Congresso abre caminho para a boiada passar e retira dos municípios o pouco que restava da autonomia ambiental, como é o caso de Itabira frente à mineração

Foto: Carlos Cruz

PL da Devastação fragiliza ainda mais o poder dos municípios e ameaça a participação da sociedade em decisões que afetam diretamente seus territórios

A derrubada dos vetos de Lula ao Projeto de Lei nº 2.159/2021, conhecido como Lei Geral do Licenciamento Ambiental e apelidado por entidades socioambientais de PL da Devastação, fragiliza ainda mais a precária autonomia dos municípios em questões ambientais e ameaça a participação da sociedade em decisões que afetam diretamente seus territórios. Na quinta-feira (27), o Congresso Nacional derrubou 56 dos 63 vetos presidenciais, medida recebida por organizações ambientalistas e pela comunidade científica como um retrocesso sem precedentes.

A ministra do Meio Ambiente, Marina Silva, foi contundente ao avaliar a decisão. Para ela, houve uma demolição da política ambiental construída ao longo de décadas. A ministra adiantou que o governo deve recorrer ao Supremo Tribunal Federal, por considerar que vários pontos estabelecidos pelo Congresso são inconstitucionais e violam o artigo 225 da Constituição, que garante o direito de todos a um meio ambiente ecologicamente equilibrado.

Entre os pontos mais criticados estão a dispensa de licenciamento para atividades de médio impacto, como obras de infraestrutura e expansão agropecuária. A participação social é reduzida, com audiências públicas deixando de ser obrigatórias em diversos casos.

Perda da frágil autonomia municipal

Também há enfraquecimento da autonomia municipal, pois a anuência de conselhos locais e órgãos ambientais das cidades deixa de ser requisito para licenciar grandes empreendimentos. A ministra alerta ainda para o risco a áreas sensíveis, como territórios indígenas e zonas de proteção permanente, que podem ser impactados sem avaliação rigorosa.

Com isso, enfraquece-se ainda mais a já combalida autonomia municipal. A anuência de conselhos locais, como o Conselho Municipal de Meio Ambiente (Codema), deixa de ser requisito para o licenciamento de grandes empreendimentos.

O processo de licenciamento de novas e antigas atividades minerárias passa a ser simplificado, em muitos casos baseado na autodeclaração de conformidade com a lei. Essa modalidade é chamada de Licença Ambiental por Adesão e Compromisso (LAC ).

A LAC funciona como licenciamento simplificado: o empreendedor adere às condições técnicas previamente definidas pelo órgão ambiental e declara que as cumpre. Embora se espere que não se aplique a atividades de grande impacto, como a mineração, o risco é real. Se for estendida, haverá menos participação social, com dispensa de audiências públicas e consultas prévias.

A fiscalização, já frágil, torna-se ainda mais reativa, dependente de inspeções posteriores, muitas vezes insuficientes diante da escala dos projetos com seus impactos ambientais e sociais.

O estouro da boiada vem sendo articulado desde Bolsonaro

A decisão do Congresso ocorre logo após a COP30, realizada no Brasil. Expõe uma contradição evidente: enquanto o país se apresenta ao mundo como líder na agenda climática e de sustentabilidade, internamente flexibiliza regras ambientais em favor de interesses econômicos.

A votação do PL da Devastação contou com amplo apoio do Centrão e de parlamentares alinhados ao bolsonarismo, que desde o governo anterior articulam mudanças para reduzir exigências de fiscalização e licenciamento.

No governo passado, o então ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles, afirmou que era preciso aproveitar a pandemia para “passar a boiada”, permitindo avanço sobre novas fronteiras agrícolas e sobre terras indígenas. Com a derrubada dos vetos, essa estratégia se consolida.

Itabira é a cidade que historicamente mais sofre com a mineração
Itabira enfrenta poluição atmosférica que compromete a saúde da população, além de uma crise hídrica agravada pelo quase monopólio das outorgas de recursos hídricos superficiais e subterrâneos em poder da mineradora

Além disso, os municípios, que já tinham papel limitado, perdem ainda mais autonomia para fiscalizar grandes empreendimentos. Itabira, cidade natal do poeta Carlos Drummond de Andrade e berço da mineração da então Companhia Vale do Rio Doce, hoje Vale S.A., é a que mais sofre no país com os impactos da atividade. Desde 1942, convive com problemas ambientais continuados, não mitigados em seu conjunto.

Drummond denunciou em versos e crônicas a destruição da paisagem e os efeitos sociais da mineração em poemas como Montanha Pulverizada, O Maior Trem do Mundo e Lira Itabirana, esses dois últimos publicados originalmente no jornal O Cometa Itabirano.

Em decorrência da falta de controle e de medidas compensatórias, Itabira enfrenta poluição atmosférica, crise hídrica e violações de direitos em comunidades vizinhas. A Licença de Operação Corretiva (LOC), aprovada em 2000, está vencida desde 2016 – e foi prorrogada pelo Estado até 2026. Muitas condicionantes não foram cumpridas, especialmente as relacionadas aos escassos recursos hídricos, já que a maior parte das outorgas ainda permanece em poder da mineradora.

Só em 2020, por força de um Termo de Ajustamento de Conduta (TAC) firmado com o Ministério Público, a Vale iniciou as obras de transposição do Rio Tanque para mitigar a escassez de água na cidade. A promessa agora é “resolver em definitivo” a crise hídrica que historicamente deixa a população sem água na estiagem, além de impedir a atração de novas indústrias, mantendo a economia local dependente da mineração.

Vozes da ciência e da sociedade civil

Diversas organizações ambientais e científicas reagiram imediatamente à derrubada dos vetos. O Observatório do Clima classificou a medida como o pior retrocesso ambiental da história. O Instituto Socioambiental afirmou que o país matou o licenciamento ambiental e abriu espaço para impactos irreversíveis em ecossistemas e comunidades tradicionais.

A Associação Brasileira de Ciência Política apontou que a nova lei compromete a autonomia federativa e fere o princípio da gestão compartilhada do meio ambiente. Pesquisadores da Universidade Federal de Minas Gerais alertaram que a flexibilização desmonta avanços institucionais e ameaça direitos constitucionais.

A Coalizão Brasil Clima, Florestas e Agricultura, que reúne centenas de entidades, repudiou a decisão, afirmando que o Congresso rasgou compromissos internacionais assumidos pelo Brasil na COP30.

Próximos passos jurídicos

O governo federal prepara ações no Supremo Tribunal Federal para questionar a constitucionalidade de pontos centrais do PL da Devastação. ONGs e entidades científicas também articulam Ações Diretas de Inconstitucionalidade, alegando violação ao artigo 225 da Constituição e ao pacto federativo.

A disputa jurídica deve se arrastar por meses. Enquanto isso, municípios como Itabira aguardam para saber se terão voz ou se serão definitivamente silenciados.

O Congresso abriu caminho para que a boiada avance. Municípios, já fragilizados, perdem ainda mais autonomia.

Em Itabira, a população pode assistir à renovação de uma licença ambiental vencida sem consulta pública, enquanto os impactos da mineração seguem sem solução. É assim que a boiada vai passado, como o retrocesso nacional que se materializa localmente.

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