Desmontando as falácias pseudocientíficas da Constelação Familiar
Por Cesar Baima
Revista Questão de Ciência – A Comissão de Assuntos Sociais (CAS) do Senado Federal promoveu na quinta-feira, 24 de março, uma audiência pública para debater as práticas da Constelação Familiar (CF) e “cura sistêmica” e sua adoção como política pública, tanto no contexto do Sistema Único de Saúde (SUS) quanto no Judiciário.
O que se viu nas mais de seis horas da sessão, no entanto, não foi exatamente um debate, mas uma surra de lógica que desmontou as falácias pseudocientíficas apregoadas pelos adeptos da prática, levando alguns a jogar a toalha, num verdadeiro “nocaute intelectual”.
Convocada pelo senador Eduardo Girão (Podemos/CE), a audiência pública deveria ter sido um palco institucional para emprestar um verniz de legitimidade e credibilidade para a Constelação Familiar, estratégia que tem sido muito usada por grupos negacionistas e pseudocientíficos, nos últimos tempos, no Brasil.
Ação rápida do senador Sérgio Petecão (PSD/AC) dias antes do evento, no entanto, conseguiu que também fossem convidados críticos da prática e de seu uso oficial em serviços públicos, chancelado pelo Estado.
Entre eles, Paulo Almeida, diretor executivo do Instituto Questão de Ciência (IQC) – que publica esta Revista Questão de Ciência –, e o físico Marcelo Yamashita, diretor científico da mesma instituição, além de Tiago Tatton, diretor científico da Iniciativa Mindfulness no Brasil; Daniel Gontijo, psicólogo e membro fundador da Associação Brasileira de Psicologia Baseada em Evidências; Gabriela Bailas, física, pesquisadora e divulgadora científica; e Mateus Cavalcante de França, pesquisador e mestre em Sociologia do Direito.
Apelo emocional e falácias
A audiência pública abriu os trabalhos com apresentações sobre o que é e como (supostamente) funciona a Constelação Familiar, além de relatos emocionados sobre sua alegada eficácia no tratamento de distúrbios de comportamento e resolução de conflitos.
Apresentaram-se cinco adeptos e promotores da prática. Primeira a falar, Sophie Hellinger, viúva de seu idealizador, o ex-padre alemão Bert Hellinger (1925-2019), fez um breve resumo de seu desenvolvimento, premissas e mecanismos de ação, baseados na existência de um hipotético “campo morfogenético”, que uniria toda a natureza em uma “memória coletiva” e permitiria uma comunicação tipo “telepática” entre pessoas e organismos.
Esse campo foi conjecturado pelo biólogo e parapsicólogo britânico Rupert Sheldrake no início dos anos 1980, mas sua existência nunca foi demonstrada cientificamente. A hipótese é rejeitada pelo consenso da comunidade científica.
Apesar disso, segundo Sophie é por meio deste campo que os atores participantes de uma sessão de Constelação Familiar conseguiriam “emular perfeitamente” as pessoas, emoções e/ou coisas que representam nas sessões, em geral eventos traumáticos ou situações de conflito envolvendo o paciente “constelado”.
Com isso, se revelariam as duas “ordens do amor” daquele cenário – direito de pertencimento e hierarquia familiar –, trazendo à tona suas “dinâmicas ocultas” e provendo “paz e cura” aos envolvidos por agir “diretamente em suas almas”. Ela então deu como exemplo o caso de uma criança “rebelde”, numa história envolvendo gravidez adolescente, aborto e conflitos familiares de forte apelo emocional, com um final perfeitamente feliz, proporcionado pela sua prática.
Estratégia de convencimento típica de pseudociências que foi seguida pelo convidado seguinte, Renato Shaan Bertate, médico e presidente do Instituto Brasileiro de Constelação Familiar (IBCF), não sem antes agradecer Girão por “dar voz” à prática e sua alegada capacidade de prover um tratamento “sistêmico” para doenças e seus sintomas.
Também dando como exemplo um suposto caso real envolvendo uma criança, que não brincava nem comia e estava a “definhar”, Bertate contou que foram as revelações de “violação das leis naturais da vida” pela mãe durante uma sessão da prática, graças às “dinâmicas invisíveis que estão escondidas dentro do campo” morfogenético, que levaram à sua “cura” milagrosa no mesmo dia.
