“Caravanas” de Chico Buarque gera polêmica?

Lenin Novaes*

 No ano de 1966 – ano do cinquentenário da gravação do primeiro samba, “Pelo telefone”, de Ernesto Joaquim Maria dos Santos, o “Donga”, e Mauro de Almeida, em 1916 – , Chico Buarque de Hollanda lançou o primeiro disco, carimbando a capa com o próprio nome. E, no repertório, a marca da obra musical arraigada na estrutura do samba, que acompanha sua trajetória artística: “A banda”, “Tem mais samba”, “A Rita”, “Ela e sua janela”, “Madalena foi pro mar”, “Pedro pedreiro”, “Amanhã, ninguém sabe”, “Você não ouviu”, “Juca”, “Olé, olá”, “Meu refrão” e “Sonho de um carnaval”. Com “A banda”, ainda naquele ano, dividiu o prêmio de primeiro lugar com “Disparada”, de Geraldo Vandré e Théo de Barros, no II Festival de Música Popular Brasileira.

No Palácio das Artes, em BH, terá show de Chico, dia 13 de dezembro, iniciando turnê do novo CD Caravanas (Fotos: Divulgação)

E, portanto, com mais de meio século de carreira artística ele acaba de lançar o CD Caravanas, que já provoca polêmica nos versos “Quando teu coração suplicar/Ou quando teu capricho exigir/Largo mulher e filhos/E de joelhos vou te seguir” da composição “Tua cantiga”, dele em parceria com Cristovão Bastos. No entendimento de algumas militantes feministas, a música revela postura machista. Será? Sem entrar na análise da discussão, a música tem a marca da qualidade poética de Chico Buarque. Confiram, prezados leitores e leitoras da Vila da Utopia:

Quando te der saudade de mim/Quando tua garganta apertar/Basta dar um suspiro/Que eu vou ligeiro te consolar/Se o teu vigia se alvoroçar/E, estrada afora, te conduzir/Basta soprar meu nome/Com teu perfume pra me atrair/Se as tuas noites não têm mais fim/Se um desalmado te faz chorar/Deixa cair um lenço/Que eu te alcanço em qualquer lugar/Quando teu coração suplicar/Ou quando teu capricho exigir/Largo mulher e filhos/E de joelhos vou te seguir/Na nossa casa/Serás rainha/Serás cruel, talvez/Vais fazer manha/Me aperrear/E eu, sempre mais feliz/Silentemente/Vou te deitar/Na cama que arrumei/Pisando em plumas/Toda manhã/Eu te despertarei/Quando te der saudade de mim/Quando tua garganta apertar/Basta dar um suspiro/Que eu vou ligeiro te consolar/Se o teu vigia se alvoroçar/E, estrada afora, te conduzir/Basta soprar meu nome/Com teu perfume pra me atrair/Entre suspiros/Pode outro nome/Dos lábios te escapar/Terei ciúme/Até de mim/No espelho, a te abraçar/Mas teu amante/Sempre serei/Mais do que hoje sou/Ou estas rimas/Não escrevi/Nem ninguém nunca amou/Se as tuas noites não têm mais fim/Se um desalmado te faz chorar/Deixa cair um lenço/Que eu te alcanço em qualquer lugar/E quando o nosso tempo passar/Quando eu não estiver mais aqui/Lembra-te, minha nega/Desta cantiga que fiz pra ti”.

Caranavas tem no repertório “Blues pra Bia”, A moça do sonho”, parceria com Edu Lobo; “Jogo de bola”, “Massarandupió”, parceria com Chico Brown; “Dueto”, com a participação da neta Clara Buarque; “Casualmente”, em parceria com Jorge Helder; “Desaforos” e a música título do CD, “Caravanas”.

No contexto histórico de mais de 100 anos de samba (1916-2016), Chico Buarque é um dos artistas mais expressivo desse gênero musical. Nascido em 19 de junho de 1944, no Rio de Janeiro, passou parte da juventude em São Paulo, depois de breve estada e estudos em Roma, quando garoto, levado pelos pais: o historiador e sociólogo Sérgio Buarque de Holanda, que foi adido cultural e professor em Roma, de 1954 a 1955, e a pianista amadora Maria Amélia Cesário Alvim.

É importante analisar a conjuntura da década de 1960 para melhor entender a obra de Chico Buarque, que teve músicas censuradas e, buscando escapar da perseguição dos censores, usou o pseudônimo Julinho da Adelaide. O início dos anos 60 foi marcado com a visão de Yuri Gagarin, no espaço, a bordo da nave soviética Vostok, de que “a terra é azul”. Em Cuba, os revolucionários prenderam exilados treinados nos EUA e equipados com armamentos estadunidenses que tentaram tomar o poder a partir da invasão pela Ilha dos Porcos. No Brasil, Jânio Quadros renunciou ao cargo de presidente, com João Goulart, o vice-presidente, assumindo o poder. E o golpe civil-militar tirou João Goulart da Presidência da República. Um dos líderes do golpe, o ex-governador de Minas Gerais Magalhães Pinto disse na ocasião que “o presidente escolheu o caminho da subversão para realizar as reformas”. As tropas em Minas Gerais marcharam para o Rio.

