Cibersolitário ou cibersolidário?

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Reproução

“Não se tem outra escolha neste mundo a não ser entre a solidão e a vulgaridade!” – Shopenhauer, Aforismos

“Foge, meu amigo, refugia-te na solidão! Vejo-te aturdido pelo tumulto dos grandes homens e atormentado pelos aguilhões dos pequenos […] Onde cessa a solidão, começa a praça pública, e, onde começa a praça pública, começa também o tumulto dos grandes comediantes e o zumbido das moscas venenosas […] Sofrer a solidão, mau sinal: nunca sofri a não ser com a multidão.” – Nietzsche, Assim falava Zaratustra

Por George Minois*

O homo sapiens está na iminência de tornar-se o Homo communicans, dotado de um sexto sentido cuja privação faz dele um deficiente: o telefone celular. Perder essa prótese é como perder a visão, audição e o tato, ou mesmo os três ao mesmo tempo.

O Homo communicans é um corpo, uma alma e um celular. Descartes está ultrapassado: do dualismo corpo-alma e do cogito ergo passou-se ao trialismo corpo-alma-celular e ao telephono ergo sum. Eu me comunico, logo existo.

E como me comunico, não sou mais só. Internet e todos os aplicativos permitem entrar em contato (quase) instantaneamente com o planeta inteiro, visualmente e auditivamente. Estou conectado a todos os meus semelhantes. Será o fim da solidão?

Alguns afirmam isso, sobretudo os fornecedores de acesso e as empresas da eletrônica – que seja dito de passagem têm interesse em manter um sentimento de solidão a fim de que seus clientes sintam necessidade vital de se “conectar” – mas não somente isso. Muitos estão convencidos e convertidos a cibersolidariedade, fator suposto de ciberbeatitude.

Não só todo mundo pode se comunicar a todo instante com quem quiser, e ser contatado não importa quando e por não importa por quem, partilhar suas reflexões e aproveitar a alegria de estar acessível em permanência, como também pode participar, até mesmo provocar, movimentos de massa bem reais, lançar apelos à revolução ou a aperitivos gigantes, espalhar rumores, mentiras e calúnias, propagar a confusão ou a união, o melhor e o pior, logo, participar da vida social em escala planetária.

Maravilha! Mesmo os que são completamente atingidos pela ciberdependência admitem que ela não fez desaparecer o desejo de sociabilidade: Gilles Lipovetsky chega a escrever que “observando a floração dos clubes e associações, nada permite afirmar que no futuro se encontrará cada vez menos o outro num estado crescente de ‘solidão interativa’. A difusão social dos novos objetos de comunicação inverterá essa orientação?

A verdade é que são os indivíduos mais bem equipados em novas tecnologias que “saem” mais e encontram mais pessoas: elas os completam, e os indivíduos que utilizam frequentemente os serviços de internet continuam a manter relações off-line o procuram alargar seu horizonte com encontros reais.1

Talvez isso seja verdadeiro. Mas, olhando mais de perto, constata-se, entretanto, que o equipamento maciço dos indivíduos em aparelhos eletrônicos conectados ou não está em vias de mudar radicalmente seu comportamento social e cultural, e operar uma mutação no seu próprio ser.

Essa mutação não leva ao desaparecimento da solidão, mas à sua metamorfose, à sua escamoteação. Ela a integra ao espírito humano, tornando-a indolor, insensível e invisível. A solidão da era eletrônica não é mais a do eremita isolado, mas a do comunicante conectado e logo integrado.

O isolamento não desaparece por isso, mas não é mais sentido como tal: isolamento dos jovens e menos jovens que tapam os ouvidos com fones e ficam surdos, literalmente metaforicamente, ao seu entorno; isolamento dos obcecados pelos vídeogames, sós ou em grupos diante de um console; Isolamento do “surfista” na internet, mais do que na realidade.

No Japão conhece-se o fenômeno dos kikikomori. Jovens que ficam confinados em casa e só têm contato com o mundo através das telas de televisão e do computador. Em 2000, pesquisas revelaram que a utilização da internet “diminui o círculo das relações sociais próximas e longínquas, aumenta a solidão, diminui ligeiramente a quantidade de suporte social”.2

Conclusão confirmada por uma pesquisa de setembro de 2010 na Inglaterra, com adultos de mais 45 anos, casados, viúvos ou celibatários.3 Dentre eles, 35% dizem experimentar um sentimento de loneliness, quer dizer, de solidão negativa, e, contrariamente que se poderia pensar, essa proporção decresce com a idade: enquanto 43% dos de 45-49 anos dizem sentir-se sós, somente 35% dos mais de 70 anos experimentam esse sentimento.

Seria, então, em larga medida, um fenômeno cultural: os antigos não têm as mesmas exigências, as mesmas expectativas que os baby-boomers que cresceram com as novas tecnologias de comunicação.

Paradoxalmente, isso só fez crescer neles o sentimento de solidão. Outra constatação: os que têm em casa acesso à internet sentem a solidão nas mesmas proporções que aqueles que não o tem.

