Carlos Drummond de Andrade – O Farmacêutico do Ar
Foto: Acervo BN/ Cristina Silveira
Por Marcelo Dolabela*
As coisas esquecidas, abandonadas, sublimadas, desprezadas voltam em forma de lembranças (esquecer para lembrar), de chistes (trocadalho do carilho), de insights (familiares / estranhos), de metáforas e de metonímias (deslocamentos e condensações).
Alguém já disse, se não me falha a memória, que “o poeta é um rancoroso e o resto são nuvens”,
A vida que poderia ter sido e não foi.
A vida que não pôde ter sido e foi o que se viveu.
Uma vida-símile de uma vida.
Um símile de uma vida de uma vida.
Assim foi a relação de Carlos Drummond de Andrade com sua formação acadêmica (profissional). Concluiu o curso de Farmácia, em 1925, pela Escola de Odontologia e Farmácia de Belo Horizonte, atual UFMG, mas nunca atuou em nenhuma posição do jogo da botica.
Não viveu entre cadinhos, grais e pistilos, bulas, cápsulas, lâminas, microscópios, laboratórios, vigilâncias, frascos, êmulos, ampolas, receitas e balcões.
Foi um “farmacêutico do ar”. Revelou, desnudou, curou e infectou: almas, mentes, corações, histórias, utopias e vidas. Com e por palavras e não placebos. Palavras e não alopatias. Palavras-fármacos vitais.
Fugiu do monstro das drogas e das drogarias e mergulhou no veneno monstruoso do amor à poesia. Talvez, antecipando e antevendo Maria Rita Kehl, via José Maria Cançado: “o amor é uma droga pesada”. Um led zeppelin. Um heavy metal. O que diríamos a e da poesia?
Drummond fugiu para o fértil território das palavras, tentando abandonar as coisas lindas do juramento da profissão que, no Brasil, tem como patrono, sábia e curiosamente, um dos nossos pais da poesia, o padre-poeta, o padre-boticário, o padre-palavra: José de Anchieta.
Drummond carregou, em sua escrita, o escorpião incrustado dos éteres e das infusões. Em sua gigante sombra, seguia o farmacêutico, que imaginou não ter sido. Que imaginou não existir.
Em um rápido bosquejo em sua obra poética, encontramos, pelo menos, 30 poemas que fazem referências diretas ao universo do “anel de topázio imperial amarelo”.
De todos os textos, um, sem dúvida, é uma espécie de arte poética alquímica-drummondiana ao ofício: “Doutor mágico”, do livro Boitempo II / Menino antigo, de 1973.
O título já é um achado e uma chave. Síntese de dois mundos: o científico e racional (doutor) com o fantasioso e ilusório (mágico).
O mote é o vade mecum médico-popular “Chernoviz”, de Piotr Czerniewicz, abrasileirado por Pedro Luiz Napoleão Chernoviz, que servia de “pau pra toda obra” para médicos, enfermeiros, farmacêuticos, parteiras, práticos, pais de santo, curandeiros, curiosos e quejandos. A qualquer dúvida, bastava abrir o alfarrábio, que lá estava a “solucionática”.
Era um oráculo que unia versos e universos, resolvia questões e curava quase tudo e quase todos de tudo e de quase todos os males, amor não resolvidos, doenças, enfermidades, tristezas e quebrantos.
Eis o poema:
Doutor Mágico
Carlos Drummond de Andrade
Dr. Pedro Luís Napoleão Chernoviz
tem a maior clientela da cidade.
Não atende a domicílio
nem tem consultório.
Ninguém lhe vê a cara.
Misterioso doutor de capa preta
ou invisível,
esse que cura todas as moléstias.
(de preferência, as incuráveis)
socorre presto os afogados
asfixiados
assombrados de raios
sem desprezar defluxo, catapora,
sapinho, panariz, cobreiro,
bicho-de-pé, andaço, carnegão
e não cobra nada
e não cobra nada,
nem no fim do ano?
É só abrir o livro e achar a página.
ps: este pequeno texto é uma homenagem a meu avô Aristides Pina Dolabela, contemporâneo de CDA no Colégio Arnaldo e na escola de Farmácia; e a minha avô Hilda Mota Dolabela, prática em farmácia e matriarca da minha família.
* Marcelo Dolabela (1957–2020) escritor, jornalista, artista muldimidia, roteirista, músico, compositor e professor (Foto: Foto: Ivan Chagas)
** artigo publicado originalmente no jornal O Cometa Itabirano









