Documento de 1807 revela quem são os donos da Igreja Nossa Senhora do Rozário
Mauro Andrade Moura
Há um ano estive na Torre do Tombo para tentar encontrar alguns documentos a pedido da mestre em história Aninha Alvarenga. Porém, não conseguindo localizá-los, comentei com minha amiga lisboeta, a professora Margarida Castro, e ela me apresentou e me instou a procurar o Arquivo Histórico Ultramarino que fica em Lisboa, próximo de onde eu estava hospedado.
Indo lá, fui muito bem recebido pelos funcionários. Passei a pesquisar a lista de documentos constante em um índice de fácil leitura. Após algumas páginas, de súbito, encontrei um nome bem curioso e bem familiar.
Era o documento de criação da Irmandade Nossa Senhora do Rozário de Itabira, denominado como Compromisso, pois era o compromisso que os cidadãos assumiam com a Coroa em fazer a devida manutenção de algum bem público.
Veja bem, caro leitor, bateu-me o sentimento do inusitado, pois tentei localizar esse mesmo documento nos arquivos de Itabira e nem uma mínima alusão encontrei. E muito menos tinha noção de quando fora criada a Irmandade do Rosário, tendo sido mais interessante ainda perceber que ela teve autorização para ser criada no dia “05 de Maio de 1807”. Portanto, acaba de concluir 210 anos de criação dessa que é a primeira instituição civil da cidade de Itabira.
Como alguns fatos interessantes nunca acontecem sozinhos, eis que resolvem reformar a Igrejinha do Rosário e promovem a reabertura dela neste dia de hoje (17 de julho de 2017), com a devida comemoração dos 210 anos da instituição da Irmandade Nossa Senhora do Rosário.
A capela foi inicialmente concluída em 1734, tendo sido promovida uma reforma com ampliação em 1793. O mestre de obras foi o meu hexavô Francisco da Costa Lage, conforme inscrição das iniciais de seu nome em uma das colunas interna.
Sendo a Igrejinha do Rosário o único bem material de Itabira tombado pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan), a sua reabertura será agraciada com a presença do secretário estadual de Cultura, Ângelo Oswaldo de Araújo, que em sua atuação política e cultural sempre procurou fazer a manutenção de bens históricos materiais e imateriais brasileiros. Ângelo Oswaldo foi prefeito por várias gestões da antiga Vila Rica, hoje Ouro Preto.
Agora, à véspera da reinauguração, tomo conhecimento de um fato escraboso, que depõe contra a decência e à história da fundação da irmandade, que por pouco teria ocorrido se o pessoal do cerimonial da Prefeitura de Itabira tivesse atendido a exigência de uma bem posicionada assessora do prefeito que queria excluir da programação a participação das Marujadas da cidade desse momento festivo e histórico.
Se isso de fato ocorresse, seria como excluir os verdadeiros donos da igrejinha, ficando à margem desse evento tão essencial àquela comunidade cultural religiosa e que tanto participa das festividades de nossa cidade.
Com esse por pouco ocorrido inusitado posicionamento, que custa crer tenha realmente sido cogitado, embora não seja assim tão inusitado partindo de tão inculta assessora, deu a entender que ela queria uma festa de reinauguração só para os “brancos” em casa de “pretos”. Como se pode observar no documento que transcrevo abaixo denominado Compromisso, por mim localizado no ano passado em Lisboa, deixa bem claro para quem era o uso da Capela do Rosário.
Se de fato ocorresse essa preconceituosa discriminação contra os verdadeiros donos, configuraria um desrespeito e desfaçatez para com toda a comunidade itabirana – e não só contra os verdadeiros donos. Essa possível e por pouco ocorrida discriminação, se de fato ocorresse seria ainda mais grave por partir de uma descendente de Francisco da Costa Lage, assim como é também o seu marido. Estaria assim desfeito o sentido de comunidade com que o nosso antepassado promoveu as melhoras na antiga Capela do Rosário. Perderia sentido a própria reforma que a comunidade promoveu.
Como bem disse um primo, os “brancos” deixaram a igreja deles cair (a antiga Catedral). Agora, por favor, deixem os “pretos” cuidarem de sua igreja.
MINAS GERAIS
1807
COMPROMISSO
IRMANDADE NOSSA SENHORA DO ROSÁRIO
“Informem separadamente com o seu parecer o Governador Capitão General e o Reverendo Bispo Diocesano.
24 de Abril de 1807.”