Enfim, 13% dos que dizem sentir-se lonely, afirmam que desde que utilizam a internet as relações com os amigos perderam em profundidade e em qualidade, tornaram se mais artificiais.

Além disso, o telefone e o correio eletrônico se revelam instrumentos ambivalentes, favorecendo o contato de um lado, certo, mas materializando também a solidão de modo ainda mais agudo do que outrora: o que há de mais cruel do que um telefone que não toca nunca ou uma caixa de e-mails que está sempre vazia?

Quando a comunicação só podia ser feita pela presença física, a ausência do outro era aceita como normal; mas agora que ele tem todos os meios de me conectar se não faz, é que ele me negligência deliberadamente, me esquece e me ressinto, pois, mais duramente, de seu silêncio.

Entretanto, na maioria dos casos, os utilizadores não têm a impressão de ser solitários. Ao contrário, eles “se comunicam”. Aí começa o mal-entendido: o Homo communicans, conectado em permanência, imagina que está maravilhosamente aberto para os outros, mesmo que sua comunicação seja destituída de substância. Em vez de se comunicar, ele comunica no mais das vezes o vazio, e se reduz assim ao estado de simples caixa de ressonância.

Vítima do clima ambiente que difunde a palavra de ordem mágica: comunique-se para não ficar só… Mesmo que não tenha nada a comunicar. “Querem nos fazer crer que nosso sentimento de solidão proviria de uma deficiência de comunicação, que se poderia escamotear a solidão nos enchendo de informações, de consumo, de comunicação”,4 escreve Marie-France Hirigoyen.

Não se trata mais de comunicar alguma coisa, mas de comunicar simplesmente. Sob pressão social, que faz disso quase uma obrigação moral, o homem de hoje, diz Michael Hannoun, “quer co-mu-ni-car” sem se perguntar mais o que quer comunicar.  A comunicação produz obrigatoriamente a solidão a partir do momento em que comunicar não é mais um verbo intransitivo (…) Comunicar não é mais transmitir alguma coisa a alguém, é simplesmente estar em relação com alguém”.

“Não se quer dizer nada ao outro. Quer-se simplesmente estar com ele (…). Música para comunicar e aquele que não consegue fazê-lo são iguais no início diante da solidão nascida da necessidade de uma presença. Eles não têm a possibilidade de satisfazer essa necessidade. Todos os homens são sós, mas alguns só mais sócios que outros”.6

O principal teatro da comunicação pela internet são as “redes sociais”, Obra prima da impostura comunicante, em que cada um pode se despir em público e crê encontrar esse número de striptease mental o meio de estabelecer verdadeiros laços humanos e assim escapar da solidão. As redes sociais são a imagem invertida e às vezes complementar do diário íntimo.

Este último, aliás. não desapareceu. Segundo as pesquisas do Ministério da Cultura, na França, em 1997, 8% das pessoas de mais de 15 anos tinha um e a proporção diminuía com a idade. A adolescência permanece sendo o período privilegiado para essas confidências íntimas, que ajudam os jovens a estudarem a si mesmos e a se construírem.

Entre 15 e 19 anos, 19% das moças e 7% dos rapazes mantém um diário íntimo.7 O que é muito revelador da revolução atual é a passagem progressiva do diário íntimo às redes sociais, Passagem que ao mesmo tempo uma completa reviravolta: a confidência intimista e secreta cede lugar ao exibicionismo sem contenção.

Do diário íntimo ao Facebook, passa se do Jardim secreto à praça pública, e, como se crê, da solidão à sociabilidade, à grande confraternização. De fato, da solidão privada à solidão exposta. Os quem é mais só do que aquele que oferece à vista de todos. Para quem convergem os olhares?

No blog, no chat, no Twitter, nos esvaziamos de nossa substância para nos tornarmos uma concha vazia, sem interesse. Nós nos destituímos da fina camada de mistério que dá certa consistência à personalidade. E um ser sem mistério é um ser condenado à solidão: quem se interessaria por ser transparente, que tivesse entregado todos os seus segredos?

Mas é verdade que esses segredos não estão perdidos para todo mundo. Blogueiros e outros frequentadores de chats, tranquilizai-vos; nunca estareis sós: Big Brother cuida de vocês.

Um exército de voyeurs administrativos, policiais, fiscais publicitários, midiáticos, comerciais o fora dou simplesmente curiosos os observam, anotam, registram, classificam, ficham, catalogam. Não, vocês nunca ficarão sós: milhares de pares de olhos eletrônicos os observam.

O mais fascinante desses novos meios de comunicação é constatar como os indivíduos, carentes de relações humanas e de liberdade, precipitam-se por si mesmos com entusiasmo na armadilha que lhes é feita. Até pagam para entrar nela; fazem assinaturas e as renovam.

Os regimes totalitários deviam desenvolver tesouros de engenhosidade para espionar fatos e gestos dos cidadãos; na era da eletrônica de grande público e democrática, são os cidadãos que contam voluntariamente seus negócios.

Equipados com verdadeiros braceletes eletrônicos, seus celulares, podem ser seguidos em seus menores deslocamentos, seus menores pagamentos, seus menores pensamentos e palavras. O que julgam odioso nos regimes totalitários aceitam com entusiasmo no mundo da hipercomunicação eletrônica.