Já Inácio Junqueira, diretor da Faculdade Innovare – que oferece diversos cursos de formação em Constelação Familiar e outras disciplinas com uma pegada “sistêmica”, como Direito e Pedagogia –, usou seu caso pessoal como forma de apelo emocional, num depoimento comovente de como conhecer a Constelação Familiar propiciou um “reencontro” com seu pai falecido.
“Pensei: se funcionou para mim, por que não pode funcionar com os outros?”, argumentou, num exemplo de viés cognitivo de generalização indevida a partir de experiência pessoal, ao qual logo depois somou outro, conhecido como “efeito manada” ou “falácia da multidão”, quando afirmou que a Constelação Familiar “está no mundo inteiro”.
A seguir foi a vez da psicóloga Rose Militão – que contou já ter formado “dez turmas de consteladores” em seu Instituto Militão, no Ceará –, primeira dos defensores da prática a admitir na audiência pública, ainda que de maneira indireta, seu caráter pseudocientífico, ao reconhecer que ela não faz parte da “ciência clássica, que busca o conhecimento objetivo da realidade através do pensamento analítico”.
Segundo ela, a Constelação Familiar é fruto do “pensamento sistêmico, um novo domínio linguístico do conhecimento” ligado ao que chamou de “era da energia” que vivemos (qualquer semelhança com outras pseudociências da dita “Nova Era”, que surgiram e se expandiram a partir dos anos 1950/1960, não é mera coincidência).
E embora não tenha citado algum caso específico, Militão não deixou de usar a estratégia do apelo emocional usando números relativos a suicídios. “Será que a psicologia, a psiquiatria ou a medicina sozinhas dão conta de tanto adoecimento? Será que damos conta de sermos nós os brasileiros os campeões de ansiedade do planeta Terra? Será que damos conta de que a cada quatro segundos uma pessoa se suicida no mundo? [Na verdade, segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS), o mundo registra aproximadamente 700 mil suicídios anuais, ou cerca de um a cada 45 segundos]”, declarou.
Histórias tristes envolvendo crianças reapareceram na fala da jornalista e “terapeuta” Daniela Migliari. Segundo ela, após escrever um texto conjugando sua “visão espiritualista” da vida e a visão das constelações familiares, foi procurada por uma psicóloga que atendia uma criança de 9 anos que havia testemunhado o assassinato da mãe pelo próprio pai.
Ainda de acordo com Daniela, ela aconselhou a psicóloga a usar a “ordem de pertencimento” da Constelação Familiar e se abster de julgar o pai assassino, numa atitude que indiretamente teria influenciado na recuperação da criança que a psicóloga atendia.
Fechando o primeiro grupo de apresentações de adeptos da Constelação Familiar, Sami Storch, juiz do Tribunal de Justiça da Bahia que tem adotado a prática na sua magistratura, também usou o exemplo pessoal como mostra de eficácia e validade. Segundo disse, guiado por Bertate ele “melhorou muito o relacionamento com meus pais e a minha vida. Fiquei maravilhado”.
Assim, ele resolveu levar a Constelação Familiar para sua prática jurídica, inicialmente como advogado e depois como juiz, em conflitos envolvendo inventários ou outras disputas familiares. E, como não poderia deixar de ser, citando uma história de apelo emocional envolvendo uma criança. No caso, uma disputa judicial de mãe e avó sobre a guarda de uma menina, em que o interrogatório da criança foi no formato de Constelação Familiar.
Aula de ciência
Alegações que, no entanto, não resistiram ao mínimo escrutínio lógico, com uma aula de ciência dos críticos da Constelação Familiar convidados para a audiência púbica.
Em sua participação inicial, o diretor científico do IQC, Marcelo Yamashita, destacou o texto do próprio requerimento inicial de Girão para a realização da audiência pública, apresentado em fevereiro de 2020, que em sua justificativa afirma que a prática “impressiona por sua ação no nível anímico”, que “ocorre porque forma-se um campo quântico no qual a telepatia atua como resultado da interconexão entre os níveis energéticos das mentes humanas”.