Dizem os Homens pretos forros, e ainda cativos do Arraial da Itabira, Freguesia de Santa Bárbara – Minas Gerais, que conhecem e para conseguir a felicidade temporal e Eterna, não há proteção mais forte de que o amparo da mãe de Deus, se propuseram ao empenho de reformar a antiga Capela, que louvor naquele Arraial e que estava deixar a dos devotos brancos por ocasião e a nova que fizeram, para o que obtiveram a Licença junto do Governador do Bispado.
E como eles debaixo desta Licença tem quase concluído a reforma e a fervoram a sua devoção com zelo religioso, como fazem certo pela atestação do pároco respectivo. Recorrem a seu reverendo como Grão Mestre da Ordem de Cristo, e protetor da igreja e lhes faça a graça, confirmar a Licença e igualmente o Compromisso junto, mandando passar provisão na secretaria do estado.
05 de Maio de 1807
Alexandre Pereira Diniz
Compromisso que fizeram os Irmãos da Irmandade da Senhora do Rozário da Itabira, para ser aprovado pela Sua Majestade Real se assim for do seu Real agrado.
Nenhuma coisa é mais própria a quem tem a felicidade inestimável de professar a seu Jesus Cristo do que respeitar e amor a sua mãe senhora santíssima que estes obséquios sendo sinceros, tanto agradam do Senhor como em prêmio e recompensa dos mesmos Ele abençoa os devotos e os felicita sucessivamente até os faz em gozo da eterna glória.
Os Homens pretos do Arraial da Itabira, Freguesia de Santa Bárbara, Comarca do Sabará, obtiveram faculdade do bispado para reformar a Capela antiga de que se serviam os devotos brancos daquele Arraial, e como aquela reforma foi aprovada pela Sua Realeza, eles querem continuar nos cultos divinos e para que tudo se ordene com a devida formalidade, se propuseram a fazer o presente Compromisso para a sua Regência e pedem humildemente a Sua Real Graça da aprovação.
Poderão os devotos da senhora do Rozário ter seus livros em que sejam alistados os Irmãos que quiserem entrar na Irmandade, cujos livros serão rubricados pelo Ouvidor e Provedor da Comarca e neste mesmo livro se escreverão as eleições que anualmente fizerem e servirá também para se fazer assento da receita e despesa que se fizer. Pagará cada Irmão de sua entrada uma oitava, e se anual meia oitava. O Juiz pagará dezesseis oitavas e outro tanto a Juíza. O reverendo oito oitavas e Escrivão quatro oitavas. O Irmão de mesa duas oitavas e os outros da eleição uma oitava.
Poderão fazer suas festividades nos trajes do costume, como as suas novenas com assistência do pároco ou de pessoa de sua licença sem o menor prejuízo dos distintos paroquiais.
Poderão trazer um Irmão no peditório de esmolas pelos fieis para o fornecimento do donativo da capela, de cujo recebimento se fará assento no livro da receita para reconhecer a todo o tempo, que não dispendem mal as esmolas.
Poderão fazer os seus terços e procissões em que levem em andor a mãe de Deus, com assistência a seu capelão, sem que para isto haja precisão de licença do reverendo, uma vez que estas procissões em nada ofendem os distintos paroquiais, e só tem objeto de louvor a Deus.
Poderão sepultar os seus Irmãos na Capela e nas sepulturas dela sem prejuízo dos distintos paroquiais e fábrica da matriz.
É costume antigo introduzido em Minas nas Irmandades do Rozário, elegerem anualmente um Irmão a quem dão o mandato de Juiz coroado e elegem também a Juíza com o mesmo mandato, e esta eleição se faz assim para que este modo crescerem as esmolas. E para tanto querem faculdade para continuarem este uso, e seguindo com o costume dar o Irmão de Mesa dezesseis oitavas e a Irmã igual quantia.
Como os pretos ordinariamente não sabem ler, nem escrever, pedem facultar para elegerem um homem branco para ser Secretário e outro Escrivão.
