Carlos Cruz e Juvêncio Mazzarollo: da denúncia das esmeraldas à última prisão política no fim do regime militar
Fotos: Reprodução/ Acervo: O Cometa Itabirano
Os casos das esmeraldas que tentou calar o Cometa, e da corrupção de outro ministro no Paraná, que culminou na prisão do denunciante
Valdecir Diniz Oliveira*
Em julho de 1981, o jornalista mineiro Carlos Cruz, diretor do irreverente e combativo jornal O Cometa Itabirano, viu sua liberdade de expressão ameaçada por forças que insistiam em controlar a imprensa, já no fim da ditadura militar (1964-85), mesmo na iminência da abertura democrática.
A publicação itabirana denunciou um esquema que envolvia o então ministro das Minas e Energia, César Cals, suspeito de se beneficiar de um presente milionário, que incluía um colar de esmeraldas, ofertado por empresários interessados na liberação de uma mina em Itabira. A denúncia, corajosa e embasada, provocou a reação imediata do então ministro do regime militar.
A Polícia Federal iniciou um inquérito com base na Lei de Segurança Nacional (LSN), reunindo acusações contra Cruz e colegas da Tribuna da Imprensa por “atentado à ordem pública”.
Entre 1981 e 1983, os jornalistas enfrentaram um processo na IV Auditoria Militar de Juiz de Fora, com direito a diligências intimidatórias, desaparecimento de provas e tentativas de censura jurídica.
No entanto, foram absolvidos por unanimidade, numa rara vitória da liberdade de imprensa sobre o aparato repressivo ainda ativo naquela conjuntura, em que se processava, ainda titubeante, a abertura lenta e gradual do regime militar para a democracia – e que só veio a se consolidar de fato com a Constituição de 1988, quando enfim foram restabelecidas as eleições diretas para presidente e governadores.

Juvêncio Mazzarollo, o jornalista que enfrentou a cela por denunciar corrupção na Itaipu Binacional
Enquanto Carlos Cruz resistia nos tribunais militares em Minas Gerais, o jornalista Juvêncio Mazzarollo, gaúcho radicado em Foz do Iguaçu, Paraná, travava uma batalha ainda mais dura contra o mesmo sistema repressivo.
Editor do jornal Nosso Tempo, fundado em 1980 com a missão de “resistir até o limite”, Juvêncio ousava denunciar aquilo que muitos evitavam dizer o nome por medo de represárias: grilagens de terra, repressão local e os bastidores obscuros da construção da Usina de Itaipu.
Suas reportagens incomodaram autoridades militares, políticos locais e interesses econômicos poderosos, sobretudo o então ministro do Interior, Mário Andreazza, cuja pasta tinha influência direta sobre a ocupação fundiária e os grandes projetos de infraestrutura do regime.
Embora não presidisse formalmente a Itaipu Binacional, cargo ocupado por José Costa Cavalcanti, Andreazza foi citado nas denúncias de Mazzarollo como figura central na articulação política que sustentava os bastidores da obra.
O jornalista apontava esquemas de corrupção, esbanjamento de recursos públicos e grilagem de terras em áreas estratégicas da usina, revelando conexões entre empreiteiras, militares e setores do governo federal.
Essas denúncias foram reunidas posteriormente no livro A Taipa da Injustiça, escrito por Mazzarollo durante o cárcere, onde ele detalha o “holocausto ecológico” e o “drama social” provocado pela construção da usina.
O nome de Andreazza aparece como símbolo do aparato político que sustentava a repressão e silenciava vozes críticas. A repercussão das denúncias incomodou profundamente o regime militar, que reagiu com a prisão do jornalista e a tentativa de deslegitimar seu trabalho.
Em abril de 1981, foi intimado pela Polícia Federal. Em 1982, foi preso com base na LSN, acusado de incitar subversão por meio da imprensa.
Ao contrário de Cruz, Juvêncio permaneceu encarcerado por quase dois anos, até dezembro de 1984, em pleno governo Figueiredo, quando o país se anunciava em transição democrática.
Na prisão, Mazzarollo protagonizou duas greves de fome como forma de protesto. Sua condição comoveu a Anistia Internacional, que passou a acompanhar o caso e pressionar por sua libertação.
