Câmara de Itabira mantém tradição conservadora e ameaça liberdade cultural com projeto de censura disfarçada a eventos artísticos

Fotos: Jessica Estefani/
Ascom/CMI

Um projeto extemporâneo, moralista e perigoso

Na sessão dessa terça-feira (14), a Câmara Municipal de Itabira aprovou a retirada temporária de pauta do Projeto de Lei nº 717/2025, que proíbe a contratação de artistas e shows com recursos públicos quando houver “apologia ao crime, erotização, nudez ou conteúdo sexual explícito”.

A proposta é de autoria do vereador Cidney “Caldo de Cana” Camilo Rabelo (PL) e foi retirada de pauta a pedido do vereador Hudson “Yuyuy da Pedreira” Junio Diogo Santos (PSB), que apresentou emendas ao texto. O projeto deve retornar à votação na próxima semana com forte tendência de aprovação, conforme os discursos majoritários na sessão.

Inspirado na chamada Lei Anti-Oruam, que tramita no Rio de Janeiro e já repercute em outras cidades brasileiras, o projeto é mais um capítulo da ofensiva moralista e conservadora que vem ganhando força em câmaras municipais pelo país. Mas em Itabira, essa onda não é novidade — ela tem raízes profundas e históricas.

No Rio, o projeto foi chamado de “Lei Anti-Oruam”, que leva o nome artístico de Mauro Davi dos Santos Nepomuceno, conhecido como Oruam, rapper carioca que ganhou projeção nacional com hits como Oh Garota Eu Quero Você Só Pra Mim, a música mais ouvida do Brasil no Spotify em 2024.

Oruam é filho de Marcinho VP, apontado como líder da facção Comando Vermelho. Suas letras abordam temas como criminalidade, desigualdade social e violência policial — o que levou vereadores no Rio e em São Paulo, e agora também em Itabira, a propor projetos que vetam o uso de dinheiro público em shows que “promovam apologia ao crime”.

Vereador Cidney “Caldo de Cana”, a voz da censura em nome da moral, dos bons costumes

Afinal, quem decide o que é “apologia ao crime”?

A proposta é perigosa não apenas pelo conteúdo, mas pela ambiguidade deliberada. O que exatamente configura “apologia ao crime”? Quem vai decidir se uma letra de rap é denúncia social ou incitação à violência?

O projeto não responde – e essa omissão é estratégica. Ela abre espaço para interpretações subjetivas e perseguições políticas, permitindo que gestores públicos vetem artistas com base em critérios ideológicos, religiosos ou morais.

O vereador Diquerê lembrou que vivemos numa democracia, onde não cabe censura à arte

O vereador Rodrigo “Diguerê” Alexandre Assis Silva (MDB) foi uma das poucas vozes a levantar essa preocupação: “O Estado é laico. Não podemos votar só pela nossa forma de ver as coisas, seja pela religiosidade ou outros meios”.

Seu pronunciamento, embora isolado, foi um momento de lucidez em um plenário tomado por discursos inflamados em defesa da “família”, “da moral e dos bons costumes” – e ataques ao que os edis chamaram de “vagabundagem”, referindo-se a algumas apresentações musicais recentes em Itabira.

Criminalizar o rap é criminalizar a periferia

Embora não explicitado, o alvo não declarado do projeto é claro: o rap, o funk, o hip hop, que são expressões culturais que nascem nas periferias e dão voz à juventude preta e pobre. Gêneros que incomodam justamente por denunciar a violência policial, o racismo estrutural, a desigualdade social e a hipocrisia institucional.

É fato que existem excessos. Entretanto, a arte não é feita para ser confortável, mas para incomodar. O rap é, antes de tudo, uma forma de resistência cultural, de formação política e de afirmação identitária.

Criminalizá-lo por meio de censura prévia é criminalizar a realidade que ele retrata. É dizer que a dor da favela não pode ser cantada, que a revolta do jovem negro não pode ser ouvida.

A quem serve essa moral seletiva?

O discurso da “proteção à infância” vem sendo usado como escudo para justificar a censura. Mas a preocupação, no caso, com as crianças parece surgir apenas quando se trata de silenciar vozes incômodas.

A tramitação do projeto reafirma o papel da Câmara como guardiã de uma moral seletiva, elitista e excludente, que historicamente vem tentando impor à cidade uma visão única de mundo, de arte e de cultura. Felizmente, sem sucesso até aqui e assim espera-se que permaneça.

O que está em jogo

A retirada de pauta foi aprovada por 14 votos favoráveis e apenas 2 contrários, mas o projeto deve voltar à discussão na próxima semana. A tendência é de aprovação ampla, com exceção de possíveis resistências pontuais.

A sociedade civil, artistas e coletivos culturais precisam estar atentos: o que está em jogo não é o uso de recursos públicos, mas o direito à livre expressão, à crítica e à arte.

Se aprovado, o projeto abrirá um precedente perigoso: o de um Estado que decide o que pode ou não ser dito, cantado ou encenado, como ocorreu durante a ditadura militar, de triste lembrança. E isso, em qualquer tempo, é censura.

Conservadorismo de ontem e de hoje

O moralismo que hoje tenta censurar o rap e o funk em Itabira já teve, no passado, como alvo a imprensa livre. Em 1983, o então vereador Cácio Guerra, eleito pelo PDS – partido que sustentava a já enfraquecida ditadura militar – enviou um ofício ao Ministério da Justiça, solicitando censura prévia ao jornal O Cometa Itabirano.

O motivo? O vereador considerava as publicações do jornal atentatórias à moral e aos “valores cristãos da família itabirana”.

Embora o pedido tenha sido ignorado, em uma conjuntura em que a ditadura já cambaleava sob a chamada “distensão lenta, gradual e segura” iniciada pelo presidente general Geisel e continuada pelo seu sucessor também general João Batista de Figueiredo, aquele que dizia preferir o cheiro de cavalos ao do povo, o episódio revelou uma tradição autoritária e higienista que ainda ecoa no plenário da Câmara de Itabira.

Passadas mais de quatro décadas, esse mesmo espírito retrógrado, conservador e reacionário se manifesta no PL 717/2025, que tenta definir o que pode ou não ser apresentado em shows públicos, ressuscitando o fantasma da censura prévia, agora disfarçado de zelo com o erário e proteção da infância.

A proposta não apenas ignora os princípios constitucionais da liberdade de expressão e da pluralidade cultural, como também abre espaço para perseguições ideológicas, permitindo que gestores públicos decidam, com base em critérios morais e religiosos, quais manifestações artísticas são “aceitáveis” e quais devem ser silenciadas.

Se aprovado pela Câmara, o apelo que se faz, em nome da democracia, da diversidade e do direito à crítica, é para que o prefeito Marco Antônio Lage (PSD) não sancione esse projeto espúrio, que representa um retrocesso histórico e um ataque direto à cultura popular, à juventude periférica e à liberdade artística.

 

Posts Similares

2 Comentários

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *