De “Os miseráveis”, de Victor Hugo, às crianças de hoje: o amor pelas árvores
Flamboyan dos Eisemberg, no bairro Pará, foi preservado no início da década de 1980 pela ação de moradores que impediu o seu corte pela Prefeitura para alargar a rua. Itabira continua sem dispor de hortos florestais ocupando áreas verdes
Foto: Eduardo Cruz
Nos versos de Khalil Gibran ele nos diz o seguinte “Árvores são poemas que a terra escreve para o céu. Nós as derrubamos e as transformamos em papel para registrar todo o nosso vazio.”
Por Rosângela Trajano*
EcoDebate – Sim, e que lindos poemas a terra escreve para o céu e que nós poderíamos recitá-los no poente, embaixo de um arco-íris ou num bosque próximo da gente. Mas, preferimos derrubá-las para escrever nelas o vazio da nossa existência, o nada que muitas vezes nos sentimos.
Nós derrubamos as árvores por uma necessidade emocional? Não! As derrubamos porque somos egoístas, porque somos ingratos à natureza, porque somos medíocres e queremos registrar a nossa história num pedaço de papel para a posteridade.
E assim esquecemos o quanto de mal fazemos às árvores que são derrubadas todos os dias para servirem de elemento que fabrica o papel.
Nós poderíamos registrar os nossos feitos em outros locais, como assim faziam os homens primitivos que deixaram registradas as suas histórias nas paredes das cavernas e até onde se sabe eles não agrediram a natureza para deixarem registrados os seus grandes feitos.
Que queremos nós das árvores? Que queriam os românticos do século XIX? Como se apresentava a natureza para esses escritores loucamente apaixonados pelas suas senhoritas?
Muitos ficaram famosos e até hoje são lidos no mundo inteiro como é o caso do romance que vamos estudar neste ensaio intitulado “Os miseráveis” do autor francês Victor Hugo.
Eu tenho muitas razões para ter escolhido esse romance para falar sobre as árvores e a natureza que o preenche em todos os seus capítulos, mas uma delas é o amor que o autor procura passar para o leitor da natureza.
Esse cuidado com a natureza, de mostrar-lhe bela e exuberante mesmo em meio a uma guerra, mesmo em meio a fome, mesmo em meio ao desespero, faz do romance “Os miseráveis” de Victor Hugo algo maravilhoso aos nossos olhos.
Se o leitor for atento verá que são tantas as vezes em que o autor traz a palavra “árvores” em seu romance que acabamos criando uma paisagem verde na descrição dos lugares que ele faz de forma própria e rápida.
Uma leitura, que recomendo a todos os amantes da literatura, é essa obra que enaltece a beleza da natureza do eu, ou seja, do ser na sua essência mais sofrida e da própria natureza das florestas que estão sempre presentes nos românticos desse século.
Os temas principais do romantismo giram em torno do nacionalismo, a supervalorização dos sentimentos e das emoções pessoais (angústias, tristezas, paixões, felicidades e etc).
Esse sentimentalismo exagerado está refletido nos enredos que, em sua maioria, consistem em histórias de amor ou, quando este não é o dado principal, em histórias em que o amor e a paixão prevalecem.
Mas um dos temas mais recorrentes no romantismo é o culto à natureza que ganha traços diferenciados nessa corrente literária pois, a partir de agora, passa a funcionar não apenas como pano de fundo para as histórias, mas também, passa a exercer profundo fascínio pelos artistas.
Além disso, a natureza passa a entrar em contato com o eu romântico, refletindo seus estados de espírito e sentimentos.
É assim que podemos ler a obra “Os miseráveis” de Victor Hugo, ou seja, um profundo fascínio pelas florestas, bosques e jardins. Uma grande obra que se fosse lida nas aulas sobre meio ambiente chamaria atenção do público pelo enaltecimento que o autor propõe à natureza em cada capítulo da sua obra.
A obra “Os miseráveis” foi escrita pelo autor francês Victor Hugo no ano de 1862, tendo sido traduzida para vários idiomas logo depois de ser lançada, inclusive para o nosso português. É considerado por muitos como um dos maiores clássicos do romantismo francês.
Na história da obra “Os miseráveis” o autor narra a situação política e social da população francesa no século XIX, por meio do personagem Jean Valjean. No romance, o autor descreve a vida das pessoas miseráveis e pobres de Paris durante a Insurreição Democrática.
Por meio do personagem Jean Valjean, o romance faz críticas a sociedade francesa da época, desde a desigualdade social aos dilemas morais individuais das pessoas. É também através dos seus diversos personagens que o autor enaltece o seu amor pela natureza em vários dos momentos que se seguem na obra.
Uma leitura agradável e fiel ao leitor porque traz sempre críticas aos acontecimentos marcantes daquela época como também retrata bem uma França onde a natureza se faz presente em cada casa, em cada praça, em cada local onde podemos chegar através da leitura que nos fascina e nos prende nas suas volumosas páginas.
Esse amor pelas árvores na obra “Os miseráveis” pode ser visto logo nas suas primeiras páginas quando o personagem principal tem como profissão ser podador de árvores e viver perto delas, ou seja, ser um homem do campo.
Mais à frente esse mesmo personagem, depois de passar por muitas aventuras, encontra-se num belo bosque encostado numa árvore quando rouba uma moeda de um garoto.
As páginas do romance vão se passando e a gente encontra o autor morando numa casa com um belo jardim, ele passeia numa praça cheia de árvores, depois vai morar num convento onde passa a ser seu jardineiro.
Volta a morar numa casa com um belo jardim com flores as mais diversas e repleto de árvores e faz os seus passeios pelos bosques sempre a sentir o ar verde da natureza.
Até mesmo quando descreve a batalha de Waterloo, Victor Hugo, consegue trazer as árvores de uma forma cheia de romantismo e amor por elas.
No meio da batalha, os soldados feridos, os cavalos, os canhões e lá estavam as árvores como testemunhas de que os soldados franceses lutaram até seus últimos momentos contra os ingleses.
Mas, Jean Valjean não está sozinho nessa obra. Ao contrário, ele tem a companhia de uma menina com lindos olhos azuis chamada Cosette que também aprecia muito os passeios pelas praças e bosques e gosta de cuidar do seu jardim da casa onde mora com o seu pai Jean Valjean.
Assim como a menina Cosette as crianças de hoje em dia poderiam morar em casas rodeadas por jardins com flores, insetos e árvores para que pudessem aprender a amar a natureza desde a tenra idade.
Cosette foi educada num convento de freiras onde tinha um grande jardim cuidado pelo seu pai e por um amigo fiel. Nas escolas também poderíamos ter jardins além de câmeras, computadores, tablets e muros altos.
A menina Cosette e o seu pai chegam a passar horas sentados no banco de uma praça contemplando a natureza, em completo silêncio. É nessa praça onde ela conhece aquele que será o seu grande amor, o jovem revolucionário chamado Marius.
Os jardins do romance servem muitas vezes para proteger Jean Valjean contra a polícia de quem ele vive fugindo, principalmente para se esconder do inspetor Javert que não para de o perseguir.
Em todas as casas alugadas pelo nosso personagem principal sempre encontraremos a presença de um belo jardim.
A presença das árvores no romance é uma das coisas mais lindas que podemos ver na narrativa de Victor Hugo. Parece que em cada local ele quis colocar uma árvore.
Talvez um apelo para a nossa atualidade onde poucos romances enaltecem a natureza e dão valor aos edifícios, ás avenidas, aos muros altos e esquecem de falar nas flores e nos insetos que fazem parte desses jardins que já não encontramos mais na maioria das casas.
Eu conheci um jardineiro recentemente que ama o seu trabalho. Falei do jardim do convento de freiras onde Jean Valjean trabalhou por muitos anos junto com um dos seus melhores amigos.
No jardim das freiras havia plantas e árvores frutíferas. Muitas vezes o autor da obra nos fala do cultivo de melões e peras.
Sim! Os jardins daquela época tinham também árvores frutíferas e não somente flores como vemos atualmente. As árvores eram o grande destaque dos belos jardins. Saber cuidar bem delas era o ofício principal do jardineiro.
Na casa onde Cosette teve o seu primeiro encontro com Marius havia um jardim cheio de árvores frutíferas. Também tinha um banco onde Cosette gostava de sentar-se, refletir sobre a sua vida e pensar na mãe que não conhecera.
É nesse jardim onde acontece a primeira paixão arrebatadora de Cosette. Os encontros com o jovem Marius são sempre ali. Ele pula a grade de ferro e entra no jardim sorrateiramente para não ser visto pelo pai e por mais ninguém.
Não sei se o autor quer nos dizer que ele é um amante da natureza ou se Jean Valjean, o seu personagem principal, é quem ama tanto a natureza que não consegue viver longe dela porque nas casas que aluga sempre existirá um jardim à sua disposição.
Os belos jardins de Victor Hugo não são muito detalhados. Ele simplesmente fala sobre a existência deles em alguns locais de forma quase despercebida pelo leitor que não atentar para a presença da natureza no seu romance.
Confesso que na primeira leitura que fiz da obra, há alguns anos, não atentei para isso. Para mim, na primeira leitura é como se as árvores estivessem ali por estarem simplesmente e não por serem elementos necessários a narrativa do autor.
Na sua infância Cosette sempre gostou dos jardins depois que passou a viver com Jean Valjean. Ela aprendeu com o pai a cuidar das flores e das árvores. Trata-se desse cuidado que tanto escrevo aqui necessário às crianças das grandes cidades.
Para mim, a cada criança que nasce deveria ser presenteada uma árvore. Que ela pudesse desde cedo cuidar dessa árvore e fazê-la crescer frondosa e exuberante aos olhos do mundo.
Não se sabe se Jean Valjean ensinou a Cosette amar os seus jardins, com efeito sabe-se que ele sempre a levava para passear nos bosques e praças. De certa forma, não é preciso ensinar, mas fazer gostar.
As crianças tendem a imitar os pais. Se elas são acostumadas desde crianças a cuidarem da natureza, nunca que a agredirão.
Do mesmo jeito se elas forem acostumadas a passearem em parques e bosques, sempre que puderem, mesmo adultas, voltarão a passear nesses lugares porque as lembranças da infância estão vivas no pensamento. Tornamos a voltar nas nossas infâncias sempre que lembramos de algo agradável.
É importante e necessário que cada casa tenha um jardim. Nem que seja um pequeno jardim, mas que a criança possa ter contato com a natureza e perto dela ficar o tempo que for preciso.
Se morar num apartamento, que existam plantas e flores em vasos. Se morar numa casa com quintal, que possa ter plantas frutíferas, hortas e flores. Faz bem às crianças conviverem perto da natureza.
Na obra “Os miseráveis” a menina Cosette era triste e sofrida pela ausência da sua mãe, mas depois de ganhar o amor e cuidados de Jean Valjean passou a ser alegre e amar todas as coisas ao seu redor. Apesar da simplicidade com que viviam pai e filha, a menina aprendeu a amar as árvores da mesma forma que o seu pai.
É isso que sempre peço nos meus textos, ou seja, que as crianças tenham proximidade com as coisas que os pais gostam e apreciam. Todos os papais e mamães precisam aprender a amar a natureza.
Alguns reclamam que as árvores sujam muito. As folhas secas que caem das árvores servem para reter a água da chuva evitando as enchentes, elas também servem como adubos para outras plantas.
Além do mais, apanhar folhas secas junto com as crianças é uma grande terapia ocupacional para esquecer a ansiedade e o estresse do dia a dia.
Quando a gente lê as obras dos românticos do século XIX aprendemos com eles a amar a natureza e cuidar bem dela. Passamos a valorizar as nossas árvores. Descobrimos que o amor pelas florestas é grandioso e necessário.
Nesses romances, não vemos árvores sendo derrubadas, florestas desmatadas ou queimadas. Nada disso! O amor dos autores pela natureza é tão grande que vemos sempre descrições bonitas sobre elas.
Essas obras românticas deveriam chegar às crianças de uma certa forma. Talvez através da adaptação que se faz tão boa para dialogar com a criança.
Alguém pode dizer que “Os miseráveis” não tem como ser lido por crianças, mas eu digo o contrário. Tem muita coisa nessa obra que pode ser discutida e interpretada pelas crianças.
Além do podador de árvores temos os jardineiros, os proprietários de jardins, os que apreciam bosques, os que passam horas sentados em praças públicas.
Nós já não temos mais esses costumes que tinham Jean Valjean e a sua filha de passearmos pelas praças públicas, porque as coisas estão tão violentas que tememos um assalto ou coisa parecida.
