Como o juiz León Arslanian puniu ditadores na Argentina, Alexandre de Moraes resiste à pressão para não deixar golpistas impunes no Brasil

Em destaque, Leon Arslanian, à esquerda, e os demais juizes ouvem um dos depoimentos durante o julgamento dos militares, em 1985, na Argentina

Fotos: Reprodução/
CONADEP/Argentina

Enquanto a Argentina enfrentou seus algozes com coragem e justiça, o Brasil ainda convive com a impunidade dos crimes da ditadura, mas agora tem a chance de não repetir esse erro diante da tentativa de golpe de 2023

Valdecir Diniz Oliveira*

Foi surpreendente, e simbólico, assistir à exibição do filme Argentina, 1985 no horário da Tela Quente, exibida pela TV Globo aos domingos à noite, após o Fantástico, quando grande parte dos telespectadores já se prepara para dormir. Um horário geralmente reservado aos “enlatados” norte-americanos de ação deu lugar a uma obra profunda, corajosa e extremamente oportuna diante da conjuntura política brasileira.

A escolha da emissora, mesmo em horário de baixa audiência, rompeu a rotina do entretenimento superficial e ofereceu ao público um espelho incômodo: enquanto a Argentina enfrentou seus fantasmas e puniu os responsáveis pelos crimes da ditadura, o Brasil ainda convive com o silêncio, a omissão e a impunidade. O filme não apenas resgata um momento decisivo da história argentina: ele convoca o telespectador a refletir sobre o que não foi feito por aqui, mantendo-se os crimes da ditadura militar sem castigo, impunes.

Carlos Alberto Brilhante Ustra, coronel reformado e ex-comandante do DOI-Codi-SP entre 1970 e 1974 (Foto: Reprodução/Memórias da Ditadura)
A Argentina enfrenta seus algozes

O filme, dirigido por Santiago Mitre e protagonizado por Ricardo Darín (como o promotor Julio César Strassera) e Peter Lanzani (como o jovem assistente Luis Moreno Ocampo), retrata o histórico Julgamento das Juntas Militares argentinas. Foi quando, em 1985, a Argentina levou à Justiça civil os principais líderes militares da ditadura que governou o país entre 1976 e 1983. Pela primeira vez, ex-comandantes foram responsabilizados por crimes contra a humanidade — tortura, desaparecimentos forçados, estupros, assassinatos e ocultação de cadáveres.

O processo foi conduzido por uma equipe jovem e determinada, que enfrentou ameaças, pressões políticas e até resistência familiar. A corte, presidida por León Arslanian, ao lado de juízes como Ricardo Gil Lavedra, Jorge Torlasco, Andrés D’Alessio, Guillermo Ledesma e Jorge Valerga Aráoz, não se curvou às pressões e ameaças, inclusive com a explosão de uma bomba detonada dentro de um carro em frente ao tribunal.

Cartaz do filme Argentina 1985

Em dezembro de 1985, cinco dos nove réus foram condenados: os ex-ditadores Jorge Rafael Videla e Emilio Massera à prisão perpétua; Roberto Viola a 17 anos; Armando Lambruschini a 8 anos; e Orlando Agosti a 4 anos e 6 meses. Videla morreu na prisão em 2013, aos 87 anos, após sofrer uma queda no banheiro. Massera faleceu em 2010, após anos de internação por problemas neurológicos.

Durante o julgamento, foram ouvidos 709 casos. Os depoimentos chocaram o país. Uma mulher relatou ter dado à luz em uma viatura militar, com o bebê arrancado de seu ventre por torturadores. Depois, foi obrigada a limpar uma sala nua, enquanto a criança era deixada sobre uma mesa de mármore gelada.

Outros relatos incluíram sessões de choques elétricos, estupros sistemáticos, afogamentos simulados e desaparecimentos. Estima-se que 30 mil pessoas tenham desaparecido durante o regime — muitos corpos jamais foram encontrados. O relatório Nunca Más, elaborado pela Comissão Nacional sobre o Desaparecimento de Pessoas (CONADEP), tornou-se um documento histórico e referência mundial sobre justiça de transição.