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Ilustríssimo reverendo senhor
Dizem os devotos pretos residentes no Arraial, e aplicação de nossa senhora do Rozário da Itabira da freguesia de Santo Antonio do Ribeirão de Santa Bárbara , que eles suplicantes, para maior honra e glórias de nossa senhora, e salvação de suas almas, desde os princípios do referido Arraial, imitando ópio e louvável uso de todos os devotos pretos deste bispado, tem procurado para especial palavra e protetora sua sereníssima imperatriz do céu Maria santíssima senhora nossa com o soberano título do Rozário; dando em todo o tempo, quando as suas pequenas forças lhes permitem publicar demonstrações da sua humilde e fervorosa devoção, sem que até apresentarão a consolação de terem um lugar próprio e destinado, para nele solenizarem os festejos, a que os incita a sua filial ternura para com a augusta mãe de Deus, de onde possam de um modo particular acolher-se ao seu piedoso amparo, e fazer celebrar o sacrossanto sacrifício da missa, em honra da mesma senhora, e em benefício dos devotos falecidos e seus benfeitores. Dificultando-se aos suplicantes a confissão do seu ardente desejo, pela pequenez da capela pública, única, em que neste Arraial se celebram os divinos mistérios, e que não pode conter a quarta parte dos seus aplicados nem basta para metade dos que concorrem a ela, para a satisfação aos Domingos e festividades do ano; por cuja causa, não pequeno número do povo, especialmente de entre os devotos suplicantes se vê em muitas ocasiões privados da assistência dos divinos ofícios, não sem grande mágoa sua. E como no mesmo Arraial, no ano de 1793 se benzeu a nova capela, que em melhor lugar se erigiu, e hoje unicamente serve, ficando inteiramente deserta a antiga, em que se celebrava desde o ano de 1734 até o referido 93; e desta ainda, apesar da injúria dos tempos, existe em pé a capela mor, e cestos do alpendre com o seu adro bento, em que se sepultavam os corpos dos fieis: recorrem os suplicantes a Vossa Senhoria, para que atendendo às necessidades expostas, às humildes e fervorosas rogativas dos suplicantes em obséquio da rainha dos anjos, se digne conceder aos suplicantes faculdade e licença, para que sem ofensa dos direitos paroquiais, mas antes debaixo da inspeção de seu reverendo pároco, com assistência e direção de seus protetores brancos, possam reparar e reformar a dita capela antiga, compondo com melhor asseio e decência a capela mor, e ajuntando-lhe novo corpo, e feito tudo, possam colocar na mesma capela a sua imagem de nossa senhora do Rozário, e para celebrar nela o sacrossanto sacrifício da missa, tudo debaixo das providentes cláusulas, que a Vossa Senhoria parecem justas, prometendo e obrigando-se os suplicantes, com o socorro de Maria santíssima, a fazer o dito reparo, com a maior prontidão, e ofício, e ornarem-na com os paramentos, vasos necessários, para a celebração dos santos mistérios, na forma dos ritos da santa madre igreja.
Esperam os suplicantes na paternal bondade de Vossa Senhoria alcançar esta esmola, pela qual, fazendo a época de sua felicidade no ditoso governo de nossa senhora, rogarão eternamente a Deus nosso Senhor pelo aumento espiritual, e temporal de Vossa Senhoria.
portanto
Pedem a Vossa Senhoria seja servido
para maior glória de Deus, e louvor
de Maria santíssima, conceder aos
suplicantes a graça que imploram
E Real Majestade
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Ilustríssimo reverendo senhor
É vontade que os suplicantes há muitos anos desejam construir uma capela, e tem levado esmolas; igualmente é verdade existe ainda a capela mor, da capela antiga, e quanto tem um alpendre, em sua contra parte existem os ossos dos cadáveres sepultados, há muitos anos.
A capela mor curada que deixaram de novo, é pequena, não acomodava o povo, ainda aos Domingos, e digno e preceitos, quanto mais nas suas atividades. É justo que se faça a vontade no aumento da sua devoção, sem prejuízo da capela mor curada, e direitos paroquiais.
Vossa Senhoria mandará que possa ser servido.
Santa Bárbara, 05 de Outubro de 1799.
Antonio de Afonseca Gonçalves – vigário
obs.: fotografia do próprio Arquivo Histórico Ultramarino / Sala da Índia – divulgação
No decorrer do povoamento de Minas Gerais e outras províncias eram nomeados os santos que protegeriam os locais povoados ou a serem povoados. No caso específico de Itabira os mineradores, formados em sua maioria por negros, pardos e mulatos erigiram uma eremita em louvor a Nossa Senhora do Rosário, a santa que mais se identificavam. O santo servia como modelo de virtude e de atitudes de subordinação à Igreja, tanto para homens brancos quanto para os chamados “de cor”.