Mas, podemos ir a esses lugares num horário que tenham outras pessoas. Claro que não podemos ir sozinhos. Correremos o risco de realmente sermos assaltados porque as autoridades públicas não se preocupam com as nossas seguranças. É uma pena!
O nosso personagem principal Jean Valjean gostava de podar árvores com um machado. Há no romance outro personagem que faz isso do qual não lembro o nome agora.
O podador de árvores necessita ter um carinho e cuidado com elas, pois se podar demais a deixará feia e tristonha. As árvores também choram. As árvores também ficam tristes.
Nas suas diversas fugas que tinha sempre o inspetor Javert o perseguindo, Jean Valjean subiu em muitas árvores para cair dentro de jardins alheios. As árvores sempre foram generosas para com o nosso personagem.
E ele também sempre teve um amor grandioso por elas. Talvez o maior amor da sua vida depois da menina Cosette. Jean Valjean gostava de viver nos fundos das casas que alugava bem lá atrás dos seus jardins escondido de todos e, principalmente, do inspetor Javert.
Já existe uma versão para crianças dessa obra. Seria bom que professores e pais lessem para as suas crianças dando ênfase aos elementos da natureza que nela aparecem.
Contando as aventuras de Jean Valjean, Cosette, Javert e tantos outros personagens. Trazendo sempre a presença das árvores significativa na narrativa.
Que o professor possa junto com as crianças descobrirem imageticamente como eram os jardins do século XIX da França e como eram os nossos jardins brasileiros daquela época.
Também que seja criado um diálogo em relação aos jardins que não têm mais árvores e sim apenas flores. Por que estamos deixando de plantar árvores nas nossas casas, nas nossas ruas e nas nossas praças?
O que fazer para colocar esse amor de Jean Valjean pela natureza à mostra de todas as crianças nas escolas? O que nos aproxima do romance e ao mesmo tempo nos afasta dele?
Ainda temos nas nossas casas jardineiros? Conhecemos algum podador de árvores? Que tal convidar um podador de árvores para fazer uma fala na escola?
Se Jean Valjean ensinou a menina Cosette a cuidar e amar o seu jardim nós também podemos ensinar às nossas crianças a amarem os seus. As crianças enxergam nas árvores grandes amigas que são capazes de ouvi-las e confiarem os seus segredos.
Se não podemos mais passar horas sentados num banco de uma praça sentindo o ar puro das árvores que possamos ter nas nossas casas um pequeno jardim florido onde as crianças possam regá-lo e cuidar dele com todo o carinho do mundo assim como fazia Cosette com os seus jardins pelas diversas casas onde passou com o seu pai.
Afinal, a vida requer um pouquinho de amor em tudo o que fazemos e esse amor Jean Valjean e a menina Cosette sabiam doar muito bem as coisas que faziam e onde viviam.
A gente aprende a valorizar mais a vida comendo pão preto, acreditava Jean Valjean. Eu acredito que a gente aprende a valorizar mais a vida chupando cajus quando a fome aperta na barriga e dentro de casa não tem nada para comer.
Destaco uma parte do texto que traz as árvores de uma forma maravilhosa para a nossa leitura que diz o seguinte “Que fez durante todo esse trajeto? Em que pensava? Como de manhã, olhava as árvores passarem, os tetos de colmo, os campos cultivados e os diferentes aspectos da paisagem que se desloca a cada volta do caminho; essa é uma forma de contemplação que muitas vezes satisfaz a alma, dispensando-a de pensar.”
Momento em que Jean Valjean está indo decidir mais uma vez o destino da sua vida difícil e sofrida ele escolhe olhar as árvores para pensar e refletir sobre tudo o que fez nela e o que poderá fazer para tornar-se um homem bom e virtuoso.
E para finalizar o meu texto deixo outra passagem bonita que gosto muito e nos diz o seguinte “Uma hora depois, um homem, caminhando pelo meio das árvores e do nevoeiro, afastava-se rapidamente de Montreuil-sur-Mer na direção de Paris. Era Jean Valjean.”
Mais uma vez Jean Valjean se vê na necessidade de fugir das mãos do inspetor Javert e caminha pelas árvores. Quantos de nós não fugimos dos nossos problemas, angústias e aflições caminhando pelo meio das árvores das nossas cidades? Ou não têm árvores em nossas cidades?
*Rosângela Trajano é professora, ativista ambiental, escritora e poeta.