Eliane Marques, Seu João Xavier, Kalila das Mercês e Alexandre Coimbra debatem colonialidade, subjetividade e os limites impostos à literatura

Foto: Carlos Cruz

Nessa sexta-feira (31), o 5.º Festival Literário Internacional de Itabira (Flitabira) deu continuidade à sua programação com a mesa Mito e Literatura: Quem tem direito de escrever?, realizada no teatro da Fundação Cultural Carlos Drummond de Andrade.

Participaram do debate a escritora Eliane Marques, o educador e sociólogo Seu João Xavier, a poeta e jornalista Kalila das Mercês e o psicólogo e escritor Alexandre Coimbra Amaral, que mediou a conversa.

Alexandre Coimbra abriu a mesa com um convite à intimidade: “Quero que a gente se sinta como se estivesse no alpendra da casa, tomando um café.” A proposta era aproximar a conversa do público, como quem compartilha histórias.

A pergunta norteadora da mesa foi direta e provocadora: “Para onde caminhamos como país se descolonializamos a relação entre o livro e a literatura?”

A partir dela, os convidados refletiram sobre os mitos que sustentam a escrita, os silenciamentos históricos e os caminhos possíveis para uma literatura mais plural e justa.

O mito fundacional e a mesa coletiva

Eliane Marques trouxe à mesa uma leitura crítica do mito fundacional da sociedade ocidental, baseado no assassinato do pai da horda primitiva, conforme descrito por Freud.

Em contraponto ao mito fundacional ocidental baseado na violência, Eliane Marques apresentou uma narrativa de matriz afro-brasileira que propõe uma fundação pela devolução e pela mesa coletiva. “É uma sociedade que se funda na composição, não na destruição”, afirmou.

A história, que envolve os orixás Orumilá, Oxalá e Exu, revela uma lógica de fragmentação e recomposição, em vez de violência originária. “Enquanto não mudarmos a forma de pensar os mitos fundacionais, não sairemos do lugar do genocídio.”

Seu João Xavier refletiu sobre os mitos impostos à literatura e à arte. “A estética é um construto filosófico que expressa a subjetividade. E essa subjetividade, historicamente, foi negada aos corpos racializados”, acentua.

Para ele, a ideia do construto filosófico expressa a subjetividade. A ideia da estética, como campo de estudo, não é uma verdade absoluta ou natural, mas sim uma construção teórica que reflete visões de mundo, valores e subjetividades — e que, historicamente, excluiu ou marginalizou certos corpos e culturas.

Ele questionou quem tem direito de ser considerado produtor de arte, de conhecimento, de beleza. “A literatura é uma forma de disputar sentidos. Quem escreve, inscreve-se no mundo.”

A estética como denúncia

Kalila das Mercês trouxe uma fala potente sobre como a estética é também política.

“Nada é mais estética que a arquitetura. E se a arquitetura é estética, o que a estética do Rio de Janeiro está denunciando quando tapumes escondem a favela?”

A poeta e jornalista questionou os marcadores de pertencimento e exclusão que atravessam a arte, a cidade e o corpo.

Ela também denunciou o apagamento de autoras negras na formação acadêmica e criticou o debate sobre a legitimidade literária de Carolina Maria de Jesus.

“Como assim estamos discutindo se Carolina é literatura? A quem incomoda essa escrita? Quem está na mesa? E quem é deixado de fora?”

O direito de errar e de existir

A poeta defendeu o direito de pessoas negras escreverem, publicarem, errarem e serem lidas.

“Quantas vezes nós, pessoas negras, somos responsabilizadas pela coletividade? O acerto é obrigação, o erro é coletivo.”

Ela compartilhou experiências pessoais de exclusão e vigilância, e refletiu sobre o que seria uma liberdade real. “Será que liberdade é poder existir sem precisar justificar a própria presença?”

A literatura como espelho da sociedade

A mesa foi marcada por escuta, afeto e densidade simbólica. “A literatura é o que está acontecendo aqui com a gente”, disse Kalila.

“Se ela desmascara ou expõe tudo isso, para onde caminhamos quando conseguimos trazer o direito da caneta para a mão de todo mundo, da preta favelada ao doutor em literatura?”

Foi uma mesa de debates em que os mitos foram questionados, os saberes reconfigurados e a escrita reafirmada como gesto de devolução – e não de exclusão.

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