“Caso você não tenha entendido direito o que está escrito nesta justificativa e ficou com a sensação de que a culpa é sua por desconhecer conceitos complexos, então parte da missão do texto já foi cumprida”, disse.
“Ao misturar de maneira incorreta e imprecisa diversos termos da física, o texto se fantasia de ciência, agregando valor mesmo que eles não façam sentido. O trecho que consta da justificativa é um caso típico de pseudociência. É um texto que se fantasia de ciência para tentar justificar algo”, explicou, para depois resumir a real natureza da mecânica quântica e suas aplicações.
Yamashita também frisou o caráter espúrio dos relatos de casos apresentados pelos defensores da prática na audiência pública como provas de eficácia, ressaltando que tal comprovação só é obtida mediante investigação cuidadosa por meio de experimentos rigorosos com métodos adequados.
“Relatos individuais de casos, como feitos aqui antes de mim, não têm nenhum valor científico”, lembrou. “Você pode dizer ‘isso funciona para mim’, mas isto não tem valor de ciência. Fatos científicos não são definidos em depoimentos. Não se define o formato da Terra com um plebiscito”.
Quanto à falta de evidências do tal “campo morfogenético” que embasaria a “telepatia” por trás Constelação Familiar, Yamashita citou a analogia conhecida como “ciência da fada do dente”, que consiste em estudar um fenômeno antes mesmo de saber se ele existe de fato.
Assim, na “ciência da fada do dente” se pode fazer diversos experimentos quanto ao processo, como se a fada deixa mais dinheiro debaixo do travesseiro para o primeiro ou o último dente, se embrulhar o dente em papel ou plástico influencia na quantia deixada pele fada etc. “Só tem um detalhe: fada do dente não existe, assim como não existem experimentos bem feitos demonstrando a existência da telepatia”, explicou.
Falando a seguir, o psicólogo Tiago Tatton, diretor científico da Iniciativa Mindfulness no Brasil, criticou a adoção como política pública de uma prática que seus próprios adeptos admitiram não ter fundamentação na ciência, e reforçou o argumento de Yamashita de que relatos de casos e experiências pessoais não são suficientes para sua validação.
“Admito que estou assombrado com o que ouvi até agora. Soa um pouco estranho para mim, para algo que se pretende política pública em um Estado laico”, disse.
“Se as constelações familiares não fazem parte da ciência clássica, seja lá o que isso signifique, então não deveriam estar na vida pública, com dinheiro público. Deveriam estar tão somente em lugares privados, clínicas, instituições. Políticas públicas ao redor de todo mundo não podem se furtar de pesquisas experimentais”, afirmou.
“Não se faz política pública também através de testemunhos emocionados ou apelo à emoção. Isso é uma falácia conhecida, que em geral demonstra falta de argumentação. Não se faz políticas públicas se esquivando e criando novos conceitos de ciência, para então encaixar opiniões pessoais que violam a própria filosofia da ciência. Entendo que opiniões são importantes, mas ciência não se faz com opiniões, nem de cem, nem de mil pessoas. Fazer isso beira o irresponsável, o antiético e até mesmo o perigoso”.
Tatton então elencou os passos necessários para mostrar que uma prática é segura e eficaz, para quem funciona e quais suas contraindicações. Caminho ainda não trilhado pela Constelação Familiar, citando revisão sistemática de mais de 4 mil estudos sobre ela publicada no ano passado que encontrou apenas nove capazes de afirmar que a prática poderia trazer algum tipo de benefício, e também riscos de efeitos negativos. E mesmo estes nove estudos não tinham metodologias adequadas, como grupos de controle.
“Este estudo de revisão nos aponta que seguimos sem realmente saber se Constelações Familiares são seguras, eficazes ou eficientes, mas no Brasil isso já é política pública”, contou. “Em verdade, sob este ângulo, sob qualquer ângulo, sua presença no ambiente público é perigosa e injustificada”.
E apesar de mesmo diante disso muitos adeptos da Constelação Familiar defenderem que ainda faltam estudos sobre a prática, Tatton lembrou que isso é uma falácia comum, chamada “falácia da nota promissória” (também conhecida como “fuga para o futuro”), e uma “postura antiética” diante do fato dela já estar em uso “a pleno vapor” na saúde e no Judiciário brasileiros.
