Carta a Stalingrado
Os russos comemoram a liberdade de Stalingrado em janeiro de 1943
Foto: Getty Images
Carlos Drummond de Andrade
Stalingrado…
depois de Madri e de Londres, ainda há grandes cidades!
O mundo não acabou, pois que entre as ruínas
outros homens surgem, a face negra de pó e de pólvora,
e o hálito selvagem da liberdade
dilata os seus peitos, Stalingrado,
seus peitos que estalam e caem
enquanto outros, vingadores, se elevam.
A poesia fugiu dos livros, agora está nos jornais.
Os telegramas de Moscou repetem Homero.
Mas Homero é velho. Os telegramas cantam um mundo
[novo
que nós, na escuridão, ignorávamos.
Fomos encontra-lo em ti, cidade destruída,
na paz de tuas ruas mortas mas não conformadas,
no teu arquejo de vida mais forte que o estouro das
[bombas,
Na tua fria vontade de resistir.
Saber que resistes.
Que enquanto dormimos, comemos e trabalhamos,
[resistes.
Que quando abrimos o jornal pela manha teu nome
[(em ouro oculto) estará firme no alto da página.
Terá custado milhares de homens, tanques e aviões, mas
[valeu a pena.
Saber que vigias, Stalingrado,
Sobre nossas cabeças, nossas prevenções e nossos confusos
[pensamentos distantes
dá um enorme alento à alma desesperada
e o coração que duvida.
Stalingrado, miserável monte de escombros, entretanto
[resplandecente!
As belas cidades do mundo contemplam-te em pasmo e
[silêncio.
Débeis em face do teu pavoroso poder,
Mesquinhas no seu esplendor de mármores salvos e rios
[não profanados,
As pobres e prudentes cidades, outrora gloriosos
[entregues sem luta,
Aprendem contigo o gesto de fogo.
Também elas podem esperar.
Stalingrado, quantas esperanças!
Que flores, que cristais e músicas o teu nome nos
[derrama!
Que felicidade brota de tuas casas!
De uma apenas resta a escada cheia de corpos;
De outras o cano de gás, a torneira, uma bacia de criança.
Não há mais livros para ler nem teatros funcionando
[nem trabalho nas fábricas,
todos morreram, estropiaram-se, os últimos defendem
[pedaços negros de parede,
mas a vida em ti é prodigiosa e pulula como insetos ao
[sol,
ó minha louca Stalingrado!
A tamanha distância procuro, indago, cheiro destroços
[sangrentos,
Apalpo as formas desmanteladas de teu corpo,
Caminho solitariamente em tuas ruas, onde há mãos
[soltas e relógios partidos,
Sinto-me como uma criatura humana, e que és tu,
[Stalingrado, senão isto?
Uma criatura que não quer morrer e combate,
Contra o céu, a água, o metal, a criatura combate,
Contra milhões de braços e engenhos mecânicos a
[criatura combate,
Contra o frio, a fome, contra a morte a criatura
[combate,
E vence.
As cidades podem vencer, Stalingrado!
Penso na vitória das cidades, que se amarão e se defenderão
[contra tudo.
Em teu chão calcinado onde apodrecem cadáveres,
A grande Cidade de amanhã erguerá a sua Ordem.