humor de vocês”, elogiou o poeta. Disse que já quis ser humorista, como se ele não tivesse sido. E assim, jornal e poeta foram se conhecendo – e trocando impressões sobre Itabira e O Cometa.
“Tenho acompanhado o trabalho de vocês e percebo uma linha coerente no que tem sido feito”, afirmou. “Um jornal irreverente, e com uma linha crítica, como é o de vocês, deve encontrar sérias dificuldades para se sustentar”, observou o perspicaz jornalista. Acertou na “mosca”.
Vila de Utopia
Drummond conta algumas histórias de Itabira e a conversa entra para o campo de suas preocupações com o presente e futuro da cidade – apreensões que o poeta vinha manifestando pelo menos desde que escreveu Vila de Utopia, em 1933, nove anos antes da criação da Vale.
E como ele também escreveu na década de 1950, aos domingos no Correio da Manhã, cuja menção ele faz em carta enviada ao jornal. O poeta jornalista queria saber como vivia a terceira Itabira com o minério do Cauê e Conceição sendo extraído em larga escala – e como se projetava a quarta Itabira, tendo que se virar sem a mineração.
O poeta expressou o que pensa a respeito: “Uma cidade vivendo exclusivamente em função da monoindústria, não pode ficar tranquila quanto ao seu futuro. A relação de dependência é muito grande”, afirmou.
A fotografia na parede, que não foi vista no apartamento do poeta, permaneceu ao longo da nossa conversa. “Itabira nunca saiu de minhas lembranças”, revelou. O poeta mencionou o ressentimento de parte dos itabiranos, que o acusavam de se manter indiferente à realidade de sua terra natal.
“Muitos me acusam de omissão por nada fazer por Itabira. Ora, sou poeta, não exerço nenhum mandato político. O itabirano deve cobrar posicionamentos dos deputados que se elegeram com os votos dos eleitores da cidade. São eles que têm a obrigação de fazer algo pela cidade, de gritar, de protestar nas assembleias. A minha profissão é também de jornalista e sempre que alguma denúncia chega aos meus ouvidos, eu procuro repercuti-la nos jornais em que escrevo.”
O poeta prossegue criticando a omissão dos políticos locais e nacionais. Lembra que é histórica a letargia do itabirano, que cruza os braços e deixa a vida passar devagar em Itabira do Mato Dentro. Esperançoso, embora ainda cético, diz acreditar que um dia o itabirano irá acordar desse sono letárgico.
Drummond analisa a relação da então estatal Companhia Vale do Rio Doce com a cidade. “Até hoje eu não sei se a Vale foi um bem ou um mal para Itabira, mais precisamente para o itabirano. Antigamente, o itabirano era irreverente, mordaz, crítico. Não via com bons olhos as coisas do governo. Ele se conduzia com uma consciência crítica, lúcida. Protestava, gritava quando achava de direito. Hoje, o itabirano me parece resignado, como se nada mais pudesse ser feito. É preciso que Itabira acorde para os seus problemas”, sugeriu o poeta.
Foi nesse clima cordial, amigo e alegre que passamos duas horas na companhia do itabirano Carlos Drummond de Andrade. Se de tudo fica um pouco, ficou uma aliança tácita entre o poeta e a turma do jornal O Cometa, uma parceria de muitos anos, até a sua morte em 17 de agosto de 1987. E que prosseguiu enquanto o jornal existiu.