“Assombra também que além da não evidência científica, teórica e experimental, aumenta o número de relatos de pessoas que se sentiram invadidas, invalidadas e violadas pelas Constelações Familiares, particularmente mulheres”, lamentou.
“Mas é claro que algo que adentra a vida pública avançando casas para além da ciência pode e irá trazer toda sorte de efeitos. Não se enganem. Em lugar algum do mundo esta prática faz efetivamente parte das políticas públicas de algum país”.
O psicólogo Daniel Gontijo, um dos fundadores da Associação Brasileira de Psicologia Baseada em Evidências, por sua vez, focou sua apresentação em demonstrar como a Constelação Familiar cumpre todos critérios para identificação de uma pseudociência – abordar um tema de domínio de alguma ciência (no caso da Constelação Familiar, a saúde mental, domínio da psicologia e da psiquiatria); carência de confiabilidade, com métodos falhos e incapazes de apresentar evidências de qualidade que corroborem suas afirmações (na CF, do “campo morfogenético” à “telepatia” que se baseia, terminando na “alma” onde age).
Criticou ainda a atitude de seus proponentes e adeptos em insistir em defender que sua prática é confiável, funciona e é corroborada por evidências, apesar da ausência dessas mesmas evidências, Citou ainda o problema de sua adoção como política pública na saúde e no Judiciário, como já ocorre com reiki, florais de Bach e quiropraxia no âmbito da Política Nacional de Práticas Integrativas e Complementares (PNPIC) no SUS.
“É importante discutir isso porque as pseudociências, por não terem confiabilidade, acabam iludindo a população, passando a impressão de que aquilo ali é verdadeiro e funciona, e o que pode ser mais complicado, que aquilo ‘cura’”, alertou.
“Isso desestimula a pesquisa, porque muitas vezes chegam com respostas prontas ou com ideias que não são falseáveis, isto é, testáveis ou passíveis de testes pela ciência, e muitos de seus proponentes também não estão abertos a fazer esses testes. As pseudociências também podem levar as pessoas a abandonar práticas e tratamentos que de fato funcionam, e serem diretamente nocivas, já que não foram testadas para sua confiabilidade e segurança, trazendo riscos à população”.
“Os métodos e influências teóricas da Constelação Familiar são pouco confiáveis do ponto de vista científico”, prosseguiu. “Exemplificando com a perspectiva do Bert Hellinger, ele parte de bases teóricas que já são cientificamente problemáticas, como a programação neurolinguística (PNL), análise transacional e a terapia primal.”
“São disciplinas que não têm credibilidade científica, evidências robustas de que funcionam. Além disso, usavam suas intuições em insights para poder elaborar ou especular como as coisas funcionam, o que não é um método confiável na ciência. Alega ter feito muitas descobertas, mas em seus livros não descreve como chegou a elas, ou quando menciona, não faz referência a nenhum estudo científico”.
Por fim, Gontijo lista as muitas alegações extraordinárias da Constelação Familiar, como de que os representantes sentiriam exatamente o mesmo que os familiares que representam, mesmo estando estes ausentes da sessão; que as soluções encontradas nestas sessões afetariam misteriosamente a família; o caráter etéreo de suas ordens do amor e da precedência (hierarquia); que mortes, abortos e exclusões teriam impacto nas gerações posteriores; e doenças graves como câncer seriam decorrência de desordens “sistêmicas”.
“Fora o campo quântico morfogenético, que é mais como uma lenda urbana, telepatia, interconexão energética entre membros (da família)”, acrescentou, ressaltando que mesmo assim o próprio Hellinger insistia em apresentar a CF como uma ciência, cumprindo mais um dos critérios de identificação de uma pseudociência.
“Ele escreveu em um livro que a Hellinger Ciência é uma ciência do espírito”, numa forma de tentar imprimir alguma credibilidade científica ao que são apenas alegações de autoridade.
