Câmara e Cadeia
Foto: Carlos Cruz
– Como fazer leis e cobrar impostos pisando sobre presos? Perguntava a si mesmo. A cadeia é a parte condenada da Câmara. Ao entrar, a gente não olha para a enxovia. Tem constrangimento ou talvez medo de perceber o que se passa lá dentro, naquela imundice. É certo que tudo corre por conta do governo do Estado, que não pensa em construir uma cadeia decente. Mas podemos concordar com essa vergonha?
Carlos Drummond de Andrade
– Afinador de piano, em excursão, vinte e cinco mil reais.
– Quanto?
– Vinte e cinco mil.
– É um exagero. Às vezes o afinador não ganha isso durante a viagem. O Juca Silveira me contou. A principal fonte de renda dele é a criação de perus. E já paga imposto de indústria e profissão…
– Bem, se nós formos indagar dos contribuintes quanto é que eles querem pagar, a tesouraria fica sem recursos para comprar um maço de velas quando faltar luz. Seria preferível que eles mesmos fizessem o lançamento.
A Câmara Municipal discutia o orçamento para 1920, e os dois vereadores ponderavam ponto por ponto cada título da receita. O município é pobre, arrecada 72 contos por ano. Houve depressão na lavoura; há peste no gado; o empréstimo para instalação da luz elétrica vence juros penosos.
Para atender ao serviço de estradas, à instrução, às eleições, ao funcionalismo, a tanto compromisso, torna-se imperioso lançar novos impostos, criar taxas inéditas, como essa do afinador. Mas piano – quantos pianos terá o município? Quinze no máximo; dos quais, apenas uns cinco nos distritos: a taxa talvez não produza cinquenta mil reis. Uma ninharia, meu caro!
No calor da sala, os vereadores tentam levantar as finanças publicas. Salão muito quente, com efeito. Dá para a frente da praça, que recolhe o sol da tarde ao passo que a outra sala, olhando para a montanha e o vale profundo, recebe uma doce brisa em que narinas mais apuradas distinguem o perfume de árvores distantes, e os caçadores chegam a identificar um cheiro de anta.
No inverno, sim, a sala das sessões recomenda-se pelo aconchego – mas o orçamento é feito naquela época do ano em que as cigarras estouram e secam os córregos.
– Barbeiro com uma só cadeira, 20 mil réis na cidade; em outros lugares 18 mil. Cada mão de engenho de mineração, quando fabricada no país…
Os vereadores abanam-se com envelopes e folhinhas. Em frente à Câmara, agravando pelo som a sensação de calor, passa um carro de bois. Antes, passara o palhaço, com o seu séquito de moleques, anunciando o espetáculo da noite, com o grande drama da vida real, “Roca e Caleto”, que, tinha um assassinato no bote.
Como é que eles figurariam o bote em movimento, no palco de pano?… – indagou de si mesmo Valdemar, o vereador que defendia a taxa de afinação de pianos; mas repeliu esse pensamento, como indigno de um edil que, além do mais, era professor de ginásio.
João Batista, adversário de todas as taxas (era comerciante) também se distraíra, ou simulava distrair-se, brincando com a corrente do relógio, que lhe pendia do ventre farto. O major Ponciano, representante do distrito de Palmitos, roncava placidamente.
O farmacêutico Meireles escrevia calado num caderninho, sem duvida assuntos particulares. E o coronel Lindolfo, presidente da Câmara, “que não dava para aquilo”, dir-se-ia, como sempre, padecer uma trágica dor de cabeça. Mãos na fronte, olhos cerrados, tinha uma cara de dor, enjoo tédio e resignação forçada. Como é duro presidir. Imaginem então o Epitácio, lá no Catete…
Faltava ainda examinar quinze tabelas, e Valdemar suspirou de cansado. E de irritado também. Então o povo elegia nove representantes e desses nove somente cinco se dispunham a comparecer às sessões? E desses cinco, apenas dois discutiam os problemas do povo? E desses dois, um, só um – ele, que vivia cheio de serviço, defendia realmente os interesses da comunidade, e não os de classe?
