Delírio coletivo levou a 51 milhões de votos em Bolsonaro
Ato em apoio ao presidente Jair Bolsonaro durante as comemorações do bicentenário da Independência, na avenida Paulista, em São Paulo
Foto: - Bruno Santos/Folhapress
Poderosa máquina de desinformação na internet criou cenário de desprezo pela realidade
[RESUMO] Professor propõe o conceito de dissonância cognitiva coletiva, espécie de alucinação geral que despreza fatos e argumentos, para explicar os 51 milhões de votos em Bolsonaro nesta eleição, a despeito de incontáveis mentiras, falas preconceituosas e crimes de responsabilidade que compõem seu caótico governo. Tal cenário é resultado do que o autor chama de midiosfera extremista, poderosa engrenagem de fake news e teorias conspiratórias.
Folha de S. Paulo – Um espectro ronda o mundo —o espectro da dissonância cognitiva coletiva. Espectro materializado em um movimento transnacional, favorecido pela onipresença do universo digital e das redes sociais no dia a dia planetário.
Crimes e irresponsabilidades
Nas (não) comemorações do 7 de Setembro, Jair Messias Bolsonaro se superou: presenciamos um festival de mentiras, dados falsos, declarações preconceituosas e crimes de responsabilidade, em uma rapidez surpreendente mesmo para os padrões hiperbólicos do mito. Os quatro eternos anos da Presidência resumidos em 24 intermináveis horas. Síntese, aliás, desafiadora.
Ultrapassamos 680 mil mortes em função da pandemia de Covid, número que poderia ser muito menor se o governo não tivesse flertado com a criminosa noção de imunidade de rebanho por contágio direto.
Assistimos, consternados, ao retorno do Brasil ao mapa da fome. Indefesos, somos assaltados pelo dragão da maldade da inflação toda vez que vamos ao supermercado para comprar uma quantidade sempre menor de produtos.
Muito pouco surpresos, soubemos das “comissões” que seriam cobradas por intermediários improváveis de vacinas que não existiam no balcão de negócios escusos que se tentou montar no Ministério da Saúde, e que só não prosperou pelas denúncias da CPI.
Nada pasmos, fomos informados de que, agora sim com êxito, converteu-se o Ministério da Educação em um armazém de secos e molhados, cujas improvisadas gôndolas traficavam barras de ouro e bíblias superfaturadas, além de profanadas com fotografias do pastor ex-ministro e de dois pastores velozes e furiosos, indicados para tenebrosas transações pelo Messias Bolsonaro, responsável pelo apocalipse da educação pública.
Pela primeira vez na história da Nova República, um presidente em exercício acrescentou à sua já rica ficha corrida todos os crimes eleitorais possíveis e imagináveis, usando com o despudor que melhor define o personagem recursos da máquina pública em proveito próprio, em uma rachadinha eleitoral de proporções épicas.
A enumeração do caos da administração do governo enquanto arquitetura da destruição poderia seguir indefinidamente. Contudo, Bolsonaro mantém uma base sólida do eleitorado, tendo chegado a 51 milhões de votos no primeiro turno.
(Mas devagar com o andor que Bolsonaro é feito de barro. Em uma inegável derrota pessoal, também pela primeira vez na história da Nova República, o presidente ficou em segundo lugar no primeiro turno das eleições. Um fracasso que ameaça reduzir o mito à impotência política.)
Passemos a palavra à Esfinge: “Qual o ser que, em todas as idades, troca verdades por óbvias mentiras e, confrontado com a falsidade, desafia o mais elementar princípio de realidade? Em que teia foi enredado?”.
Vamos passo a passo —o caminho é longo e árduo.
Dissonância cognitiva coletiva
O bolsonarismo, como fenômeno de massa, enraizado em diversos setores da sociedade, como a eleição comprovou, é a expressão brasileira de uma onda transnacional que levou a extrema direita ao poder por meio do voto, ou seja, conquistando corações e mentes. É preciso reconhecê-lo para clarear o horizonte plúmbeo que nos ameaça.
Trata-se de constelação inédita, favorecida pela onipresença das redes sociais. A fim de enfrentar esse desafio, proponho dois conceitos: dissonância cognitiva coletiva e midiosfera extremista.
Dissonância cognitiva é um desconforto subjetivo causado pela consciência da distância entre crenças e comportamentos. Em 1957, o psicólogo social norte-americano Leon Festinger lançou o livro “Uma Teoria da Dissonância Cognitiva”, sistematizando uma experiência que viveu como pesquisador, relatada em uma obra anterior, “Quando a Profecia Falha” (1956).
Festinger tomou como base de sua teoria a Fraternidade dos 7 Raios, desenvolvida ao redor de Dorothy Martin, uma moradora de Chicago que dizia receber mensagens de seres extraterrestres de um planeta distante, Clarion.
O conteúdo era perturbador: em 21 de dezembro de 1954, um dilúvio de proporções bíblicas destruiria boa parte da Terra. Contudo, seus seguidores sentiam-se confiantes, pois no dia D, na hora H, um disco voador pousaria no quintal da senhora Martin e resgataria os que atendessem a seu chamado.
O dia azado chegou, mas também duas decepções amargas se apresentaram, embora a segunda tenha representado um alívio. O disco voador não apareceu, mas pelo menos o dilúvio também faltou ao encontro marcado.
