Cartola não realiza o sonho de ver Roberto Carlos gravar a música ’As rosas não falam’
Lenin Novaes*
“Bate outra vez/Com esperanças o meu coração/Pois já vai terminando o verão/Enfim/Volto ao jardim/Com a certeza que devo chorar/Pois bem sei que não queres voltar/Para mim/Queixo-me às rosas/Que bobagem/As rosas não falam/Simplesmente as rosas exalam/O perfume que roubam de ti, ai/Devias vir/Para ver os meus olhos tristonhos/E, quem sabe, sonhavas meus sonhos/Por fim”.
O samba “As rosas não falam”, uma das músicas clássicas de Angenor de Oliveira, o Cartola, não ganhou interpretação de Roberto Carlos, como era o sonho do inesquecível compositor e um dos fundadores da escola de samba Mangueira. Roberto Carlos se justificou da seguinte maneira: “Justamente por achar que as rosas falam, não vou gravar a música ainda não. Pode ser que um dia eu venha a gravar. A música é linda. A letra é linda, maravilhosa. Cartola é um grande compositor, inspiradíssimo. Fez coisas lindas. Quem sabe um dia eu gravo uma de suas músicas”.
A composição foi inspirada nas roseiras plantadas no pequeno jardim da casa do casal Cartola e Zica, apelido de Euzébia Silva Nascimento. Fascinada com a grande quantidade de rosas desabrochadas, ela perguntou a Cartola: “Por que nasceram tantas rosas assim?” E ele respondeu: “Não sei, Zica, as rosas não falam”. A frase instigou o compositor e, às vésperas de completar 65 anos, pegou o violão e fez a música. Com a canção concluída, Cartola a ofereceu à mulher, dizendo que “As rosas não falam” era presente de aniversário.
Considerado um dos sambas mais sofisticados e delicados dentro da bagagem musical de Cartola, a música se tornou megahit na voz de Beth Carvalho, integrando trilha sonora das novelas Duas vidas, Mulheres apaixonadas, executada por Léo Gandelman; Ninho da serpente, interpretada por Emílio Santiago e Além do tempo, cantada pelo próprio Cartola.
Paulinho da Viola conta que, quando trabalhava na TV Cultura de São Paulo, em 1973, apresentando programa que buscava mostrar pessoas ligadas à música, sobretudo sambistas vinculados às escolas de samba, foi visitado por Cartola. No meio do programa Cartola o interrompeu e pediu para apresentar uma de suas composições. Paulinho ficou sem ação, porém, o diretor do programa autorizou a apresentação. E então pegou o seu violão e tocou pela primeira vez em público “As Rosas Não Falam”.
Nascido no Catete
No ano de 1908, no dia 11 de outubro, nasceu Angenor de Oliveira, no bairro do Catete, sendo o mais velho dos oito filhos do casal Sebastião Joaquim de Oliveira e Aida Gomes de Oliveira. Quando tinha oito anos, a família se mudou para o bairro vizinho de Laranjeiras e, aos 11 anos de idade, foi viver no Morro de Mangueira. Aprendeu a tocar cavaquinho e violão com o pai e desfilou no Rancho Arrepiado e nas apresentações do Dia de Reis, com as suas irmãs, fantasiadas de pastorinhas. Terminou o primário aos 15 anos e, após a morte da mãe, caiu na boêmia, varando madrugadas entre o samba e a malandragem.
Trabalhou em tipografias e, depois, como pedreiro em construções de apartamentos e casas no Rio de Janeiro. Daí vem o apelido de Cartola, usando chapéu-coco para proteger a cabeça de massa de cimento. Com o compositor Carlos Cachaça, um dos seus parceiros, em 1928, ajudou a criar o Bloco dos Arengueiros. E da ampliação e fusão dessa agremiação com outras existentes no Morro de Mangueira nasceu o Grêmio Recreativo Escola de Samba Estação Primeira de Mangueira, em 30 de abril de 1929, com ele escolhendo o nome e as cores da escola, além de ser o primeiro diretor de harmonia e autor do primeiro samba, “Chega de demanda”.
Três anos depois Cartola já era alvo de grandes intérpretes, como Mário Reis que subiu o Morro de Mangueira e comprou dele os direitos autorais do samba “Que infeliz sorte”. A música acabou sendo gravada por Francisco Alves, pois não se adaptou à voz de Mário Reis. Cartola vendeu outros sambas para Francisco Alves, cedendo apenas os direitos sobre vendagem, conservando a autoria, como o caso de “Divina dama”, “Qual foi o mal que eu fiz?” e “Não faz, amor”, em parceria com Noel Rosa, gravadas em 1933. E ainda neste ano Carmem Miranda gravou dele “Tenho um novo amor”. Francisco Alves e Mário Reis gravaram outro samba dele, “Perdão, meu bem”. É dessa época a amizade de Cartola com Noel Rosa, com quem compôs “Tenho um novo amor”, cantada por Carmen Miranda, e “Não faz, amor” e “Qual foi o mal que eu te fiz”, interpretadas por Francisco Alves.
Teve curta duração o trio vocal e instrumental que Cartola criou com Wilson Batista e Oliveira da Cuíca. Em 1936, em parceria com Carlos Cachaça e Zé da Zilda, ele teve premiado o samba “Não quero mais” no desfile da Mangueira, e, em seguida, gravado por Araci de Almeida e, em 1973, por Paulinho da Viola. Na Rádio Cruzeiro do Sul, em 1941, com Paulo da Portela (fundador da escola de samba Portela), criou o programa A Voz do Morro, apresentando sambas inéditos, cujos títulos eram dados pelos ouvintes. Em 1942, com Paulo da Portela e Heitor dos Prazeres, formou o Grupo Carioca, fazendo apresentações em São Paulo.
