Casos de Santa
De minha terra, não trouxe ouro nem prata, trouxe na bagagem sabores, saberes, afetos e memórias
Fátima Drummond*
Ali, no meio do caminho, entre Itabira e Ferros, incrustada num vale, entre montanhas e banhada por dois rios, o Tanque e o Jirau, vocês encontrarão uma pequena cidade de gente hospitaleira, casas simples, portas abertas, mesa farta.
Apesar de seus habitantes terem a alcunha de garrucheiros, são pacatos cidadãos, brincalhões por natureza. Gostam mesmo é de uma prosa e posso afirmar, com certeza, a oralidade é sua marca registrada com todo um linguajar próprio e rico em expressões populares que fariam inveja a Guimarães Rosa nos grandes sertões e veredas.
Além do mais, dado a acontecimentos bizarros e inusitados ocorridos ao longo dos anos, poderia até se chamar Macondo. No entanto, quis o destino que a cidade tivesse o nome de Santa e para agrado da maioria católica fosse também Maria.
Santa Maria de Itabira, mesmo que não mais a ela pertença, mantém seu sobrenome, ninguém nem sabe porquê. Prefiro tratá-la carinhosamente de Santa, apenas Santa, a minha Santa, cidade onde nasci, me criei e onde alguns anos vivi.
Foi lá que aprendi a ler de carreirinha, a brincar com as palavras, a rimar de supetão e a dar asas à minha imaginação.
A Pérola da família
Entre tantos personagens típicos que já transitaram pelas ruas de pé-de-moleque de uma Santa Maria antiga, havia alguns malucos e outros nem tanto.
Claudionor era um desses, do tipo “nem tanto”, que um dia veio e ficou.
Não se sabia de onde vinha. Só sei que vivia pelas ruas, contando com o adjutório das Donas, o que era de muita valia pois estas é quem lhe davam de comer, de beber e de vestir.
Com o passar dos anos foi conhecendo as pessoas da cidade pelo nome e andava livremente pelas ruas, parando aqui e ali.
Vivia pacificamente, mesmo que vez ou outra tivesse um rompante de raiva e aí gritava: – Ô usina de peão!
Tinha lá suas preferências, como comer um bife de “figuis” no Bar do Nhonhô e conversar principalmente com os rapazes, saber das namoradas e entre um papo e outro, pedia um cigarro ou um trocado.
Uma particularidade o atormentava, causada provavelmente por alguma doença sofrida na infância, diziam alguns que era caxumba recolhida: tinha o saco escrotal de tamanho descomunal e que ia até os joelhos.
Como se isso só não bastasse, o dito cujo enchia-se de feridas e perebas se alastravam pelo dependurado do coitado, um frejo!
Encontrava um pouco de alívio nos banhos frios no rio que cortava a cidade, acontecimento este sempre protagonizado pela turma de moços que prestavam uma ajuda ao amigo Claudionor.
Esses tais mocinhos, ainda movidos pela aguardente Cabrália, vinham madrugada afora fazendo fuzarca pela cidade, furtar o banco da prefeitura, velho banco de madeira, e deixá-lo bem longe ou emprestar os vasos de folhagens das casas, mudando-os de alpendres.
Quando a farra terminava, a cantoria dos galos nos quintais anunciava um novo dia. Claudionar já estava a postos na porta do bar onde comiam o Pão Molhado, iguaria criada por Bichim (Amarílio) feita com pão e carne, mais caldo do que carne, de se comer e lamber os beiços!
Em seguida iam todos em algazarra a caminho da ponte e Claudionor apressava o passo para acompanhar a turma animada.
Levavam-no para banhar-se no então rio, quando este ainda era um rio, o Jirau, ainda que o mesmo não tivesse, como o rio Tanque, “lépidas águas com poesia”.
Dos mocinhos garrucheiros, o Dedé era bem apessoado e talentoso. Nessa época, frangote ainda, tocava piston na banda local e namorava a minha irmã Rosa, menina-moça, aluna interna do Colégio Nossa Senhora das Dores, em Itabira. Namoro, só mesmo nas férias, às escondidas, pois toda donzela tinha um pai que era uma fera.
Voltando à vaca fria, ou melhor, ao banho frio, Claudionor era esfregado com sabão em pedra e lavado na água fria sob a ponte do Conselho, no então rio Jirau, quando este ainda era um rio.
Depois do banho, em vez de talco, despejavam-lhe uma solução de permanganato nas partes, como se fora água benta, capaz de expurgar todo o mal.
Passado o ardor e a penúria, Claudionor vestia roupa nova, novo por inteiro, lavado, desinfetado e benzido. Voltava à madorna, à mesmice…
Somavam-se os dias, a roupa ia tomando a cara do dono, ficando fouveira. A vida ia…
Dedé, ou Bilarrica, como Claudionor o chamava, gostava mesmo era de treinar o bocal, não no piston, mas nas beijocas com a namoradinha. Isso Claudionor já sabia…
Era só avistar o pai da namorada chegar ao bar do Nhonhô, à noitinha, para a habitual sinuca e lá vinha o desaforado Claudionor. Ficava a postos, só pra provocar, estufava o peito, orgulhoso, e berrava:
– Bilarrica, menino disgrapado pra namorar!!! Pudera…a menina dele parece uma gota d´água na folha de inhame!
Meu pai voltava pra casa nervoso, com a cabeça cheia de caraminholas sobre os encontros que a filha devia ter, fora de suas vistas, com aquele rapazinho metido a besta.
E enquanto fumava um Capri atrás do outro, e atrás de outro, e outro café frio, soltava marimbondos. A minha mãe era quem escutava o sermão, pois a donzela namoradeira estava a quilômetros dali, sob a vigilância das freiras do Colégio.
O tempo passou, muitas águas passaram por debaixo da ponte e Dedé, o Bilarrica, casou-se com a minha irmã Rosa, tão bonita… uma pérola d´água numa folha de inhame.
E num dia qualquer, passados alguns muitos anos, o Dedé estava em seu sítio e caiu na bobeira de colher taiobas embaixo de um pé de manga, poleiro de galinhas e levá-las para a mulher.
Ao chegar em casa, com aquele enorme buquê coalhado de titica de galinha, ouve um falatório sem fim da mulher, indignada, que arremata:
– Pois é, antes eu era uma gota d´água na folha de inhame! Hoje sou é cocô de galinha na folha de taioba!!!
Há que se cuidar das pérolas…
Tenho dito!
*Fátima Drummond é escritora santa-mariense.
Casos que enchem o meu coração de amor! Sinto a história acontecer em cada palavra, em cada verso escrito. Obrigada por compartilhar a história da nossa história. História de gente atrevida, garrucheira, história de gigantes nesse mundo chamado Santa Maria.
Foi você quem me ensinou a amar o mundo das palavras, com esse dom único de instigar a nossa imaginação.
Sou sua grande admiradora desde que me entendo por gente, é sempre um prazer ouvir o que você tem para contar!
Um grande beijo,
da sua sobrinha neta atrevida.