Drummond sem pedras no caminho

Fotos: Acervo BN/Rio

Pedro Bloch entrevista Drummond

Carlos Drummond de Andrade (“o maior poeta que o Brasil já teve”, na opinião de Manuel Bandeira) recebe aquele estudantezinho atrevido que, de saída, lhe pergunta, sem a menor cerimônia, já amigo de “tu”:

Onde nascestes?

A vontade de Drummond seria responder: “em Itabiriste”. Mas se contém e fica à espera. O menino, decididamente da extrema esquerda, quer que todos assumam posição no mundo de hoje. E pergunta:

Drummond, qual é a posição do escritor nos dias que vivemos?

Este não hesita e dispara:

– A posição do escritor pode ser de pé, sentada ou deitada, conforme lhe resulte mais cômodo.

E, diante do espanto do mocinho, aconselha:

– Menino, se você não é comunista, vá sendo logo, que é para deixar de ser depressa. Eu também já fui e deixei.

O HOMEM DRUMMOND – Não sei quem pôs na cabeça de Drummond que ele é gauche. (Quando nasci, um anjo torto, desses que vivem na sombra, disse: vai, Calos ser gauche na vida.”) Foi ele mesmo quem inventou que é insociável. (“Mas se tento comunicar-me, o que há é apenas a noite e uma espantosa solidão.”)

Um homem que desperta ternura coletiva como ele, que tem um papo que faz a delícia de seus amigos (“Mas há que tentar o diálogo quando a solidão é vício”), meteu na cabeça que existe uma barreira entre ele e o mundo. O homem do “sentimento do mundo” se protege com um verniz isolante que é fino e penetrável a qualquer calor humano. (“Eu sei quanto me custa manter esse gelo digno.”)

Muita gente acha que Drummond fugiu de algum quadro de Modigliani. Para mim ele esteve mas foi metido em alguma obra de El Greco e não quer dizer. Bom pai, extravasa, constantemente, a ternura que devota a Maria Julieta, casada com o advogado Manuel Graña Etcheverry (autor de uma curiosa utopia e que já lhe deu três netos).

– Falar de mim, Bloch? Pra isso eu preciso de preparo espiritual. Minha filha, sim. Ela lhe diria tanta coisa! Calcule a falta que me faz: ela em Buenos Aires e eu aqui. Já recebi o Prêmio F. Chinaglia, outro dia. Agora, vem você. Já fica muito holofote em cima de mim. Eu não sei falar de mim. Criei carapaça de tartaruga. Não pense que todo mundo é como você. Ainda existe gente que diz mal de minha poesia. Aquela história da “pedra no caminho” …  Até hoje.

Relembro quase sem querer:

João amava Teresa que amava Raimundo

que amava Maria que amava Joaquim

que amava Lili que não amava ninguém.

João foi pros Estados Unidos.

Teresa para o convento.

Raimundo morreu de desastre, Maria

ficou pra tia,

Joaquim suicidou-se e Lili casou com J. Pinto Fernandes

que não tinha entrado na história.

Muita gente não compreendia razões, raízes, motivos. Não compreendia e, como todos os que não compreendem, emitia opiniões definitivas.

A modéstia de Drummond ainda conserva dúvida e mágoa.

Drummond não anda, se esgueira. Não fosse seu ar de asceta, se diria conspirador. É sombra dele mesmo. Luís Jardim me conta que, um dia, ao ser apresentado a Drummond, se dirigiu para ele de mão espalmada, disposto a um daqueles apertões bem nossos, mas a mão “saiu como um suspiro”. “Não pude nem tocar. Drummond é intocável.” (“Toda essa mão para fazer um gesto que de intocável nunca se modela.”)

Colégio Arnaldo (1912), Congregação do Verbo Divino

DRUMMOND PASSADO A LIMPO – Nasceu em Itabira do Mato Dentro, Minas, em outubro de 1902. (“Alguns anos vivi em Itabira./Principalmente nasci em Itabira./Por isso sou triste, orgulhoso, de ferro./Na cidade toda de ferro,/as ferraduras batem como sinos.”)