As irmandades negras, representada pela Nossa Senhora do Rosário e outros santos, representavam espaços de constituição de identidades, pois possibilitavam aos seus membros a afirmação de uma distinção sociocultural essencial para que o grupo existisse dentro da sociedade escravista.
Era comum a presença dos brancos nas Irmandades Negras. Alguns irmãos participavam por devoção e outros exerciam os cargos de escrivão e tesoureiro, já que para exercerem estas atividades os indivíduos deveriam saber ler, escrever e contar.
O Estado Português procurou exercer vigilância nas organizações religiosas, como as irmandades, por meio da fiscalização dos seus bens, dos seus livros internos e do controle das anuidades cobradas. As igrejas e as irmandades religiosas necessitavam que seus estatutos tivessem a concordância das autoridades eclesiásticas e civis para a sua legalização e reconhecimento. Os “compromissos” destas instituições eram enviados a Lisboa para receberem a aprovação.
Bacana é saber que nosso hexavô Francisco da Costa Lage foi o mestre de obra reponsável pela reforma e aumento da Capela do Rosário, fazendo, assim, a devida interação entre os brancos e negros.
A via deste documento de Itabira ficou desaparecida no tempo ou carcomida por caruncho ou água e somente agora, após 210 anos, veio a lume para ser melhor entendido esse processo das confrarias em nossa terra.
O nosso Arquivo Histórico carece de muita leitura para o melhor entendimento de nossa história.
Precisa de muita gente bem disposta em abrir todas aquelas caixar e a partir da leitura ter uma nova organização dos documentos no Arquivo Histórico.
Veja bem, prima Cecília, o inventário do nosso tetravô José Luís Rodrigues de Moura, que começa somente na página 50, estava arquivado como uma procuração. Quando vi não acreditei, pois nunca soube que uma mera procuração teria duzentas páginas.
DE UM PASSADO DISTANTE ACENAM NOS LEMBRANÇAS, E O FUTU RO NÃO NOS MOSTROU MELHORES ESPERANÇA.O MUNDO EM QUE VIVEMOS HOJE, É UM CAOS, DESDE ITABIRA DO MEU TEMPO 1940, ATÉ HOJE, PERDEMOS AS ESPERANÇAS..JÁ NÃO HA MAIS RESPEITO COM O POVO, EM NENHUM SEGMENTO DA SOCIEDADE.DAQUI PARA FRENTE SÓ ANTEVEMOS O ABISMO, COMO NA DIVINA COMÉDIA DE DANTE. OH1, ANGUSTIA, QUE DEVORA O MEU CORAÇÃO.NADA MAIS PODEMOS ESPERAR, É O FIM DE TUDO.
Infelizmente, Delmo, em pleno século XXI ainda temos de conviver com uma situação dessa de negação do outro, apresentando um racismo e uma xenofobia hedionda com os nossos irmãos.
. OH1 ANGUSTIA, QUE DEVORA O MEU CORAÇÃO.NADA MAIS PODEMOS ESPERAR, É O FIM DE TUDO.
Pois é Mauro, quem perde a memória perde tudo.
Quem não tem base (raízes) não se sustenta.
O seu trabalho deixa isso bem claro.
Sempre haverá um oportunista tentando se apossar dos bens dos distraídos.
É perfeita a afirmação de que “os brancos deixaram sua igreja cair e agora que a dos pretos se tornou monumento histórico querem se apossar dela”.
Tenha um ótimo debate dia 26 na mesa redonda sobre “Nossa Raízes”
Parabéns Carlinhos por esta conquista! É triste constatar a falta de sensibilidade dos governantes de Itabira que não percebem a importância de preservar os documentos e objetos que contam a história da cidade e de seu povo, ao longo do tempo. Precisamos nos mobilizar para reverter essa situação.
Sim, Prof. Maria das Graças, precisamos cuidar e muito dos nosso documentos no Arquivo Público Histórico de Itabira, além da leitura de tudo que se encontra lá.
Grato pela leitura e gentileza.
Muito bem, Luiz.
Estamos nós dois, embasados em pesquisas concisas, reescrevendo a história de nossa terra, nossa gente.
E tudo comprovadamente por documentos e não meras alusões como tanto gostam os oportunistas.
Gostava de contar com sua preciosa participação no debate do dia 26, compareça.
A todos os envolvidos nessa pesquisa e também aos que deixaram seus comentários aqui, o meu parabéns pela preocupação por resgatar a história de Itabira.
Grato pela leitura, Karina.