Leon Festinger e alguns colegas conseguiram infiltrar-se na seita. Puderam, assim, responder à pergunta-chave: o que ocorre na dinâmica de um grupo de fanáticos quando a profecia falha?
Ora, como reagiram os bolsonaristas após o 7 de Setembro de 2021? Vale dizer, quando, após incitar sua base a violentas ações golpistas, o mito recuou e, dócil, demasiadamente dócil, assinou uma cartinha contrita que, emasculação máxima, foi redigida por Michel Temer. E, ao que consta, em ligação para o ministro do STF Alexandre de Moraes, não se esqueceu das lágrimas, muitas e nada caladas.
Festinger e seus colegas fizeram duas descobertas de grande relevância.
De um lado, os adeptos da Fraternidade não abandonaram suas convicções. Pelo contrário, racionalizaram o fracasso da profecia dobrando a aposta: o anúncio do dilúvio teria prevenido sua ocorrência! A energia mental empregada na advertência da catástrofe foi razão suficiente para alterar os designíos dos habitantes de Clarion.
De outro, a última frase do livro inaugura uma radicalidade para a qual o próprio Festinger não estava preparado, mas que explodiu no século 21: “Eventos conspiraram para oferecer aos membros da seita uma oportunidade verdadeiramente magnífica para que crescessem em números. Tivessem sido mais efetivos, a fracassada profecia poderia ter sido o começo, não o fim”.
A publicidade vertiginosa, gerada pelo espetacular malogro da predição, permitiria converter o insucesso em fator de crescimento, em uma fase inédita de expansão da fraternidade, em lugar de seu desaparecimento. Soa familiar?
A suprema humilhação de Bolsonaro diante do ministro Alexandre de Moraes não esmoreceu o ânimo de seus seguidores para novas escaladas golpistas, com base em ridículas teorias conspiratórias a respeito das urnas eletrônicas. Como explicar esse comportamento de povo marcado, ê, povo feliz?
Midiosfera extremista
A abertura de “Quando a Profecia Falha” ata as pontas do argumento que fez Festinger hesitar: “Um homem convicto é resistente à mudança. Discorde dele, e ele se afastará. Mostre fatos e estatísticas, e suas fontes serão questionadas. Recorra à lógica, e ele não entenderá sua perspectiva”.
Retrato acabado do tipo ideal do bolsonarista? Acrescente a essa certeza paranoica o caráter coletivo de um poderoso circuito comunicativo e o caldo entorna, ou seja, o caos cognitivo torna-se realidade alternativa. Como lidar com o Brasil paralelo de dezenas de milhões de pessoas?
Festinger escreveu “Uma Teoria da Dissonância Cognitiva” para responder à perplexidade causada pela história interna da fraternidade. A petição de princípio é inequívoca: “A presença de dissonância gera pressões para reduzir a dissonância. […] A presença de dissonância estimula ações para sua redução; de igual modo, a presença de fome leva a ações para reduzir a fome”.
Os itálicos são do autor, assim como o estilo tautológico. A reiteração angustiada retorna no último parágrafo do ensaio: “É também evidentemente necessário ser capaz de especificar quais são as mudanças específicas na cognição, ou quais os novos elementos cognitivos, que reduziriam a magnitude da dissonância assim determinada”. A redundância, deselegante, e a expressão, convoluta, sugerem o desconforto do autor.
Na verdade, o desconforto tornou-se parte do mundo contemporâneo na figura do que sugiro chamar dissonância cognitiva coletiva, circunstância tornada possível pelo contágio favorecido pela mais poderosa máquina de desinformação da história da humanidade, a midiosfera extremista.
Trata-se de uma poderosa máquina de produção de narrativas polarizadoras, com base em fake news e teorias conspiratórias. Combustível da retórica do ódio, compõe-se de cinco elementos, quatro internos e um externo. Complexo sistema integrado que gera conteúdo radicalizador ininterruptamente.
Nele se encontram as malfadadas correntes de WhatsApp, as indefectíveis redes sociais, uma rede altamente tóxica de canais de YouTube e, por fim, aplicativos como TV Bolsonaro e Mano.
No interior dessa teia, circula sem cessar produção audiovisual que difunde o sistema de crenças bolsolavista, com exortação incessante a golpes de Estado e à eliminação física de adversários. Ainda mais importante: os membros da seita firmaram um pacto que atemorizaria o próprio Mefistófeles —ignorar toda informação que não provenha da midiosfera extremista.
O elemento externo é muito grave: a “mídia amiga” dos donos do poder, que, ao dar voz para fantasias as mais lunáticas, desestabiliza seriamente a democracia e estimula, no limite do crime, o projeto autoritário do bolsonarismo.
Na iminência do segundo turno das eleições, a midiosfera extremista transformou-se em uma usina sórdida de desinformação e seus artífices incorrem nos mais variados tipos criminais como se não houvesse amanhã. Todavia, se eles pararem para pensar, na verdade, descobrirão que o amanhã sempre vem.
O propósito da midiosfera extremista é a criação de dissonância cognitiva coletiva: temível máquina eleitoral pela transferência para a política da alta intensidade de engajamento das redes sociais. A fim de despolitizar a pólis, esteio de seu projeto político autoritário, o bolsolavismo tornou o Brasil um laboratório mundial de criação metódica de realidade paralela.
O PT misturou romance com política, enquanto o inominável propagava o ódio para um povo cruel. Deu no que deu e vai perder as eleições. A população brasileira é apegafa ao ódio, ao crime…