Juvêncio escreveu textos durante o cárcere, circulados clandestinamente, que denunciavam a repressão e defendiam o papel da imprensa livre como pilar democrático.
Sua libertação foi mais do que pessoal – foi simbólica: Mazzarollo ficou conhecido como o último preso político do Brasil, num momento em que a ditadura agonizava, mas ainda tentava calar vozes dissonantes.
Juvêncio Mazzarollo faleceu em 5 de junho de 2014, aos 70 anos, vítima de um acidente vascular cerebral. Estava internado havia dez dias no Hospital Ministro Costa Cavalcanti, em Foz do Iguaçu, onde residia. Seu corpo foi sepultado em Veranópolis (RS), sua cidade natal.

Itaipu, repressão e a luta pelo território
A construção da Usina de Itaipu, apresentada pelo regime como “projeto do século”, tinha um lado sombrio. Mais de 42 mil pessoas foram deslocadas de suas terras.
Comunidades foram removidas à força de uma área cultivada em “terra roxa”, entre Foz do Iguaçu e Guaíra, no Paraná, enquanto a grilagem de terras virou prática comum.
Juvêncio apoiava o acampamento de agricultores em frente à sede da Itaipu Binacional, uma mobilização que pode ser considerada a primeira dos “sem terra”, ou em vias de se tornar pela iminente expulsão e grilagem, que durou 54 dias e foi duramente reprimida.
Seu jornal se tornou referência na defesa dos atingidos e uma das poucas fontes independentes sobre os conflitos fundiários e ambientais do Oeste do Paraná.
O seu livro A Taipa da Injustiça, publicado após a prisão, é um contundente documento histórico que narra a repressão regional, o autoritarismo estatal e os bastidores do “progresso” imposto pela ditadura.
Após a redemocratização, seguiu atuando como jornalista e professor em Foz do Iguaçu, mantendo seu compromisso com os direitos humanos e causas sociais.
Mesmo após sua morte, seu legado permanece vivo como símbolo da resistência democrática à ditadura militar e da coragem de enfrentar o poder quando ele se desvia da justiça.
Outros casos, mesmo cenário
A década de 1980, apesar da progressiva abertura, ainda foi marcada por episódios de censura e perseguição. Jornalistas do Diário de Minas sofreram tentativas de intimidação por denunciar esquemas no governo estadual, tendo à frente o então governador biônico Francelino Pereira.
Em São Paulo, professores da USP foram investigados por promoverem debates sobre direitos humanos. Estudantes enfrentaram batidas policiais por promoverem atos públicos, passeatas e distribuírem panfletos. O mesmo aconteceu em Minas Gerais, com forte repressão ao movimento estudantil que lutava pela redemocratização, por anistia aos presos e exilados políticos e por uma Constituição Livre, Democrática e Soberana.
Mesmo com a abertura lenta e gradual em curso, a repressão não cessou – apenas mudava de estratégia, mantendo o medo como método.
O fim de um ciclo e o início da reconstrução democrática
A absolvição de Carlos Cruz e a libertação de Juvêncio Mazzarollo foram marcos importantes de uma imprensa que resistiu à mordaça.
O jornal O Cometa Itabirano, com sua sátira feroz e coragem editorial, e Nosso Tempo, com seu engajamento comunitário e denúncia dos poderosos, entraram para a história como trincheiras da resistência.
Esses casos ilustram que a redemocratização não aconteceu de forma linear ou tranquila.
A repressão institucionalizada deixou feridas na imprensa, nos movimentos sociais, na memória coletiva. Mas também deixou nomes, como os de Cruz e Mazzarollo, que lembram que informar com independência é, muitas vezes, um ato de coragem política.
A história não se fecha com o fim da prisão de Mazzarollo. Ela continua no compromisso em manter viva a liberdade de expressão, o jornalismo investigativo e a vigilância contra o autoritarismo.
*Valdecir Diniz Oliveira é cientista político, jornalista e historiador
Boa lembrança do Mazzarollo. Mas ainda corremos o risco de uma nova velha ditadura.