Fora de cena por alguns anos, Cartola reapareceu em 1948, com o samba-enredo “Vale do São Francisco”, parceria com Carlos Cachaça, que deu à Mangueira o título de campeã. Casou com Zica, com quem abriu o restaurante Zicartola, na Rua da Carioca, no Centro do Rio de Janeiro, que servia boa comida e tinha a presença de expressivas figuras do samba. O samba dele “Tive sim”, em 1968, alcançou o quinto lugar na I Bienal do Samba, da TV Record, em São Paulo.
O primeiro disco
Pouco antes de completar 66 anos Cartola gravou o primeiro disco, lançado por iniciativa do pesquisador musical, produtor e publicitário Marcus Pereira. O disco, que recebeu vários prêmios e reúne uma coleção de obras-primas de Cartola e instrumentistas de primeira linha. Cartola canta “Acontece”, “Tive sim” e “Amor proibido” (de sua autoria), “Disfarça e chora” e “Corra e olhe o céu” (parceria com Dalmo Castelo), “Sim” (Oswaldo Martins), “O sol nascerá” (Élton Medeiros), “Alvorada” (Carlos Cachaça e Hermínio de Carvalho), “Festa da vinda” (Nuno Veloso), “Quem me vê sorrindo” (Carlos Cachaça) e “Ordenes e farei” (Aluizio).
Em 1976 lançou o segundo disco. O sucesso foi puxado por uma de suas mais famosas criações: “As Rosas Não Falam“. Ainda no seu repertório interpreta “Minha”, “Sala de recepção”, “Aconteceu”, “Sei chorar”, “Cordas de aço” e “Ensaboa”. Gravou “Preciso me encontrar” (Candeia), “Senhora tentação” (Silas de Oliveira) e “Pranto de poeta” (Nelson Cavaquinho e Guilherme de Brito). Naquele ano Clementina de Jesus gravou “Garças pardas” (parceria com Zé da Zilda).
No ano de 1977, a gravadora RCA lançou Verde que te quero rosa, seu terceiro disco, com igual sucesso de crítica. Um dos grandes destaques do disco é “Autonomia”, arranjo do maestro Radamés Gnatalli. Do disco faz parte o samba-canção “Autonomia”, além de “Nós Dois”, feita para o casamento com Zica, em 1964. Recriou “Escurinha”, samba de Geraldo Pereira, falecido prematuramente em consequência de uma briga com Madame Satã. Estão presentes ainda os sambas “Desfigurado”, “Grande Deus”, “Que é feito de você” e “Desta vez eu vou” (todos de sua autoria), “Fita meus olhos” (com Osvaldo Vasques) e “A canção que chegou” (com Nuno Veloso).
Ano que vem, Cartola completaria 110 anos. A obra musical dele é cada vez mais cultuada por novos sambistas. Em 1988, para comemorar o octogésimo aniversário de seu nascimento, a Som Livre lançou o songbook Cartola – Bate Outra Vez, com Gal Costa, Caetano Veloso, Paulinho da Viola, Zeca Pagodinho, Luiz Melodia, Dona Ivone Lara, Beth Carvalho, Nelson Gonçalves, Paulo Ricardo e Cazuza.
A cantora Leny Andrade trouxe Cartola: 80 Anos. Marisa Monte incluiu em seu repertório o lundu “Ensaboa”, composto em 1975 e gravado pelo compositor em seu segundo LP. A cantora Claudia Telles, filha de Sylvia Telles, um dos ícones da Bossa Nova, lançou, em 1995, álbum-tributo com composições de Cartola e Nelson Cavaquinho. O CD Só Cartola foi gravado em 1998 por Elton Medeiros e Nelson Sargento. Naquele mesmo ano, o grupo Arranco (ex-Arranco de Varsóvia) lançou o álbum Samba de Cartola.
Pouco antes de sua morte, Cartola manifestou o desejo de ser enterrado sob o toque do bumbo, tocado pelo ritmista Waldemiro. Ele morreu em 30 de novembro de 1980 e, atendendo seu pedido, no dia 1º de dezembro, no funeral, Waldemiro, ritmista da Mangueira, que havia aprendido com ele a encourar o instrumento, marcou o ritmo para o coro de “As rosas não falam” cantada por parentes, sambistas, amigos, políticos e intelectuais. O mesmo ocorreu no sepultamento da mulher dele, dona Zica, em 22 de janeiro de 2003, ao som de “As rosas não falam”.
Inserção pela arte
O Centro Cultural Cartola, próximo à quadra da Mangueira, é instituição dedicada à inserção social da juventude local pela arte, educação, construção da cidadania, valorização da cultura e preparação profissional com vista ao resgate da dignidade humana. Tem, óbvio, como referência a vida e obra de Angenor de Oliveira. A instituição desenvolve atividades voltadas à capacitação profissional e artística por meio de oficinas de teatro, dança e música. Promove rodas de leitura, mostra de vídeos, debates, palestras, shows e exposições.
Duas exposições disponibilizam ao público o fruto da pesquisa sobre a obra de Cartola, realizada por sua neta Nilcemar Nogueira (atual secretária de Cultura do Município do Rio de Janeiro), e sobre o samba, resultado do trabalho de pesquisa e documentação realizado no centro, contribuindo de forma decisiva para o reconhecimento do Samba como Patrimônio Imaterial Brasileiro pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional ( Iphan).
Grande mesmo foi a interpretação de Beth Carvalho para versos tão primorosos.
Meu pai era bandolinista, cresci ouvindo as obras de Cartola em seu repertório!
Riqueza, patrimônio da nossa cultura!