Filho de Carlos de Paula Andrade e d. Julieta Drummond de Andrade. (“Meu pai montava a cavalo e ia para o campo,/minha mãe ficava sentada cosendo.” “De Itabira trouxe/este orgulho, esta cabeça baixa.”)  Carlos Drummond de Andrade, quieto e só, lia Robinson Crusoé, outro solitário.

Fez belas descrições no grupo escolar. Em 1916 foi pro Colégio Arnaldo de Belo Horizonte. Lá conheceu Gustavo Capanema e Afonso Arinos. Em 1925 casou. É farmacêutico, mas nunca exerceu a profissão. Em 1925 entrou para a burocracia (“Tive ouro, tive gado, tive fazendas./Hoje sou funcionário público./Itabira é apenas uma fotografia na parede./Mas como dói”) Está aposentado.

PRÊMIO NOBEL PARA DRUMMOND? – Em 1930 surge seu primeiro livro: Alguma Poesia. Com a obra se avolumando, com o correr do tempo, surgiu, este ano, um movimento para dar a Drummond o Prêmio Nobel de Literatura. (“O fato ainda não acabou de acontecer e já a mão nervosa o transforma em notícia.”) A certa altura, começou a tomar vulto, mas foi o próprio escritor quem desencorajou a ideia.

– O homem que propôs isto, é um estudioso e tradutor americano, mas sem credenciais. Em Portugal o movimento partiu de um ex-aluno de Literatura Brasileira, de Thiers Moreira. Em Minas fui alvo de tanta manchete, que me senti assim uma espécie de Miss Brasil. Não tenho condições para tal prêmio. Sou pouco traduzido e difundido no estrangeiro, minhas ambições não chegam lá.

Todos sabemos, porém, que elas poderiam chegar. Garanto a Drummond que ele é um Fernando Pessoa nosso. E, em certas coisas, com vantagem. Drummond sorri:

– Quem me dera! Fernando Pessoa era muitos poetas. Quem sou eu? Acho que poetas poucos conseguem sê-lo, e eu gostaria de ser um. O poeta verdadeiro precisa de aprendizado, de uma adequação da própria vida. A poesia, para mim, resulta de um desabafo, da inconformidade com o mundo. Ela contém, também (e muito!), coisas irônicas, não poéticas. O poeta verdadeiro não é como eu, de formação irregular. É como um Dante, que tem uma mensagem imensa a viver.

Lembro a Drummond o que, um dia, me dissera Cecília Meireles:

“Poesia, para mim, é uma tentativa constante de dizer algo. A gente vai tentando dizer, torna a dizer de outra maneira e jamais alcança dizer o que realmente gostaria de ter dito.”

Drummond concorda:

– Se eu me sentisse bem integrado na vida, não sentiria necessidade de dizer para o pão plástico ou pankex. E com as cores fascinantes que tem hoje os plásticos, os porquês vinílicos e os materiais de construção em geral, o pão eternil será policromo e arrebatador.”

Há 43 anos, o então estudante e a moça chamada Dolores se conheceram num cinema de Belo Horizonte. Começou um namoro tímido, início de um amor definitivo. Cinco anos depois ela era a esposa de Drummond, o fazendeiro do ar.

A ESPOSA DOLORES – Somos casados há trinta e oito anos, me diz dona Dolores. – Carlos ainda era estudante.

O olhar que dirige ao marido revela a harmonia em que vivem.

O poeta corrige:

– Quarenta e três. As mulheres tem sempre a mania de diminuir a idade em tudo. (E, com ternura, para a esposa:)

– Você não contou os cinco anos de namoro.

– Nós nos conhecemos num cinema. Naquele tempo, em Belo Horizonte, não havia outro lugar pra gente se conhecer. Aliás minto: havia a igreja. Mas naquele tempo eu era “anarquista”. Anarquista não podia ir à igreja, podia?

SEM PEDRAS NO CAMINHO – (“Uma flor nasceu na rua!/Passem de longe bondes, ônibus, rio de aço do trafego.”)

– Nunca atropelei ninguém, nem nunca fui pisado. Não havia pedra alguma em meio caminho. Todas as coisas na vida me vêm sem eu pedir. Tenho muitos amigos e gosto de falar deles.

Olhe o Drummond e… curioso! Augusto Frederico Schmidt, de corpo todo matéria… é espiritualista. Carlos Drummond de Andrade, que é só alma e sombra… é materialista.

