“Caravanas” de Chico Buarque gera polêmica?
Lenin Novaes*
No ano de 1966 – ano do cinquentenário da gravação do primeiro samba, “Pelo telefone”, de Ernesto Joaquim Maria dos Santos, o “Donga”, e Mauro de Almeida, em 1916 – , Chico Buarque de Hollanda lançou o primeiro disco, carimbando a capa com o próprio nome. E, no repertório, a marca da obra musical arraigada na estrutura do samba, que acompanha sua trajetória artística: “A banda”, “Tem mais samba”, “A Rita”, “Ela e sua janela”, “Madalena foi pro mar”, “Pedro pedreiro”, “Amanhã, ninguém sabe”, “Você não ouviu”, “Juca”, “Olé, olá”, “Meu refrão” e “Sonho de um carnaval”. Com “A banda”, ainda naquele ano, dividiu o prêmio de primeiro lugar com “Disparada”, de Geraldo Vandré e Théo de Barros, no II Festival de Música Popular Brasileira.

E, portanto, com mais de meio século de carreira artística ele acaba de lançar o CD Caravanas, que já provoca polêmica nos versos “Quando teu coração suplicar/Ou quando teu capricho exigir/Largo mulher e filhos/E de joelhos vou te seguir” da composição “Tua cantiga”, dele em parceria com Cristovão Bastos. No entendimento de algumas militantes feministas, a música revela postura machista. Será? Sem entrar na análise da discussão, a música tem a marca da qualidade poética de Chico Buarque. Confiram, prezados leitores e leitoras da Vila da Utopia:
“Quando te der saudade de mim/Quando tua garganta apertar/Basta dar um suspiro/Que eu vou ligeiro te consolar/Se o teu vigia se alvoroçar/E, estrada afora, te conduzir/Basta soprar meu nome/Com teu perfume pra me atrair/Se as tuas noites não têm mais fim/Se um desalmado te faz chorar/Deixa cair um lenço/Que eu te alcanço em qualquer lugar/Quando teu coração suplicar/Ou quando teu capricho exigir/Largo mulher e filhos/E de joelhos vou te seguir/Na nossa casa/Serás rainha/Serás cruel, talvez/Vais fazer manha/Me aperrear/E eu, sempre mais feliz/Silentemente/Vou te deitar/Na cama que arrumei/Pisando em plumas/Toda manhã/Eu te despertarei/Quando te der saudade de mim/Quando tua garganta apertar/Basta dar um suspiro/Que eu vou ligeiro te consolar/Se o teu vigia se alvoroçar/E, estrada afora, te conduzir/Basta soprar meu nome/Com teu perfume pra me atrair/Entre suspiros/Pode outro nome/Dos lábios te escapar/Terei ciúme/Até de mim/No espelho, a te abraçar/Mas teu amante/Sempre serei/Mais do que hoje sou/Ou estas rimas/Não escrevi/Nem ninguém nunca amou/Se as tuas noites não têm mais fim/Se um desalmado te faz chorar/Deixa cair um lenço/Que eu te alcanço em qualquer lugar/E quando o nosso tempo passar/Quando eu não estiver mais aqui/Lembra-te, minha nega/Desta cantiga que fiz pra ti”.
Caranavas tem no repertório “Blues pra Bia”, A moça do sonho”, parceria com Edu Lobo; “Jogo de bola”, “Massarandupió”, parceria com Chico Brown; “Dueto”, com a participação da neta Clara Buarque; “Casualmente”, em parceria com Jorge Helder; “Desaforos” e a música título do CD, “Caravanas”.
No contexto histórico de mais de 100 anos de samba (1916-2016), Chico Buarque é um dos artistas mais expressivo desse gênero musical. Nascido em 19 de junho de 1944, no Rio de Janeiro, passou parte da juventude em São Paulo, depois de breve estada e estudos em Roma, quando garoto, levado pelos pais: o historiador e sociólogo Sérgio Buarque de Holanda, que foi adido cultural e professor em Roma, de 1954 a 1955, e a pianista amadora Maria Amélia Cesário Alvim.
É importante analisar a conjuntura da década de 1960 para melhor entender a obra de Chico Buarque, que teve músicas censuradas e, buscando escapar da perseguição dos censores, usou o pseudônimo Julinho da Adelaide. O início dos anos 60 foi marcado com a visão de Yuri Gagarin, no espaço, a bordo da nave soviética Vostok, de que “a terra é azul”. Em Cuba, os revolucionários prenderam exilados treinados nos EUA e equipados com armamentos estadunidenses que tentaram tomar o poder a partir da invasão pela Ilha dos Porcos. No Brasil, Jânio Quadros renunciou ao cargo de presidente, com João Goulart, o vice-presidente, assumindo o poder. E o golpe civil-militar tirou João Goulart da Presidência da República. Um dos líderes do golpe, o ex-governador de Minas Gerais Magalhães Pinto disse na ocasião que “o presidente escolheu o caminho da subversão para realizar as reformas”. As tropas em Minas Gerais marcharam para o Rio.