Alegações, porém, até “modestas” diante do nível das afirmações com que a CF foi apresentada na portaria do Ministério da Saúde, quando da sua inclusão no PNPIC, em 21 de março de 2018:
“A constelação familiar é uma abordagem capaz de mostrar com simplicidade, profundidade e praticidade onde está a raiz, a origem, de um distúrbio de relacionamento, psicológico, psiquiátrico, financeiro e físico, levando o indivíduo a um outro nível de consciência em relação ao problema e mostrando uma solução prática e amorosa de pertencimento, respeito e equilíbrio”.
“Mas, como a gente que está na ciência aprende lá atrás, cedo, alegações extraordinárias requerem evidências extraordinárias”, concluiu Gontijo. “Seria então uma atitude ética oferecer uma prática tão controversa, uma pseudociência como foi demonstrado aqui, à população em órgãos como o SUS e o Judiciário?”
Riscos à população
Preocupação com o bem-estar da população, e em especial das mulheres submetidas à CF em processos no Judiciário, foi expressada pela física e divulgadora científica Gabriela Bailas na sua fala.
Depois de também questionar o apelo à emoção, evidências anedóticas e seu uso como argumentos de validação da prática, Bailas chamou a atenção para denúncias de mulheres vítimas de assédios e outras violências incomodadas por terem que reviver traumas em processos no Judiciário em que foram constrangidas a participar de sessões de Constelação Familiar com seus agressores. Há um debate no Conselho Nacional de Justiça (CNJ) sobre esta chamada “revitimização”.
“Uma palavra muito usada na constelação e inclusive vimos muito nas apresentações anteriores foi honrar”, destacou. “Mas será que eu tenho que honrar agressores? Será que eu tenho que honrar estupradores? São perguntas que ficam para todos aqui”.
A preocupação com a disseminação da CF no Judiciário brasileiro também foi tema da apresentação de Mateus Cavalcante de França, pesquisador e mestre em Sociologia do Direito.
França lembrou que a relação entre Judiciário e cidadão é naturalmente desigual, com o primeiro carregando uma autoridade que pode transformar um convite ou sugestão do juiz, de usar a prática como uma ferramenta de resolução de conflitos, conciliação ou projetos de ressocialização, em uma ordem, aos ouvidos das partes ou vítimas.
Visão que afeta até mesmo o juiz, como caso de mulher que foi hostilizada e constrangida por uma magistrada por se recusar a participar de uma sessão de Constelação Familiar em seu tribunal, também citado por Bailas.
“Se uma pessoa recebe uma proposta, um convite de um juiz, ela não está se sentindo exatamente na possibilidade de recusar”, disse. “O que é supostamente um convite nem sempre é percebido como um convite dentro do direito”.
Fechando as participações dos críticos da Constelação Familiar na audiência pública, o diretor executivo do IQC, Paulo Almeida, focou no despropósito da adoção da Constelação Familiar como política pública no Brasil, num fenômeno que replica a busca de outras pseudociências, como a homeopatia, ou charlatanismos descarados, como o caso da fosfoetanolamina, a apelidada “pílula do câncer”, de se aproveitarem a excessiva permeabilidade institucional do país para driblar o debate técnico-científico e conseguirem algum tipo de validação.
“Assim, muita picaretagem está sendo inserida no ordenamento jurídico e institucional no Brasil”, lamentou, para depois também listar como exemplos disso outras práticas inseridas no Plano Nacional de Práticas Integrativas e Complementares (PNPIC) no SUS.
Neste sentido, Almeida destacou não ser intenção do IQC ou de qualquer crítico participante da audiência pública o banimento da Constelação Familiar ou das PICs do país, mas sim reverter ou impedir sua adoção como políticas públicas, sustentadas pelo contribuinte.
Como ilustração do argumento, ele comparou o uso da Constelação Familiar como ferramenta de conciliação no Judiciário a admitir o uso da astrologia para o mesmo fim.
“Se isso parece absurdo, é porque é absurdo”, resumiu. “É preciso que haja um escrutínio técnico-científico anterior para que uma prática seja adotada como política pública. Do contrário, é ir contra o princípio constitucional da eficiência da administração pública”.
Nocaute intelectual
A audiência pública encaminhou-se para um nocaute intelectual nas pretensões da CF, apesar dos esforços do senador Girão.