Brasil fica com o esquecimento e impunidade

No Brasil, a história seguiu outro rumo. Com a abertura política iniciada timidamente em 1979, o país optou por uma transição negociada. A Lei da Anistia, aprovada naquele ano, garantiu perdão a crimes políticos – e também aos crimes cometidos por agentes do Estado. A Nova República, inaugurada em 1985 pelo ex-presidente José Sarney, manteve o pacto de silêncio.

O jornalista Vladimir Herzog, assassinado no DOI-Codi de São Paulo

Assim, nenhum ex-presidente militar brasileiro foi julgado. Nenhum comandante foi responsabilizado. Nem mesmo o coronel Carlos Alberto Brilhante Ustra, torturador confesso e exaltado por Jair Bolsonaro, recebeu punição proporcional. Ustra foi o primeiro militar reconhecido oficialmente como torturador pela Justiça brasileira, mas morreu impune, em 2015.

Casos emblemáticos como o assassinato do jornalista Vladimir Herzog, em 1975, nas dependências do DOI-CODI, foram oficialmente registrados como suicídio – uma versão que só foi desmentida décadas depois.

O deputado federal Rubens Paiva, sequestrado e morto em 1971, teve seu corpo ocultado pelo regime. Sua história é retratada no filme Ainda Estou Aqui, de Walter Salles, que narra a luta de sua esposa, Eunice Paiva, e da família por justiça. A obra reacendeu o debate sobre os desaparecidos políticos e impulsionou processos judiciais que estavam parados há anos.

Outro episódio sombrio foi o caso Parasar, uma operação clandestina da Aeronáutica que planejava lançar opositores ao mar em voos secretos, nos moldes da “Operação Voo da Morte” argentina. A ação só não foi executada porque foi denunciada antes de ser posta em prática.

Ainda assim, nenhum dos envolvidos foi punido. A Comissão Nacional da Verdade, criada em 2011, identificou 434 mortos e desaparecidos políticos no Brasil, mas seus relatórios não resultaram em responsabilizações penais. O projeto “Tortura Nunca Mais”, surgido ainda nos anos 1980, ficou restrito à memória e sem que fosse feito justiça.

Rubens Paiva foi sequestrado e assassinado pela ditadura militar brasileira em 20 de janeiro de 1971, no Rio de Janeiro
A nova chance diante do golpismo

Essa impunidade histórica abriu espaço para que o autoritarismo voltasse a rondar o país. A tentativa de golpe de Estado em 2023, liderada por Bolsonaro, só não se concretizou por falta de apoio integral das Forças Armadas. A omissão do passado alimentou a audácia do presente. A ideia de que crimes políticos não são punidos no Brasil criou um terreno fértil para que se tentasse novamente subverter a ordem democrática.

Agora, o Brasil tem uma nova chance. Sob a condução firme do ministro Alexandre de Moraes, o Supremo Tribunal Federal vem demonstrando disposição para responsabilizar os envolvidos na tentativa de ruptura democrática.

O ministro Alexandre de Moraes conduz com firmeza o processo de julgamento dos envolvidos na tentativa de golpe, tendo o ex-presidente Jair Bolsonaro como um dos principais réus (Foto: Paulo Pinto/Agência Brasil)

Moraes, como Arslanian em 1985, enfrenta pressões intensas políticas, institucionais e até pessoais – mas não recua, mesmo sendo sancionado por Trump, que age como imperador do mundo. A série de investigações, prisões e denúncias contra os articuladores do golpe leva crer que, desta vez, a Justiça brasileira pode romper com a tradição da impunidade.

Justiça tardia ainda é justiça

Argentina, 1985 e Ainda Estou Aqui não são apenas filmes. São alertas. São espelhos. São chamados à ação. O Brasil precisa deixar de ser o país onde torturadores viram heróis e golpistas seguem livres.

Precisa tornar-se, enfim, o país da responsabilização, para enfim deixar de ser o país da impunidade de candidatos a ditadores e de seus apoiadores. Porque democracia sem justiça é apenas uma promessa vazia. E história brasileira já mostrou o preço da omissão.

Foto: acervo pessoal

*Valdecir Diniz Oliveira é cientista político, jornalista e historiador

 

 

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