O general Humberto de Alencar Castelo Branco – ele tinha sido empossado na chefia do Estado-Maior do Exército por João Goulart, em 13/9/1963 – , elevado pelo golpe a presidente da República, decretou o Ato Institucional Nº2, que reabriu o processo de cassações, extinguiu os partidos políticos e impôs eleições indiretas para a Presidência. Foi criado o bipartidarismo: Movimento Democrático Brasileiro (MDB), de oposição; e Aliança Renovadora Nacional (Arena), representando a situação.

O então ex-ministro da guerra marechal Artur da Costa e Silva foi feito presidente da República, no Colégio Eleitoral. Antes de entregar o cargo ao sucessor, Castelo Branco promulgou nova Constituição e mudou a moeda brasileira para cruzeiro novo. Ele morreu alguns meses depois, em acidente aéreo, quando o aparelho no qual viajava se chocou com avião da FAB. .O Ato Institucional Nº5 foi decretado em 13 de dezembro de 1968, colocando o Congresso em recesso por tempo indeterminado.

O fato marcante na história da música aconteceu no ginásio do Maracanãzinho, no final do festival que definiu “Sabiá”, de Tom Jobim e Chico Buarque, em 1º lugar, e “Pra não dizer que não falei das flores (Caminhando)”, de Geraldo Vandré, em 2º lugar. O público, que exaltava a canção de Vandré, talvez, pelo posicionamento mais direto contra a ditadura, vaiou o júri. Ele próprio defendeu a dupla, afirmando que “Antônio Carlos Jobim e Chico Buarque de Hollanda merecem o nosso respeito. A nossa função é fazer canções, a função de julgar, neste instante, é do júri que ali está. Pra vocês que continuam pensando que me apoiam vaiando… Tem uma coisa só mais. A vida não se resume em festivais”.

O general Emílio Garrastazu Médici substituiu o marechal Costa e Silva na presidência da República; Pelé marcou o milésimo gol; o embaixador estadunidense Charles Burke Elbrick foi trocado por 15 presos políticos; Carlos Marighela, líder da Aliança Libertadora Nacional (ALN), foi assassinado a tiros numa emboscada policial perpetrada pelo delegado de polícia Sérgio Fleury. E a ditadura teve fim em 1985, cujo período foi marcado por fatos de triste lembrança.

DIVERSIDADE QUALIFICADA

No Rio, a temporada será de 4 a 21 de janeiro. E em SP de 1º a 11 de março e de 22 de março a 1º de abril

Chico Buarque é autor centenas de canções, tendo alguns parceiros. Fez versões, adaptações e compôs para o teatro e cinema. As músicas estão gravadas em mais de 40 álbuns, organizados por gravações ao vivo, coleções, compactos, tributos e discos de outros intérpretes dedicados ao compositor. A obra dele é uma das maiores riquezas que a cultura brasileira produziu até hoje, diversificada e qualificada.

Em 1965, a pedido do diretor do Teatro da Universidade Católica de São Paulo, Chico Buarque musicou o poema Morte e Vida Severina, de João Cabral de Melo Neto. Em 1966 fez o primeiro trabalho para cinema, compondo para Anjo assassino, de Dionisio Azevedo. Em 1980 foi exibido o documentário Certas palavras, de Mauricio Beiru, sobre sua vida. Escreveu os roteiros de Os saltimbancos trapalhões, de J. B. Tanko e Ópera do malandro, de Ruy Guerra. Como ator participou de Garota de Ipanema, de Leon Hirzman; Quando o carnaval chegar, de Cacá Diegues – para o qual compôs diversas canções; Vai trabalhar vagabundo II – A volta, de Hugo Carvana; Ed Mort, de Alain Fresnot; O mandarim, de Júlio Bressane; Água e sal, de Teresa Villaverde.

Além de compor canções para filmes participou de diversos documentários: O povo brasileiro, de Isa Grinspum Ferraz; Raízes do Brasil, uma cinebiografia de Sérgio Buarque de Holanda, de Nelson Pereira dos Santos; Vinicius de Moraes, de Miguel Faria Jr.; Fados, de Carlos Saura; Maria Bethânia: música é perfume, de Georges Gachot; O Sol – Caminhando contra o vento, de Tetê Moraes, Martha Alencar; Oscar Niemeyer – A vida é um Sopro, de Fabiano Maciel; e Palavra encantada, de Helena Solberg.

Ainda adolescente publicou as primeiras crônicas no Verbâmidas, jornal do Colégio Santa Cruz. Em 1966 publicou em O Estado de S.Paulo o conto Ulisses, incorporado depois no primeiro livro chamado A banda, que traz os manuscritos das primeiras canções. Em 1974 saiu a novela pecuária Fazenda Modelo. Em 1979 foi editado Chapeuzinho amarelo e, em 1981, A bordo do Rui Barbosa, poema da década de 60 ilustrado por Vallandro Keating. A partir do início dos anos 80, Chico vem alternado a produção musical com a literária: Estorvo (1991), Benjamim (1995), Budapeste (2003). Em 2009 publicou o quarto romance da nova fase, Leite derramado.