Presidindo a sessão, ele, a cada intervalo, procurava advogar em favor da Constelação Familiar, recorrendo a seguidas falácias e táticas de desinformação que já haviam chamado a atenção durante sua atuação da CPI da Pandemia da COVID-19 no mesmo Senado Federal, como o apelo à falsa controvérsia: isto é, a alegação de que não haveria consenso entre os cientistas sobre a prática e suas premissas – há consenso, e é de que a CF é uma pseudociência –, falsa equivalência, argumentos de autoridade e outras.
Chamados de última hora para dar à prática uma “vitória” ao menos no número de apoiadores depondo na audiência pública, as apresentações dos dois últimos de seus defensores foram verdadeiros “tiros no pé”.
Primeiro deles a falar, o médico Décio Fábio de Oliveira Júnior admitiu não ter tido tempo de se preparar para o debate e disse “concordar com 80%” das ressalvas feitas pelos participantes contrários à adoção da Constelação Familiar como política pública, apesar de ter reclamado dos relatos que fizeram de possíveis efeitos danosos da prática, que corretamente classificou como “evidências anedóticas” só para rebater usando também uma evidência anedótica: não ter observado nenhum prejuízo no seus anos atuando como constelador.
Ele também expressou seu desconforto com a rapidez da disseminação da CF no Sistema Judiciário brasileiro, e questionou a ausência de referência a diferentes conceitos da prática de cura sistêmica pelos defensores da CF que se apresentaram na audiência antes dele, “principalmente ao que Hellinger se refere como ‘postura básica’”.
Uma confissão involuntária de que, se há alguma falta de consenso, é na pseudociência, não na ciência, para então terminar com um relato do desenvolvimento do método científico a partir das ideias do filósofo e matemático francês René Descartes (1596-1650) e histórias de sucesso de sua aplicação, numa defesa do uso de evidências na formulação de políticas públicas.
Então foi a vez do biomédico Mateus Santos, que se apresentou como um “praticante da medicina baseada em evidências” por sua especialização do uso de máquinas de circulação extracorpórea, usadas, por exemplo, em cirurgias de transplante de coração.
Mas Santos também é praticante da Constelação Familiar desde 2005 e, acuado no córner dos argumentos, teve que recorrer a malabarismos lógicos e falácias absolutas para tentar manter a postura – e autoridade – de “cientista”.
Assim, primeiro o biomédico tentou colocar em dúvida a validade do método científico como forma de investigar a realidade, contando já ter visto “pacientes com a mesma equipe, com as mesmas medicações, com a mesma dedicação” terem “destinos diferentes”.
Por óbvio, claro, pois antes de tudo eram pacientes diferentes. Talvez tendo se apercebido do tamanho de sua falácia, voltou a mencionar sua posição como profissional altamente especializado na área de saúde, partindo para o ataque com uma crítica nas pesquisas nela, “baseadas em números”, mas que “perdem de vista as pessoas”.
Então, após se esquivar em histórias sobre a existência de diferentes formas de conhecimento e suas potencialidades, seu encantamento com a Constelação Familiar e o fato de ter conhecido pessoalmente Hellinger – e negar que o que o ex-padre alemão escreveu em seus livros são palavras dele –, Santos capitula e afirma “não se incomodar” com o fato de ela ser uma pseudociência tendo como (não) argumento a ampla e antiga aceitação pela sociedade de outra pseudociência, a psicanálise.
Mas não sem antes tentar o cantado golpe da “falácia da nota promissória”, que tentou reforçar com a má interpretação da palavra “teoria” muito comum nos discursos negacionistas e pseudocientíficos, comparando com “campos morfogenéticos” que baseiam a CF às teorias do Big Bang e da Evolução.
“Vamos investigar, mas que o fenômeno é real, ele é, porque, se não, a constelação familiar não seria conhecida”, disse, em uma versão da “falácia da nota promissória” que inclui a inversão do ônus da prova. “Me coloco à disposição para que a gente possa juntos buscar a verdade. É muito novo isso, vamos juntos conhecer”.
Reabrindo a contagem
Presidindo um debate que achava que não aconteceria, já que disse que acreditava que não existiam críticos da Constelação Familiar e sua adoção como política pública no Brasil, Girão ainda tentou reabrir a contagem com uma nova rodada de apresentações.