– Sou materialista com algumas nebulosas. Vivo perguntando-me coisas.

(“Tudo é possível, só eu impossível. Sinto que nós somos noite, que palpitamos no escuro e em noite nos dissolvemos. Começo a ver no escuro um novo tom de escuro. Sou apenas um homem. O essencial é viver!”)

Materialista que vive perguntando a José Olímpio: “Será que existe o lado de lá?”

Família itabirana de Carlos Drummond de Andrade

TRANSVIADO DAQUELE TEMPO – Eu não fui o menino quieto que muitos supõem. Pelo menos em Belo Horizonte e depois. Quando ali cheguei, havia um grupo de transviados da época que se dedicavam às coisas mais estranhas: a gente vivia arrancando placa de médicos e fazendo enterro de delegado. Uma noite fiquei danado porque a turma não me convidou. Reclamei, desapontado: “Vocês todos saíram no jornal e meu nome nem aparece!” Era uma desmoralização.

Prossegue, enquanto, para surpresa minha, me serve conhaque. Nunca imaginei Drummond, que não fuma, tomando conhaque.

– Naquele tempo, no restaurante Colosso, de Belo Horizonte, a refeição custava dois mil réis. Papai era seco por fora, mas doce por dentro. Pra ter dinheiro pros meus gastos particulares comecei achar que a comida de casa não prestava e pedi dinheiro pra comer no Colosso. Papai me dava dinheiro pro almoço e pro jantar, mas eu não jantava. Um dia ele explodiu. Eu me fizera tão magro que parecia personagem de Josué de Castro.

A MARCHA PARA O MODERNISMO – Eu era um adolescente anarcóide. Hoje ninguém diz, me vendo já com esta idade e com este jeito. (De lado esquerdo carrego meus mortos/Por isso caminho um pouco de banda.) Vou envelhecendo. Os meus vivem sessenta e poucos. Estou velho. Há muito suspeitei o velho em mim/Ainda criança já me atormentava; Vai-se-me a vista assim baixando/ou a terra perde o lume?).

Milton Campos (que não é escritor, mas produziu um belíssimo soneto sobre Camões), Abgar Renault, Gustavo Capanema, Alberto Campos, João Alphonsus, Rodrigo Melo Filho, depois Ciro dos Anjos, me ajudaram muito. Nos reuníamos no Café Estrela, pro chope e pra média. Cada um fazia a crítica honesta do outro. Abgar escrevia versos que ele mesmo recitava nos salões e que, faziam as moças se apaixonarem incessantemente.

Um dia cometi um soneto. Cada um deles leu e me olhou com uma cara muito desolada. Nunca mais fiz soneto. Marchei para o modernismo.

Muito modernista deve ter nascido assim. Eu, por exemplo, tinha um terrível sentimento de infelicidade porque não sabia fazer versos como todo mundo.

O “ANARQUISTA” DRUMMOND – Ao Milton Campos devo o conhecimento de Anatole France. Pra nós, na intimidade, era o Anatole pra cá e pra lá. Nosso quartel-general era a Livraria Alves de Belo Horizonte, com seus caixotes de livros de novidades francesas. O Capanema comprova logo os melhores. Depois descobri que dava aulas particulares a vinte e mil réis. Mário Casassanta, Pedro Nava, Emílio Moura eram outros amigos, todos tolerantes com as minhas baterias.

Uma pausa:

– Eu sou do tempo que professor era “mestre”. Cantava mal. Não ousava abrir a boca nem para o Hino Nacional. Minhas preferências musicais são modestas; me encanta a música de realejo. (Uma coisa triste no fundo da sala/Me disseram que era Chopin.) Mas como eu ia dizendo… (ou não disse ainda?) … havia poucos colégios em Minas. Papai achou que o Anchieta, de Friburgo, seria bom para mim. No primeiro dia, logo de saída, pra não perder tempo e chamar a atenção sobre mim, me declarei, nada mais nada menos, anarquista. Eu nem sabia direito o que isso era.