O general Humberto de Alencar Castelo Branco – ele tinha sido empossado na chefia do Estado-Maior do Exército por João Goulart, em 13/9/1963 – , elevado pelo golpe a presidente da República, decretou o Ato Institucional Nº2, que reabriu o processo de cassações, extinguiu os partidos políticos e impôs eleições indiretas para a Presidência. Foi criado o bipartidarismo: Movimento Democrático Brasileiro (MDB), de oposição; e Aliança Renovadora Nacional (Arena), representando a situação.
O então ex-ministro da guerra marechal Artur da Costa e Silva foi feito presidente da República, no Colégio Eleitoral. Antes de entregar o cargo ao sucessor, Castelo Branco promulgou nova Constituição e mudou a moeda brasileira para cruzeiro novo. Ele morreu alguns meses depois, em acidente aéreo, quando o aparelho no qual viajava se chocou com avião da FAB. .O Ato Institucional Nº5 foi decretado em 13 de dezembro de 1968, colocando o Congresso em recesso por tempo indeterminado.
O fato marcante na história da música aconteceu no ginásio do Maracanãzinho, no final do festival que definiu “Sabiá”, de Tom Jobim e Chico Buarque, em 1º lugar, e “Pra não dizer que não falei das flores (Caminhando)”, de Geraldo Vandré, em 2º lugar. O público, que exaltava a canção de Vandré, talvez, pelo posicionamento mais direto contra a ditadura, vaiou o júri. Ele próprio defendeu a dupla, afirmando que “Antônio Carlos Jobim e Chico Buarque de Hollanda merecem o nosso respeito. A nossa função é fazer canções, a função de julgar, neste instante, é do júri que ali está. Pra vocês que continuam pensando que me apoiam vaiando… Tem uma coisa só mais. A vida não se resume em festivais”.
O general Emílio Garrastazu Médici substituiu o marechal Costa e Silva na presidência da República; Pelé marcou o milésimo gol; o embaixador estadunidense Charles Burke Elbrick foi trocado por 15 presos políticos; Carlos Marighela, líder da Aliança Libertadora Nacional (ALN), foi assassinado a tiros numa emboscada policial perpetrada pelo delegado de polícia Sérgio Fleury. E a ditadura teve fim em 1985, cujo período foi marcado por fatos de triste lembrança.
DIVERSIDADE QUALIFICADA

Chico Buarque é autor centenas de canções, tendo alguns parceiros. Fez versões, adaptações e compôs para o teatro e cinema. As músicas estão gravadas em mais de 40 álbuns, organizados por gravações ao vivo, coleções, compactos, tributos e discos de outros intérpretes dedicados ao compositor. A obra dele é uma das maiores riquezas que a cultura brasileira produziu até hoje, diversificada e qualificada.
Em 1965, a pedido do diretor do Teatro da Universidade Católica de São Paulo, Chico Buarque musicou o poema Morte e Vida Severina, de João Cabral de Melo Neto. Em 1966 fez o primeiro trabalho para cinema, compondo para Anjo assassino, de Dionisio Azevedo. Em 1980 foi exibido o documentário Certas palavras, de Mauricio Beiru, sobre sua vida. Escreveu os roteiros de Os saltimbancos trapalhões, de J. B. Tanko e Ópera do malandro, de Ruy Guerra. Como ator participou de Garota de Ipanema, de Leon Hirzman; Quando o carnaval chegar, de Cacá Diegues – para o qual compôs diversas canções; Vai trabalhar vagabundo II – A volta, de Hugo Carvana; Ed Mort, de Alain Fresnot; O mandarim, de Júlio Bressane; Água e sal, de Teresa Villaverde.
Além de compor canções para filmes participou de diversos documentários: O povo brasileiro, de Isa Grinspum Ferraz; Raízes do Brasil, uma cinebiografia de Sérgio Buarque de Holanda, de Nelson Pereira dos Santos; Vinicius de Moraes, de Miguel Faria Jr.; Fados, de Carlos Saura; Maria Bethânia: música é perfume, de Georges Gachot; O Sol – Caminhando contra o vento, de Tetê Moraes, Martha Alencar; Oscar Niemeyer – A vida é um Sopro, de Fabiano Maciel; e Palavra encantada, de Helena Solberg.
Ainda adolescente publicou as primeiras crônicas no Verbâmidas, jornal do Colégio Santa Cruz. Em 1966 publicou em O Estado de S.Paulo o conto Ulisses, incorporado depois no primeiro livro chamado A banda, que traz os manuscritos das primeiras canções. Em 1974 saiu a novela pecuária Fazenda Modelo. Em 1979 foi editado Chapeuzinho amarelo e, em 1981, A bordo do Rui Barbosa, poema da década de 60 ilustrado por Vallandro Keating. A partir do início dos anos 80, Chico vem alternado a produção musical com a literária: Estorvo (1991), Benjamim (1995), Budapeste (2003). Em 2009 publicou o quarto romance da nova fase, Leite derramado.