A batalha contra o comércio, representado por João Batista, era continua e deixava-o exausto. O povo precisava de escolas, de uma enfermaria nova no hospital em ruinas – mas João Batista não admitia que se cobrasse mais dos bilhares e das fábricas de aguardente. Ele, Valdemar, ficava com o papel odioso. Ora bolas!
Valdemar levantou-se, atravessou a sala, foi até os fundos do prédio para respirar um ar menos oficial. Os funcionários tinham saído. Da janela, a paisagem oferecia-se como um repouso. A cidade, tão seca, tão estrangulada de morros, perdia ali as suas limitações. A rampa verde conduzia ao fundo do vale, onde serpeava uma água tímida, mas reconfortante para a vista.
E do outro lado do córrego, a rua subia, caprichosa mas determinada, até o sopé da serra, que barrava o horizonte. Contornando à rua, árvores esparsas ou em bosque, pastagens, moitas de arbustos, caminhos que se interrompiam na verdura para surgir mais além. Poucos sinais do homem, e entre eles a boca da mina, lá longe, pequena mancha preta no dorso cinza-roxo da montanha. Do alto do casarão, o vereador sentiu o prazer de existir dentro da natureza, e olvidou por momentos o déficit municipal.
Dois andares na fachada principal, três na dos fundos – a casa estava assentada sobre uma ladeira, e aquele era um dos pontos de vista mais altos da cidade. Baixou os olhos até a ladeira gramada. Galinhas ciscavam – eram do fiscal da Câmara, não adiantava reclamar. Ciscavam minuciosamente junto às paredes da casa, chegavam até às – grades – pois lá em baixo, ao nível do chão, era a cadeia, onde os presos se distraiam jogando-lhes sobras de comida ou pequeninas coisas que as assustavam.
Valdemar nascera na cidade, e desde menino se acostumara com o espetáculo dos presos. Faziam objetos de taquara, madeira, desenhos de areia colorida sobre vidro. Com as mãos nas grades, contemplavam os escassos transeuntes que desciam a ladeira. Viam eternamente as mesmas árvores, fitavam a mesma serra. E cantavam.
Não era proibido conversar com eles, através dos ferros. Pareciam alegres quando alguém parava para dar uma prosa. Sempre houve presos. Os meninos achavam aquilo natural. Mas agora, já homem, Valdemar via-os de uma maneira diferente. Sabia da miséria deles, e achava estranho, ou quando menos desagradável, estar ali fruindo a paisagem e o ventinho, quando debaixo de seus pés homens humilhados se amontoavam confusamente, na semiescuridão e na umidade.
– Como fazer leis e cobrar impostos pisando sobre presos? Perguntava a si mesmo. A cadeia é a parte condenada da Câmara. Ao entrar, a gente não olha para a enxovia. Tem constrangimento ou talvez medo de perceber o que se passa lá dentro, naquela imundice. É certo que tudo corre por conta do governo do Estado, que não pensa em construir uma cadeia decente. Mas podemos concordar com essa vergonha?
E já não tinha gosto para sorver o ar da serra nem perder os olhos na mata. Uma simples tábua o separava de meia dúzia de criaturas embrutecidas, pisadas , que comiam, dormiam e faziam necessidades juntas, sobre um chão atijolado que não se lavava nunca. O ar pareceu-lhe empestado, como se de repente subisse até às alturas da Câmara o cheiro de mofo e de urina que pairava na parte baixa do edifício.
Um rumor fê-lo voltar-se. Vinha da sala as sessões, onde vozes alteradas se cruzavam. Valdemar deixou a sacada, foi correndo ver o que havia.
A sala perdura subitamente a fisionomia grave e sonolenta. Os vereadores estavam de pé, e tinham recuado para trás da mesa da presidência, o farmacêutico brandia uma cadeira, em atitude de ameaça e defesa. O major Ponciano estendia os braços, com as mãos espalmadas, como para fazer sustar o avanço de um inimigo afoito.