Naqueles dias se jogava muita bomba na Catalunha. Eu achava lindo esse negócio de jogar bomba. Enfrentei a caçoada dos colegas. Me deram logo o apelido de “Anarquista”. Eu era tratado por esta alcunha ou então por “74”. Esse negócio de ser número me horrorizava. Na correspondência pra casa, sempre censurada, falava do ambiente. Tive um incidente com um professor de português, Guedes, que me mandou sair da sala. Naquele tempo o importante era a instrução. Era o comportamento. Diante de toda a classe, o aluno era desmoralizado. O “74” teve quatro em comportamento… por comiseração. Eu reagi. Queria a nota justa… sem comiseração alguma.

Fui expulso. Perceberam em mim o germe do anarquista. Você não calcula, seu Pedro Bloch, o que sofri de pesadelos por causa dessa expulsão.

MINHA CULTURA – Homem de rara grandeza e de imensa cultura, Drummond despista:

– Eu desde menino, gostava muito de ler. Em 1913, papai mandou buscar e chegou a Itabira, em lombo de burro, a famosa Biblioteca Universal de Obras Célebres. Com sua leitura me considerei o cidadão mais culto da cidade. Meu irmão José, dono da metade da biblioteca, então a perdeu para mim, porque o venci numa discussão. Até hoje a conservo. Meu acervo de cultura era essa Biblioteca. Dava pro rapazote brilhar. Sabia um pouco de tudo. Aquilo me abriu a janela para o mundo. Um irmão meu ainda me mandava revistas e jornais do Rio, além das formigas e abelhas de Maeterlinck.

Vista de la Calle Arroyo, Buenos Aires

O MUNDO ACABA EM BUENOS AIRES – Drummond nunca viajou. (Preciso fazer um poema sobre a Bahia/Mas eu nunca fui lá.) Para ele o mundo acaba em Buenos Aires. Três netos e três viagens. Pronto.

– Só mesmo minha filha e meus netos me levariam a viajar. Nunca fui à Europa.

Conta-me histórias de seus netos:

– Carlos Manuel, muito preocupado com a vida, que ele imagina se estender até os cem anos, diz, um dia, filosoficamente: “A vida é curta mesmo! Tenho sete anos… dentro de noventa e três me metem no caixão e fim!” Num domingo foram ver aviões rompendo a barreira de som. No domingo seguinte os netos souberam que a prova ia ser repetida e um deles se espantou: “Vão romper de novo? Já a consertaram?”

Carlos Manuel, neto do poeta

Drummond recorda Buenos Aires:

– Tive a ventura de viver, ali, um momento de glória. Entrei na Calle Florida, para fazer a barba. O barbeiro me olha e diz: “O senhor é um poeta brasileiro, não é?” Fiquei feliz. Que celebridade! Conhecido até pelos barbeiros de Buenos Aires! O meu ego começou a inflar de orgulho, quando o homenzinho pica o balão com alfinete: “Eu reconheci logo o senhor. Vi um retrato seu, pintado por aquele Portinari, em casa de seu genro, na Calle Arroyo. Eu faço a barba dele, também.”

Pouco depois (ironia do destino!) entre intelectuais que homenageavam numa livraria o poeta espanhol Rafael Alberti, antifranquista exilado em Buenos Aires, ninguém me reconheceu.

Viagem me associa o poema do avião. Pergunto:

– Drummond, você tem medo de avião?

Ele me olha, com aquela chaminha mansa escondida por detrás dos aros de tartaruga e explica:

– Não, Bloch. Tenho medo de todos os meios de transporte, inclusive o avião.

TENHO MEDO DE LER MACHADO DE ASSIS – Há muita coisa que eu admiro muito. E gosto de admirar. Você sabe?

Em geral a literatura não conduz à boa conduta moral. Escritor se junta pra falar mal dos outros. Entretanto nem padeiro fala mal de padeiro.

Drummond me fala de suas admirações e alergias:

– Leio e releio Machado de Assis desde adolescente. Mas com medo. Ele me impregna tanto que tenho medo de plagiá-lo involuntariamente. Realiza a literatura que eu gostaria de ter feito. É discreto e profundo. Minha admiração por Machado é tremenda.