Do vasto repertório de músicas de Chico Buarque, sinalizado no primeiro disco, onde se destaca “Pedro pedreiro”, “A banda” e outras, particularmente, “Meu refrão” aponta a linha de conduta artística mais próxima do seu perfil. Aliás, no começo, ele foi comparado com Noel Rosa. Nenhuma coisa nem outra. Nem o fato de ambos terem abandonado o curso acadêmico: Noel, a Medicina e, Chico, a Arquitetura.
“Quem canta comigo, canta o meu refrão/Meu melhor amigo é meu violão/Meu melhor amigo é meu violão/Já chorei sentido de desilusão/Hoje estou crescido/Já não choro não/Já brinquei de bola, já soltei balão/Mas tive que fugir da escola/Pra aprender essa lição/Quem canta comigo, canta o meu refrão/Meu melhor amigo é meu violão/Meu melhor amigo é meu violão/O refrão que eu faço é pra você saber/Que eu não vou dar braço pra ninguém torcer/Deixa de feitiço/Que eu não mudo não/Pois eu sou sem compromisso, sem relógio e sem patrão/Quem canta comigo, canta o meu refrão/Meu melhor amigo é meu violão/Meu melhor amigo é meu violão/Nasci sem sorte/Moro num barraco/Mas meu santo é forte/O samba é meu fraco/No meu samba eu digo o que é de coração/Mas quem canta comigo, canta o meu refrão/Quem canta comigo, canta o meu refrão/Meu melhor amigo é meu violão/Meu melhor amigo é meu violão”.
Também o rótulo de compositor de protesto não cabe à cabeça de Chico Buarque. É um cidadão, pode-se dizer medianamente organizado, sem militância orgânica partidária. Tem a exata dimensão de seu engajamento nas atividades culturais e políticas. Na obra dele, claro, estão refletidas questões de interesse geral, como parte de sua trajetória de vida. E sempre enfatizou, como, por exemplo, com “Angélica”, de 1977, e que faz referência às mulheres que perderam os filhos durante o período da ditadura.
Chico Buarque partiu do caso da estilista Zuzu (Zuleika) Angel Jones, cujo filho Stuart Edgar Angel Jones é considerado desaparecido desde 1971, aos 26 anos de idade. Ele casou com Sônia Maria Morais Angel Jones, morta pelos militares. Stuart estudava Economia na UFRJ – Universidade Federal do Rio de Janeiro, integrava o Movimento Revolucionário 8 de Outubro (MR-8) e foi preso por volta das 9 horas de 14 de junho de 1971, no Rio de Janeiro, por agentes do Centro de Informações da Aeronáutica (CISA).
À noite, depois de sessões de tortura, foi amarrado à traseira de um jeep com a boca colada no cano de descarga do veículo e arrastado pelo pátio do quartel, o que causou sua morte por asfixia e intoxicação por monóxido de carbono. O caso foi contado pelo preso político Alex Polari de Alverga, testemunha da prisão e tortura até a morte de Stuart Jones, tendo, inclusive, presenciado a cena em que foi arrastado pelo jeep. Consta que o corpo do jovem, assim como de muitos outros, foi lançado ao mar. Confira a letra de “Angélica”:
“Quem é essa mulher/Que canta sempre esse estribilho/Só queria embalar meu filho/Que mora na escuridão do mar/Quem é essa mulher/Que canta sempre esse lamento/Só queria lembrar o tormento/Que fez o meu filho suspirar/Quem é essa mulher/Que canta sempre o mesmo arranjo/Só queria agasalhar meu anjo/E deixar seu corpo descansar/Quem é essa mulher/Que canta como dobra um sino/Queria cantar por meu menino/Que ele já não pode mais cantar/Quem é essa mulher/Que canta sempre esse estribilho/Só queria embalar meu filho/Que mora na escuridão do mar”.
Bem, prezados leitores e leitoras, sugiro que mergulhem de cabeça nas composições de Chico Buarque, pois creio que o prazer será imenso.
*Lenin Novaes, jornalista e produtor cultural. É co-autor do livro Cantando para não enlouquecer, biografia da cantora Elza Soares, com José Louzeiro. Criou e promoveu o Concurso Nacional de Poesia para jornalistas, em homenagem ao poeta e jornalista Carlos Drummond de Andrade. É um dos coordenadores do Festival de Choro do Rio, realizado pelo Museu da Imagem e do Som – MIS. É Assessor de Imprensa do Centro de Ciências da Saúde da Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ.
Muito interessante saber que Chico Buarque cantou pela liberdade e agora já não há tem para novos versos apaixonados.
Nota-se ainda saber que a mãe dele, Maria Amélia Cesário Alvim, descende de itabiranos.