Carlos Drummond de Andrade e o humour
Arte: Brus Rubio Churay (1983-), indígena do Peru
Por José Paulo Paes
Observa Manuel Villegas Lopes que: “quem procura diretamente o puro valor estético, será um artista puro; quem procura manifestá-lo pelos temas do nosso tempo, com o que constistue nossa vida, nossa luta e a luta dos demais, será um artista social. E, ademais do valor eterno, estará na obra de arte a época em que foi criada e à qual correspondia”.
Em linhas gerais, a poesia de Carlos Drummond de Andrade se insere na categoria de arte social – termo perigoso pelas confusões que gera, mas válido ainda por inexistência de substituto eficiente.
Porque é necessário estabelecer sempre distinção entre arte tematicamente social e arte socializante ou funcional; por exemplo, eu incluiria na segunda espécie a poesia efetivamente revolucionária, como a de Castro Alves e a de Maiakovsky, considerando que desempenharam papel politico militante numa época revolucionária, num determinado instante histórico.
A poesia Drummondiana revela, desde logo, um engangement, uma posição em face da realidade político-social do tempo, e a considera de um ponto de vista determinado:
O poeta
declina de toda responsabilidade
na marcha do mundo capitalista
e com suas palavras, intuições, símbolos e outras
armas
promete ajudar
a destruí-lo
como uma pedreira, uma floresta
um verme.
Mas a afirmativa não basta; é mister considerar mais de perto os detalhes dessa visão das coisas, verificar a maneira como se realiza, poeticamente, sua promessa de destruição.
Assinale-se, inicialmente, que C.D.A. não considera a realidade imediata, circunstancial, nem os fatos menores que se desenrolam à sua volta. Valendo-se de prerrogativas estéticas, transpõe o social para um plano de abstração, deformando as situações concretas em mitos, em símbolos, em equivalentes de raiz ideal, senão metafisica.
A esse respeito, convém transcrever um juízo de Héctor P. Agosti, referente à “subjetividade porfiadíssima que abominava a realidade e convertia o artista em supremo demiurgo dos objetos, nascidos nele antes de existir materialmente fora dele, e aureolados, por ele, de uma fria vibração abstrata que aspirava à eternidade emocional”.
O poeta Carlos Drummond de Andrade capta o real, mesmo aquele de raiz política ou limitado por implicações ideológicas, somente depois de fazê-los passar pelo crivo de sua subjetividade, de seus prejuízos pessoais, de modo que a realidade transmitida pelo poema é uma realidade abstrata e parcial no seu significado.
Outro seria o caminho percorrido por um poeta revolucionário, como Maiakovsky, por exemplo. Seu verso ligava-se indissoluvelmente à luta política objetiva, fugindo de toda generalização para considerar a realidade social de um ângulo mais próximo, não-abstrato ou idealmente mitológico.
Daí o inferir-se que, apesar de seus detalhes temáticos, a poesia de Carlos Drummond de Andrade é, de certo modo, uma poesia de fuga, pelo abuso da abstração, filiado evidentemente à metafisica angustiada que preconiza a intuição, a prioridade absoluta do subjetivo, contrapondo-a a limitação inevitável do mundo objetivo.
Por outro lado, deve-se levar em conta o comportamento do autor, suas reações emocionais ou conceituais, relativamente ao conflito social de nosso tempo. Em primeiro lugar, a insistência na sua incapacidade de luta, a indecisão em participar, pela ação, de um combate que julga necessário e justo (Poesia até agora, pag. 216):
Coração orgulhoso, tens pressa em confessar tua
[derrota
e adiar para outro século a felicidade coletiva.
Aceitas a chuva, a guerra, o desemprego e a injusta
[distribuição
porque não podes, sozinho, dinamitar a ilha de
[Manhattan.
Ou a angústia, o pessimismo em face de uma cidade futura que ele deseja mas teme:
No teu tempo nem haverá beijos.
Os lábios serão metálicos,
civil, e mais nada, será o amor
dos indivíduos perdidos na massa
e só uma estrela
guardará o reflexo
do mundo esvaído
(aliás sem importância).
Ou, finalmente, os reiterados auto-convites à fuga, que surgem repetidamente nos poemas de A Rosa do Povo (pag. 149-159)
Todas essas contradições convergem para uma afirmativa: a de que Carlos Drummond de Andrade não é o poeta revolucionário que o sr. Álvaro Lins descobriu, senão o poeta nitidamente representativo da pequena-burguesia, de seus dilemas e de suas indecisões em face de uma escolha politica frequentemente difícil e dolorosa. Expliquemo-nos melhor.
Jean Paul Sartre refere-se com propriedade ao dilema do escritor de nossos dias, chamando-o de “burguês em crise de ruptura de classe”, Condicionado por uma educação classista que determinou sua sensibilidade, o automatismo reflexivo de suas reações emocionais, mas solicitado pela inteligência a romper esses laços em benefício de ação revolucionária vinculada a uma classe antagônica em quem reconhece a verdade histórica, o intelectual contemporâneo (pelo menos em grande parte) levita angustiosamente entre dois extremos, com sua personalidade total dicotomizada em razão e emoção, já que não pode se aproximar da classe desejada, por todos os prejuízos de sua educação.