Já Euclides da Cunha tem o tipo de estilo que me desagrada, cheio de riquezas verbais que, para o meu gosto, não funciona. Admiro com raiva. É antípoda do meu gosto. Gonçalves Dias me satisfaz mais, muito mais, que Castro Alves. Gonçalves Dias é mais próximo de mim. A gente julga o valor das coisas pelo gosto que tem. As condições sociais de Castro Alves despareceram. Quando ele é lírico me agrada muito, mas não é meu poeta de cabeceira.

Recordo, neste instante, o que Drummond havia escrito em carta: “A melhor maneira de admirar Castro Alves é não imitá-lo. Castro Alves é fascinante como todo mau exemplo. Ele resiste até aos amigos. Há poetas que se impõem à nossa admiração, especialmente quando não queremos admirá-los.”

Prossegue:

– Guimaraes Rosa, para mim, continua admirável. Por mais que ele tenha em boa conta a originalidade de seus processos literários, vai muito além do seu próprio julgamento. Acho que “ele é um louco que pensa que é Guimarães Rosa”.

Quando vim para Belo Horizonte trouxe uma admiração infinita por Álvaro Moreira. Achava bonito como ele escrevia e me encantavam, principalmente, suas reticências. Aquelas reticências… pareciam penumbra… coisa esmaecendo… surdina…

Quando aqui cheguei, em 23, a primeira coisa que fiz foi procurar o Alvinho em O Malho. Me deu um livro, com uma dedicatória em tinta roxa o máximo! Depois começaram a sair coisinhas minhas no Para Todos. Quando eu era publicado, ficava andando, com a revista debaixo do braço, com a esperança de que os transeuntes, através de um raio X especial, pudessem ver. Tinha a impressão de que era um grande escritor.

DRUMMOND E MANUEL BANDEIRA – Quando se toca em Manuel Bandeira, Drummond é todo enlevo:

– Bandeira é mais velho do que eu. Aprendi a fazer versos através dos versos dele. É um homem excepcional. Os poetas, em geral, ou morrem aos vinte e poucos ou atingem os cinquenta e deixam de escrever. Um homem de setenta e sete anos, escrevendo com a graça do Bandeira, é algo de assombroso. Ele é uma espécie de arco-íris na poesia brasileira.

Abrange todas as experiências… até mesmo o concretismo! Mário de Andrade fez bons poemas, mas era revolucionário. O Bandeira é nominativo, esclarecedor. (Lembra-me o João Condé que o Drummond, que também é caricaturista, já desenhou capa de livro do Bandeira.)

BANDEIRA FALA DE DRUMMOND – Diz-me Manuel Bandeira:

– O Drummond é o maior poeta que o Brasil já deu e reconheço sua superioridade sobre mim. De nós dois, o poeta moderno, o que captou a complexidade do momento presente e a transmite como ninguém é o Carlos.

– Bandeira, por que é que o Drummond não entra para a Academia?

– Por várias razões. Em primeiro lugar, não está no feitio dele visitar acadêmicos. Depois… ele nunca fez um discurso de verdade em toda a sua vida. Além disso… temos a tragédia do fardão. Você já imaginou o Carlos vestindo aquilo?

Eu mesmo passei por este problema. Não sei se você sabe que eu não tenho fardão. Não queria comprar porque só o usaria no dia da posse e não queria que os meus amigos me oferecessem. O Otávio Tarquínio me arranjou emprestado com a viúva de João Luís Alves. Nunca mais o vesti. Aliás, o Macedo Soares me ofereceu um belíssimo colar. Nunca usei.

E conclui sorrindo:

– Se eu tenho medo do fardão… calcule o Drummond!

“O HOMEM SE RELIZOU NA ARTE – A palavra genial pode ser usada em seu sentido mais amplo, com todo o seu peso especifico, quando se trata de Drummond. Banalizaram-se tanto os adjetivos que “genial” passou a ser qualquer pingente de glória. É o próprio Drummond quem aconselha:

– Se hesitar entre dois adjetivos, jogue ambos fora e use o substantivo.

Outro conselho revelador:

– Não responda a ataques de quem não tem categoria literária; seria pregar rabo em nambu. E se o atacante tiver categoria… não ataca, pois tem o que fazer. (Recordo o poema-orelha: Esta é a orelha do livro por onde o poeta escuta/se dele falam mal/ou se o amam./Não me leias se buscas/flamante novidade/ ou sopro de Camões…” … “a poesia mais rica é um sinal de menos.”)