João Batista media com os olhos a distancia que o separava do corredor dos fundos, das sacadas da frente, de todos os pontos de saída ou refugio; mas não se resolvia. E o coronel Lindolfo abria e fechava a boca, tentando articular uma palavra enérgica, porém a voz lhe faltava. Quatro rostos brancos. Em frente deles, a três metros de distância, estava um homem de pé no chão, em manga de camisa, calça de pano riscado, barba por fazer e olhos brilhantes.
– Retire-se! Exclamou afinal, o presidente da Câmara num esforço que lhe fazia tremer a barba. Ou antes, não se retire, fique preso aí mesmo. O sr. está preso ouviu? Está preso em nome da lei!
O intruso não se mostrava intimidado, mas indeciso. Olhava um pouco espantado para aqueles homens que se encolhiam, e quase sorriu; talvez lhe agradasse aumentar o susto dos vereadores. Tinha esperado, por certo, ser atacado e subjugado depois de muita luta; não podia crer que o poder público, tão majestoso, se refugiasse atrás de uma mesa.
Foi quando percebeu a chegada de Valdemar. O primeiro impulso deste foi atirar-se ao desconhecido. O movimento assim claro, determinou outro de preocupação da parte contrária. Os dois fitaram-se, Valdemar deteve-se. Mesclando-se à curiosidade, uma brusca simpatia paralisou-lhe os gestos, ao verificar pela roupa do homem que ele devia ser um dos presos da cadeia.
Meireles fazia-lhe sinais desesperados, alertando-o; e como fossem inúteis, advertiu:
– Não chegue perto dele, professor! É um criminoso perigosíssimo! Daquela morte das Duas Pontes!
Do grupo atemorizado partiam exclamações e murmúrios.
– Onde está o diabo desse destacamento que não aparece?
– Que fim levou o cabo? Com certeza jogando nalgum botequim. Não faz outra coisa.
– Os soldados devem estar bêbados!
– Quem sabe se ele matou o carcereiro? Não compreendo como pode sair de lá!
– Precisamos providenciar!
O coronel procurava impor-se:
– O senhor está preso, repetiu. Vamos, renda-se à autoridade!
– Preso? disse o criminoso. Preso eu já estou há dois anos. O sr. não pode me prender outra vez, coronel. Afinal eu não fugi, apenas subi a escada…
A objeção deixou perplexo o agente executivo, mas o farmacêutico acudiu a seu favor:
– Como não fugiu? Pois se ousa até desacatar a Câmara, interrompendo os nossos trabalhos! Volta já para a enxovia, depressa! Se não quer que usemos de violência…
– Calma, retrucou o detento. Não vim fazer mal a ninguém. Estou descansando. Podem me revistar: não tenho um canivete.
– Como foi que chegou até aqui? perguntou-lhe Valdemar em um tom sereno.
– A porta estava aberta, ou por outra, eu abri a porta. Lá embaixo fazia muito calor…
– E os outros?
– Os outros ficaram, respondeu calmamente o preso. A maioria está doente por causa da comida (é uma lavagem de porcos) e da falta de exercício. Não quiseram me acompanhar. E eu não teimei com eles.
Os vereadores se sentiam-se mais confortados. Afinal, um assassino não é tão perigoso como se pinta. Aquele era moço – rosto de vinte e cinco anos, apenas envelhecido pela barba e pela magreza. Não seria um rustico. Fisicamente até simpático. Ou estaria engabelando os presentes para depois puxar de uma faca e sangrá-los?
A queda de tensão sucede nova tensão. O medo reúne os homens, faz de quatro deles, numa sala, um bolo só. Nessa alternativa escoam-se momentos preciosos para os vereadores e para o preso.
Mas o tempo trabalha a favor da Câmara. É impossível que não apareça algum soldado, mesmo ébrio. O secretário, o amanuense, o fiscal geral surgirão a qualquer instante, ou, se também andarem escondidos nalgum buraco, hão de pedir socorro. E a cidade libertará os seus representantes.
– Vamos sentar um pouco, disse Valdemar, aproximando-se e batendo de leve no ombro do preso.
Sentaram-se, em meio ao espanto dos outros.
– Engraçado, tem dois anos que eu não sei o que é uma cadeira. É macio, heim?