Carlos Drummond de Andrade ilustra bem o dilema, quando confessa:
Assim nascemos burgueses.
Nosso caminho: traçado.
Existe o dilema fundamental que explica quase satisfatoriamente as contradições da poesia drummondiana: a oposição entre inteligência e sensibilidade, a incapacidade da segunda em obedecer os comando da primeira.
Ou, valendo-se de uma imagem do poeta, a luta entre o oficial administrativo e o antigo menino rebelde que reivindica um reino abstrato: o território perdido da infância onde:
devolve-se a infância
a troco de nada
e o espaço reaberto
deixará passar
os menores homens,
as coisas mais frágeis…
Nota: – Os números das páginas onde se encontram os poemas aqui citados referem-se a Poesia até Agora, Rio, 1948.
Todavia, deve-se assinalar que o jogo dialético entre razão e emoção não constitue antinomia mecânica em que uma das forças anule a outra ou cuja resultante seja a soma vetorial de dois elementos exclusivos. Pelo contrário, trata-se de uma unidade dialética, de uma interpenetração, de mútuo condicionamento de forças cuja síntese é realidade de ordem superior, participando simultaneamente da tese e da antítese.
Assim, a sensibilidade – fixadora de experiência vital inconsciente, condicionada por situações econômicas e sociais –, se bem que orientada relativamente pela razão, influi por sua vez sobre ela, limitando-a em sua liberdade conceptiva.
O artista burguês, se consegue determinado nível de independentização das influências de classe, graças à inteligência crítica, dificilmente alcança ajuste entre suas concepções heréticas e uma sensibilidade tradicional, definida por fatores alheios à sua vontade.
E a arte, nascida do binómio razão-emoção, necessariamente reflete tal condição.
Isto esclarecido, vejamos sumariamente as funções de humour na poesia de C.D.A.
Ensina Manuel Villegas Lopes que o humorismo é a maneira de expressar alguma coisa além do riso mesmo. Essa alguma coisa, pode assumir amplo significado, atribuindo assim ao humorismo um campo de movimentação bastante extenso.
Se o riso é utilizado como mecanismo expressivo de uma ideia, tem-se a farsa. Os personagens de uma farsa são símbolos de conceitos ou sistema de conceitos a-priori, que o artista se propõe concretizar por um procedimentos estético cuja base é o riso. Mas, apesar de toda sua possível humanidade, os personagens da farsa são inevitavelmente bonecos, interpretando um papel de ante-mão estabelecido.
A respeito, veja-se “Les Caves du Vatican”, de André Gide, ou certos detalhes da obra romanesca de Aldous Huxley, onde os personagens – como bem assinalou certo crítico – são autênticos silogismos ambulantes.
Se o riso serve, porém, de veiculo a uma emoção, esta será prova de que o exposto pelo riso é “a vida total de um homem, sem limitações”. Um homem acionado por causas psicológicas e concretas, não um boneco a serviço de conceitos anteriores.
Nessa hipótese, o humorismo perde todo vestígio de esquecimento expositivo, para ganhar máxima amplitude artística: a de instrumento analítico, por cujo intermédio o artista considera a realidade humana, transpondo-a depois ao plano da arte, amalgamada a riso.
Observe-se finalmente que o humour é sempre procedimento critico condicionado e manejado por uma sensibilidade e uma inteligência. Com ele, o artista deforma certos aspectos do real, em função de um quadro de valores morais, que se articula a um quadro simultâneo de valores estéticos.
C.D.A. utilizou o humour em todas as suas modalidades – do poema-piada modernista ao sorriso doloroso dos versos mais recentes – visando a revelação total que Villegas Lopes preconiza, pelo uso da emoção humana.
Tal presença do humour, explicável por razões de ordem extra-poética, justifica-se antes como solução para a antinomia sensibilidade-inteligência; uma solução intelectual da razão exercida sobre coisas e sentimentos, revelando-se por forma artistica profundamente lúcida.
A capacidade de crítica moral do humour, ao lado de suas possibilidades puramente estéticas, justificam-no nos quadros da poética drummondiana.
Por seu intermédio, o poeta deforma aqueles aspectos da realidade interior ou exterior que contradigam seus valores morais, anulando-os (os aspectos) pois, consequentemente. Em primeiro lugar, a realidade capitalista que o poeta recusa com sarcasmo:
E dentro do pranto minha face trocista
meu olho que ri e despreza,
minha repugnância total por vosso lirismo deteriorado
que polui a essência mesmo dos diamantes.
Depois, a realidade interior, em seus pontos de confluência com a realidade burguesa, ou na sua incapacidade de luta producente contra essa última realidade:
Inútil conservar
a ignóbil mão suja
posta sobre a mesa.
Depressa cortá-la,
fazê-la em pedaços
e jogá-la ao mar.
Se na crítica ao mundo capitalista, o humour exerce função de arma ofensiva, na crítica ao comportamento pessoal, funciona como arma defensiva: a inteligência previne-se da emoção que tenta amarrá-la a um mundo inaceitável, anulando tal movimento retroativo, policiando rigorosamente toda exteriorização sentimental.
[O Dia. Suplemento, 28/3/1948. Hemeroteca BN-Rio – Pesquisa: Cristina Silveira]