Drummond diz, com seu falar precipitado, taquifêmico:-

– Pedro, se se parar de fabricar automóvel e produzir alimentos… o mundo acaba. Mas se se parar de produzir sonata ou poema… o estoque dá para alimentar a humanidade para o resto da vida. Atrás dela já estão Goethe e Beethoven, compreende? O homem já se realizou na arte. O homem já disse tudo o que podia dizer. Onde outros colocam Deus eu coloco a obra de arte. Quem não acredita em Deus ainda pode acreditar em Mozart.

Aquele homem que diz que não crê em Deus, entretanto, insiste com José Olímpio: “Será que existe o outro lado de lá?” Suas conversas com o editor são infinitas. “Sua poesia se vende, Drummond”, lhe diz este. E Drummond: “Eu não quero a minha poesia mercenária.”

Drummond renunciou a muita coisa na vida, por “modéstia”, humildade, timidez. Muita coisa para ele foi como seu verso: “boneca partida antes de brincada”. O resultado das vivências e das frustrações nos dão esse homem singular, de uma grandeza humilde, que escapa ao nosso alcance. Envergonha-se como um colegial quando colegiais, sem a menor vergonha, dele se aproximam e expressam sua infinita admiração.

Aí Drummond não sabe como desaparecer. O mestre das palavras não encontra palavra. Reage de maneira peculiar. Ele e José Olímpio são dois críticos de cinema frustrados. Um dia, Drummond, tendo visto “Morangos Silvestres”, ficou tão empolgado, mas tão empolgado… que foi até o Leblon e voltou… a pé. Outro teria feito comício (“Já me quiseram fazer deputado, mas eu não saberia falar aos eleitores… e não teria mais de três votos”), gritado, se embriagado. Drummond, não andou.

– Gosto tanto de cinema – me explica ele – que quase não vou. Fico indignado quando assisto a um mau filme.

“O ANO PASSADO EM MARIENBAND” – Há poucos dias estavam Drummond e José Olímpio num bate-papo, quando o editor lhe diz:

– Drummond, eu acho que estou ficando burro.

O poeta se alarma.

– Sim, Drummond. Eu estou ficando burro.

– Burro, por que? – quer saber o outro.

José Olímpio baixa os olhos e confessa sua imensa vergonha, meio gaguejante:

– Sabe, Drummond?… Eu fui ver… sabe?… “Ano passado em Marienbad”… e não gostei.

Drummond o analisa com piedoso olhar e consola:

– Não, José Olímpio. Você não é tão burro assim.

E confessa, sem o menor pudor:

– Eu, também, não gostei.

Um poema pouco feliz levou Drummond aos caminhos da poesia moderna

… A poesia anda espalhada em todos. Minha empregada, outro dia, quando viu a televisão começar a cair, pegou-a na queda e explicou:

– Eu peguei ela na flor do ar.

Posso dizer o mesmo na minha “técnica”. Mas ela tem isso inato.

O verdadeiro poeta não é o que tem o dom. Dom todo mundo tem. O dom mais a experiência mais o gosto dessa expressão é que fazem o poeta. (“Não forces o poema a desprender-se do limbo. Não olhes no chão o poema que se perdeu.”)

É atrás dessas explicações que Drummond esconde sua grandeza verdadeira. Não é somente grande no verso. Na prosa, também, faz milagres. Tem maneira de dizer muito sua.

Ainda está convalescendo de uma gripe que o atacou e fala de vírus da gripe “esta porcariinha tão mais sútil que o micróbio, o ambíguo vírus que não é carne nem peixe, e que chega a cristalizar no organismo, como os inquilinos de apartamentos vendidos; o que se sabe de positivo a seu respeito é que é um refinado calhorda”. Viu alguém melhor definição?

Falando do Rio de hoje, diz: “Compadre: escrevo-lhe sob a lanterna de pilha, pois não há certeza de que amanhã possa fazê-lo à luz do sol. Haverá sol?

Chega a prodígios quando fala do pão de hoje, o “antipão”: “O pão de pau, contudo, ainda é pré-pão. Dele sairemos”.

[Revista Manchete (RJ), 15/6/1963. BN-Rio – Pesquisa: Cristina Silveira]

 

 

 

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