Do vasto repertório de músicas de Chico Buarque, sinalizado no primeiro disco, onde se destaca “Pedro pedreiro”, “A banda” e outras, particularmente, “Meu refrão” aponta a linha de conduta artística mais próxima do seu perfil. Aliás, no começo, ele foi comparado com Noel Rosa. Nenhuma coisa nem outra. Nem o fato de ambos terem abandonado o curso acadêmico: Noel, a Medicina e, Chico, a Arquitetura.

“Quem canta comigo, canta o meu refrão/Meu melhor amigo é meu violão/Meu melhor amigo é meu violão/Já chorei sentido de desilusão/Hoje estou crescido/Já não choro não/Já brinquei de bola, já soltei balão/Mas tive que fugir da escola/Pra aprender essa lição/Quem canta comigo, canta o meu refrão/Meu melhor amigo é meu violão/Meu melhor amigo é meu violão/O refrão que eu faço é pra você saber/Que eu não vou dar braço pra ninguém torcer/Deixa de feitiço/Que eu não mudo não/Pois eu sou sem compromisso, sem relógio e sem patrão/Quem canta comigo, canta o meu refrão/Meu melhor amigo é meu violão/Meu melhor amigo é meu violão/Nasci sem sorte/Moro num barraco/Mas meu santo é forte/O samba é meu fraco/No meu samba eu digo o que é de coração/Mas quem canta comigo, canta o meu refrão/Quem canta comigo, canta o meu refrão/Meu melhor amigo é meu violão/Meu melhor amigo é meu violão”.

Também o rótulo de compositor de protesto não cabe à cabeça de Chico Buarque. É um cidadão, pode-se dizer medianamente organizado, sem militância orgânica partidária. Tem a exata dimensão de seu engajamento nas atividades culturais e políticas.  Na obra dele, claro, estão refletidas questões de interesse geral, como parte de sua trajetória de vida. E sempre enfatizou, como, por exemplo, com “Angélica”, de 1977, e que faz referência às mulheres que perderam os filhos durante o período da ditadura.

Chico Buarque partiu do caso da estilista Zuzu (Zuleika) Angel Jones, cujo filho Stuart Edgar Angel Jones é considerado desaparecido desde 1971, aos 26 anos de idade. Ele casou com Sônia Maria Morais Angel Jones, morta pelos militares. Stuart estudava Economia na UFRJ – Universidade Federal do Rio de Janeiro, integrava o Movimento Revolucionário 8 de Outubro (MR-8) e foi preso por volta das 9 horas de 14 de junho de 1971, no Rio de Janeiro, por agentes do Centro de Informações da Aeronáutica (CISA).

À noite, depois de sessões de tortura, foi amarrado à traseira de um jeep com a boca colada no cano de descarga do veículo e arrastado pelo pátio do quartel, o que causou sua morte por asfixia e intoxicação por monóxido de carbono. O caso foi contado pelo preso político Alex Polari de Alverga, testemunha da prisão e tortura até a morte de Stuart Jones, tendo, inclusive, presenciado a cena em que foi arrastado pelo jeep. Consta que o corpo do jovem, assim como de muitos outros, foi lançado ao mar. Confira a letra de “Angélica”:

“Quem é essa mulher/Que canta sempre esse estribilho/Só queria embalar meu filho/Que mora na escuridão do mar/Quem é essa mulher/Que canta sempre esse lamento/Só queria lembrar o tormento/Que fez o meu filho suspirar/Quem é essa mulher/Que canta sempre o mesmo arranjo/Só queria agasalhar meu anjo/E deixar seu corpo descansar/Quem é essa mulher/Que canta como dobra um sino/Queria cantar por meu menino/Que ele já não pode mais cantar/Quem é essa mulher/Que canta sempre esse estribilho/Só queria embalar meu filho/Que mora na escuridão do mar”.

Bem, prezados leitores e leitoras, sugiro que mergulhem de cabeça nas composições de Chico Buarque, pois creio que o prazer será imenso.

*Lenin Novaes, jornalista e produtor cultural. É co-autor do livro Cantando para não enlouquecer, biografia da cantora Elza Soares, com José Louzeiro. Criou e promoveu o Concurso Nacional de Poesia para jornalistas, em homenagem ao poeta e jornalista Carlos Drummond de Andrade. É um dos coordenadores do Festival de Choro do Rio, realizado pelo Museu da Imagem e do Som – MIS. É Assessor de Imprensa do Centro de Ciências da Saúde da Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ.

 

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1 Comentário

  1. Muito interessante saber que Chico Buarque cantou pela liberdade e agora já não há tem para novos versos apaixonados.
    Nota-se ainda saber que a mãe dele, Maria Amélia Cesário Alvim, descende de itabiranos.

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