Mas, dado o adiantado da hora (então, a audiência pública já contava cerca de quatro horas, e passavam das 14h30 da tarde de quinta-feira, sem intervalo para almoço), a maioria dos defensores da CF já havia se retirado.
Entre os que restaram, Militão voltou a contrapor o pensamento científico, analítico da ciência ao seu “pensamento sistêmico”, chegando a dizer que a “saúde é subjetiva” e as doenças como “desequilíbrios”, basicamente ignorando séculos de conhecimento sobre a existência de microrganismos, como bactérias ou o vírus da COVID-19.
Já Daniela recorreu à conhecida “falácia de Galileu”, que basicamente equipara Hellinger, e indiretamente seus seguidores, a gênios incompreendidos, e outro golpe comum, a da definição de dicionário da palavra “ciência” como forma de conhecimento para tentar encaixar a Constelação Familiar como tal.
A jornalista e terapeuta termina acusando os críticos na audiência de quererem o “extermínio” da CF, apesar das ressalvas de todos que a objeção era apenas à sua adoção e de outras pseudociências como políticas públicas chanceladas e bancadas pelo Estado, e lamentando a frustração de que esperava que a audiência pública fosse um momento de apresentar sua prática sem contestação, como originalmente seria.
O juiz Sami Storch, por sua vez, frisou que como magistrado sempre agiu com imparcialidade e também puxou o falso argumento de que os debatedores contrários estariam defendendo o “extermínio” da Constelação Familiar. No seu lugar, e a exemplo de Santos, propôs a investigação conjunta da prática e as vantagens que poderia trazer para o Sistema Judiciário, novamente numa inversão do ônus da prova.
De volta, Yamashita mais uma vez destacou a falta de embasamento teórico e científico do ponto de vista da psicologia para que a CF seja adotada como política pública e voltou a frisar que apenas esta é sua objeção naquela audiência, já que se trata de uma pseudociência que traz consigo o perigo do abandono de terapias comprovadamente eficazes, a exemplo de outras pseudociências, como a homeopatia.
O diretor científico do IQC também atentou para a má interpretação da palavra “teoria” por Santos, esclarecendo que à diferença do que o biomédico tentou mostrar, Big Bang e Evolução têm efeitos e fazem previsões observáveis e comprováveis, e as alegações da Constelação Familiar, como a existência do campo morfogenético, não.
Caminhando para o fim do debate, Tatton, Gontijo, Bailas e França também chamaram a atenção para as falhas e falácias nas argumentações dos defensores da prática. Tatton, por exemplo, a falácia da nota provisória; Gontijo, a recusa em buscar explicações alternativas e não fantasiosas a seus percebidos efeitos; e França, a diferença entre pesquisas quantitativas e qualitativas.
Coube então a Paulo Almeida fechar as participações dos críticos da CF no debate. O diretor executivo do IQC aproveitou então para voltar a destacar que a audiência pública teria ocorrido sem a presença deles, não fosse a ação do senador Sérgio Petecão, e nesse caso teria servido como um veículo de propaganda e legitimação da prática.
Ele também apontou as múltiplas falhas nos argumentos de seus defensores, o descabimento da adoção de pseudociências como políticas públicas e propôs novo debate mais amplo, em que todos revelariam seus conflitos de interesse, como os ganhos advindos do ensino e da prática da Constelação Familiar.
O biomédico Mateus Santos e outra representante dos praticantes de Constelação Familiar, Germana Carsten, ainda fizeram outras breves apresentações antes do fim da audiência pública, com o primeiro também recorrendo à falácia de Galileu.
Encerrando a sessão de mais de seis horas (e justificando este “textão”), restou a Girão reeditar o argumento da falsa controvérsia, prometendo novas discussões sobre o assunto no futuro. Caso venham a ocorrer, este repórter se reserva o direito de pedir adicional de insalubridade para a cobertura…
Cesar Baima é jornalista e editor-assistente da Revista Questão de Ciência
Pedir adicional de insalubridade é sem dúvida seu direito. Mais uma invenção para tirar dinheiro dos desesperados, a famosa bala de prata que põe fim ao vampiro.