Canção de uma Cidade

Fotos: Tibor Jablonky e
Ney Strauch/IBGE/ViladeUtopia

“Penso às vezes, cruamente, que Itabira vendeu a sua alma à Companhia Vale do Rio Doce, e que esta ao retirar-se do município, o que vem fazendo ostensivamente, pela diversificação em 24 empresas subsidiarias ou afiliadas que se estendem até Carajás, no Estado do Pará, mal tem tempo para saber da existência do povo itabirano.”

Carlos Drummond de Andrade

Rapazes de Itabira pedem-me que “faça alguma coisa” em favor da sobrevivência da velha cidade, ameaçada de ruina econômica pela exaustão, que se prevê para breve, de suas reservas de minério de ferro. Que coisa? Eles não sabem, eu também não.

E parece que ninguém sabe. A exploração de minério vem sendo feita há quase 40 anos, em ritmo cada vez mais acelerado. Nesse período, Itabira gozou de algumas aparências de riqueza, suportando simultaneamente os muitos incômodos que a suposta riqueza costuma produzir.

Jornal do Brasil (RJ), 24/4/1980. BN-Rio. Pesquisa: Cristina Silveira

Na realidade, riqueza existia, e considerável, mas… exportada, em troca de benefícios fiscais que não correspondiam ao vulto do bem que o Município perdia. Direi melhor: dos bens perdidos. Porque Itabira ficou sem a sua paisagem histórica, a sua cultura, os seus hábitos simples, a sua fisionomia moral e material, o seu modo de ser.

E nesses quase 40 anos, que que é que se fez para compensar essas perdas com a implantação de uma infraestrutura de serviços e bens, e ainda com alguma coisa mais do que isso, essa coisa que torna perenes as cidades: a silenciosa e poderosa ação cultural das bibliotecas, dos centros de pesquisa, dos institutos de arte, das oficinas de criação em todos os níveis?

Apenas algumas vozes se fizeram ouvir contra o sistema de dar tudo e receber pouco, sistema que envolvia também a imprecisão das promessas. Itabira tinha um valente clube de futebol, tinha clubes e piscinas, bares, churrascarias, concurso de misses, festas de aniversário de fundação, não era o bastante?

Os antigos moradores se esqueciam de que até esses valores de superfície eram destinados mais a grande massa de moradores adventícios, que a indústria da extração lançou sobre a cidade. Os poucos milhares de habitantes tradicionais viram-se absorvidos pela multidão de funcionários, agregados, empreiteiros, trabalhadores das mais diversas categorias, que o surto de mineração trouxe consigo.

Passaram a ser minoria desprezada, sem voz ativa na comunidade, assistindo com melancolia ao despojamento das jazidas e da consciência tribal que dá unidade a um corpo comunitário.

Até que um dia vem a noticia dos técnicos: o fim das coisas. A mina do Cauê terá apenas mais 14 anos e tanto de vida útil quanto a hematita, minério rico; a da Conceição, 21 anos e meio no tocante a esse minério. Restam as reservas de itabirito, minério pobre, economicamente desinteressante, este mesmo, na mina do Piçarrão, não dura mais que três anos e meio.

A cidade estará acordando para o futuro que a espera, ou ouço apenas o coro de vozes políticas, procurando salvar as aparências depois de décadas de inércia ou indiferença? Itabira não elegeu deputados que tinham o dever de pugnar pelos seus interesses? Não foi agraciada com visitas de Presidentes da República e de governadores de Estado, que a distinguiram com os melhores sorrisos?

“Penso às vezes, cruamente, que Itabira vendeu a sua alma à Companhia Vale do Rio Doce, e que esta ao retirar-se do município, o que vem fazendo ostensivamente, pela diversificação em 24 empresas subsidiarias ou afiliadas que se estendem até Carajás, no Estado do Pará, mal tem tempo para saber da existência do povo itabirano.”

Que fazer? Pergunto a mim mesmo, se aos Governos não interessam servir a uma comunidade em declínio, que eleitoralmente pouco rendera, uma vez consumado o êxodo do exército de trabalhadores e agregados pela Vale. Não será tarde para reinvindicações? Quando se tornara realidade o Fundo de Exaustão Mineral, destinado a socorrer municípios como Itabira? Depois que o socorro mão adiantar mais nada?

Escrever essas coisas me entristece, tanto mais que vejo nos rapazes o desejo puro de “fazer alguma coisa” eficaz. E como não tenho meios de fazê-la, nas circunstâncias atuais, refugio-me no passado, alinhavando estes versos que dedico a minha querida amiga Zoraida Diniz, ser musical que me restitui a minha, a nossa antiga Itabira.

Grupo Escolar Major Lage, na praça Nelson LIma, em 1972. Ao fundo, a Serra do Esmeril ainda sem ter sido descaracterizada com a supressão de sua vegetação pela “gulosa” CVRD (Foto: Tibor Jablonsky e Ney Strauch/IBGE/ViladeUtopia)

 Canção de Itabira

Mesmo a essa altura do tempo,

um tempo que já se estira,

continua em mim ressoando

uma canção de Itabira.

Ouvi-a na voz materna

que de noite me embalava,

ecoando ainda no sono,

sem que faltasse uma oitava.

No bambuzal bem no extremo

da casa de minha infância,

parecia que o som vinha

da mais distante distancia.

No sino maior da igreja,

a dez passos do sobrado,

a infiltrada melodia

emoldurava o passado.

Por entre as lajes da Penha,

os lábios das lavadeiras

o mesmo verso entoavam

ao longo da tarde inteira.

Pelos caminhos em torno

da cidade, a qualquer hora,

ciciava cada coqueiro

essa música de outrora.

Subindo ao alto da serra (serra que hoje é lembrança)

na ventania chegava-me

essa canção de bonança.

Canção que este nome encerra

e em volta do nome gira.

Mesmo o silencio a repete,

doce canção de Itabira.

[Jornal do Brasil (RJ), 24/4/1980. BN-Rio. Pesquisa: Cristina Silveira]

 

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3 Comentários

  1. Uma crônica de memória de saudade da cidade, Itabira do Mato Dentro, agora Itabira da mineradora. Os insensíveis, incultos da Vale jamais compreenderão. Eles não tem espírito, estão coberto pelo pó fino do minério, pela ganância.
    Lindo, caro Carlos.

  2. A vale é mesmo ingrata com Itabira. Mas nós itabiranos temos uma grande parcela de culpa. Como Drumond disse falta termos uma voz forte, deputados estadual e federal. Culpa dos inúmeros candidatos que têm os votos repartidos e nenhum eleito. Até quando. Meu Deus!

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