Como ratos atraídos pelo queijo da ratoeira. O queijo é a comunicação; foram persuadidos de que era bom para eles; então, comunicam-se, despem-se, tornam-se transparentes. Trocaram uma solidão por outra: são olhados, mas não vistos, e não se dão conta disso.

A comunicação por telas interpostas é fator de solidão de outra maneira ainda. Diante de seu teclado o indivíduo é o mestre do mundo. Ele pensa que pode gozar do anonimato, dá uma falsa imagem de si, representar um papel, apresentar-se pelo que não é e interromper o contato por um simples clique, mentir e manipular.

Quando cada um pode apagar seu interlocutor a todo o momento e ser apagado por ele, não há troca verdadeira possível. É um jogo de gato e rato, no qual todo mundo é ao mesmo tempo gato e rato. Compreende-se que se possa afirmar que “as novas tecnologias, ao facilitar a comunicação, criam, paradoxalmente, a solidão”.8

O caso do celular ilustra perfeitamente esse paradoxo. Estou conversando com alguém. Seu telefone toca. Imediatamente, ele me deixa, sem mesmo terminar a frase, me deixa só, eu que estou a um metro dele, fisicamente presente, em troca de ideias, para ir a dezenas de quilômetros, ou mais, falar com o outro.

Visivelmente, não sou sua prioridade, e o ritual “Desculpe” não mudará nada. Mas ele mesmo não está só? Toca o telefone, ele acorre. O telefone é prioridade dada aos ausentes sobre os presentes. Comunicar-se de preferência com os ausentes é fazer de sua solidão um instrumento de dominação dos outros.

Pois o telefone permite se libertar do espaço do tempo. O Homo telephonans está ao mesmo tempo aqui e acolá, no presente, no passado e no futuro graças às mensagens gravadas.

Ele comanda; pode atrapalhar os outros não importa onde ou quando, e é tratado da mesma maneira: é o nome e o número em outros celulares. Assim espalhado, está em todo lugar e em nenhum, nunca inteiramente presente; para ser o teu locutor fisicamente presente, seu corpo está lá, o espírito alhures.

“Graças aos celulares, ao SMS e aos computadores, é fácil encontrar o outro, sob qualquer pretexto, justo para se tranquilizar e se dá a ilusão de que não se está só. […] Tá aqui com que entreter um sentimento de onipotência. Onde quer que se esteja pode-se estar ao mesmo tempo em outro lugar, o que faz com que se possa estar fisicamente junto sem estar verdadeiramente em relação já que cada um está nas suas comunicações.”

Assim, ao se multiplicar, o Homo communicans tem a impressão de nunca estar só. Há sempre uma parte dele em comunicação com alguém. Ele venceu a solidão. Mas a que preço!

Seu “eu” despedaçado, desmaterializado, perdeu sua unidade, desde então dispersa em várias imagens destinadas a vários correspondentes. Vimos que para os filósofos a solidão fundamental de ser no mundo antes da internet se devia ao fato de que nunca podemos coincidir com a imagem que outros têm de nós.

Eles nos veem sempre diferentes do que somos, e temos então a impressão justificada de que eles nunca podem nos compreender. Com os meios modernos de comunicação, nós nos multiplicamos, E apresentamos imagens variadas de nós mesmos.

Qual dessas imagens é a “verdadeira”? Nós mesmos não sabemos. Ao multiplicar os contatos, recebemos em nós mesmos uma variedade de imagens cuja síntese pode nos dar a impressão de ter mais consistência, mais realidade os olhos dos outros.

De fato, somos mais sós que nunca, já que nossos interlocutores só veem um fragmento de nosso Eu. O velho homem se sentia solitário porque era um, único e real. O homem novo é solitário porque é disperso, anónimo e virtual.

Mas essa mesma explosão lhe dá a impressão de que não está mais só. O sentimento de solidão não é superado porque o indivíduo conectado perde seu caráter único. Entre o eremita sobre a coluna e o blogueiro diante de sua tela, qual deles é definitivamente mais só?

Referências

1 Lipovetgsky, Le Bonheur paradoxal, op. Cit., p.133.

2 Sciences humaines, n. 108, – set. 2000, p. 10.

3 Surveys and Statistics, set. 2010.

4 Hirigoyen, Les Nouvelles Solicitudes, op. Cit., p. 113.

5 Hannoun, Nos solicitudes, op. cit., p.242.

6 Lejeune; Bogaert. Le Journal intime. Histoire et anthologie.

7 Hirigoyen, Les Nouvelles Solicitudes, op. cit., p.117.

8 Ibid,. p. 114.

*George Minois é professor de História e historiador das mentalidades religiosas, autor de História do riso e do escárnio (2003), A idade de ouro (2011), História do Ateísmo (2014), História do futuro (2016) e História do suicídio (2018), todos pela Editora Unesp.

** Texto extraído do livro História da solidão e dos solitários, tradução de Maria das Graças de Souza, 2019, Editora Unesp.

 

 

 

 

 

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