Apalpava com agrado a palhinha do assento, mas sentara somente na ponta. No seu abandono, parecia disposto a saltar, ao menor gesto suspeito de Valdemar. Que delícia, estar ali em cima (sempre cismava em que estariam fazendo aqueles velhotes que pisavam duro sobre sua cabeça), interrompendo a sessão da Câmara, calmamente pousado numa cadeira de braços, livre da tristeza dos companheiros!
– Agora me diga uma coisa continuou Valdemar. Sabe que não é direito isso que você fez?
O outro riu sacudindo os ombros.
– Ah moço, se o senhor vivesse naquele chiqueiro… Não é só porcaria. É uma porção de coisas. Por mais que a gente trabalhe o tempo não passa. Então de noite, no escuro, nem avalia. Só isso de não ficar um minuto sozinho. Já pensou em viver dez, vinte anos numa sala, sempre com as mesmas pessoas? Desculpe a confiança, mas mesmo sendo com a sua família o sr. suportava? Se ao menos dessem uma cela para cada um de nós, como fazem com as doidas e as mulheres da vida. Não. É tudo misturado. Roupa, suor, pé, barriga. Então parece que até as faltas se misturam, e eu já nem sei mais os erros que carrego nas minhas costas… Além do meu é claro.
Os vereadores vinham se aproximando, entre curiosos e prudentes.
– Mas afinal você saiu para fazer o que?
– Eu? (ficou algum tempo hesitando, à procura de palavras). Nada. Sai porque não aguentava mais e dei um jeito na fechadura…
– E já que você saiu o que é que vai fazer agora?
O homem passou a mão na testa, encarou Valdemar:
– Moço, o senhor está perguntando demais.
E depois de uma pausa:
– Então o senhor não sabe o que vai fazer um cristão quando fica livre da grade? Que faz um passarinho fora da gaiola?
– Às vezes não sabe mais voar, e é pego de novo, respondeu filosoficamente Valdemar.
O outro riu de novo.
– É, pode ser. Mas sempre é bom experimentar, não acha? Olhe, se eu não experimentasse o cadeado…
Valdemar percebia que um jogo estava se desenvolvendo de resultado incerto. Não podia prolongar indefinidamente a conversa com o preso. Sentia-o pronto a aproveitar o menor descuido para evadir-se.
A maneira compreensiva como o tratava tinha-o cativado talvez, mas o encanto se romperia a qualquer momento, se é que havia encanto, e não simplesmente cálculo. De resto, a cena parecia regida pelo acaso e haveria no preso a tendência para se confiar aos vai-vens desse acaso. Antes de fugir, ele queria, quem sabe? zombar daqueles homens importantes.
– Escute. Se você em vez de subir tivesse saído pela porta da rua, eu não iria atrás para pegá-lo. Não é meu ofício. Mas você veio cá em cima, confessou ter escapado por um jeito que deu na fechadura. Sinto muito, meu filho, mas eu vou levar você de novo lá para baixo. E é já.
– Não me encoste! Gritou o preso, dando um pulo e tirando do bolso alguma coisa que apertava na mão. Essa carinha limpa não me engana. Tudo é igual! E chega de conversa! Adeus, minha gente…
Foi saindo de costas, muito ágil, mão erguida e fechada e sumiu como evaporado do calor. Valdemar ainda quis persegui-lo, num gesto mais formal do que instintivo, mas o farmacêutico travou-lhe do braço:
Está doido?! – e daí, ele simpatizara tanto com o preso, a cadeia lá embaixo era tão repugnante… A polícia que se arranjasse. Chegando à sacada, viu ainda o homem que desaparecia num beco.
[Correio da Manhã (RJ), 9/3/1947. Coleção BN-RJ – Pesquisa: Cristina Silveira]
Por acaso pouco tempo depois a cadeia pública foi construída próximo à entrada do Cemitério do Cruzeiro.
Essa mesma encontra-se abandonada pelo Estado de Minas Gerais, um lixo só!
E a peste que assolava o gado era a febre aftosa, pois ainda não existia a vacina e o comum era utilizar óleo queimado para tentar minimizar a afta no gado bovino.