Câmara de Itabira aprova projeto que institucionaliza censura disfarçada a eventos artísticos; prefeito deve vetar
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Inspirado na Lei Anti-Oruam, texto reflete avanço do conservadorismo moralista nas câmaras municipais e é ameaça à liberdade cultural
Na sessão dessa terça-feira (21), a Câmara Municipal de Itabira aprovou, por unanimidade, o projeto de lei nº 117/2025, de autoria do vereador Cidnei “Didi do Caldo de Cana” Camilo Rabelo (PL). O texto proíbe a contratação de artistas e shows com recursos públicos quando houver “apologia ao crime, erotização, nudez ou conteúdo sexual explícito”.
Inspirado na chamada Lei Anti-Oruam, que tramita no Rio de Janeiro, e em outras Câmaras país afora, numa bem orquestrada ação da extrema direita brasileira, o projeto agora segue para sanção ou veto do prefeito Marco Antônio Lage (PSB).
A expectativa de muitos é que o prefeito vete o projeto, por sua flagrante inconstitucionalidade. Isso por ferir o princípio da liberdade de expressão, abrindo espaço para censura prévia, mesmo com as emendas conciliatórias aprovadas.
Projeto está em sintonia com o moralismo nacional
O projeto aprovado em Itabira não é um caso isolado. Ele repercute a onda conservadora que se espalha por câmaras municipais país afora, sob o pretexto de proteger “a família”, “os bons costumes” e “as crianças”.
É o mesmo discurso que, sob o manto da moralidade, busca silenciar vozes críticas, criminalizar a cultura periférica e impor uma visão única de mundo, branca, cristã, heteronormativa e patriarcal.
Repercute, com inquietante familiaridade, a retórica da Marcha com a Família, organizada pela TFP (Tradição, Família e Propriedade), que serviu de palanque ideológico para o golpe militar de 1º de abril de 1964, de triste memória e que mergulhou o país numa ditadura violenta e repressiva, que só foi encerrada em 1985.
Em Itabira, esse moralismo encontrou ressonância quase unânime entre os vereadores. O vereador Didi Caldo de Cana, autor do projeto, justificou a proposta como resposta ao “medo da população” de que eventos como os ocorridos na Praça do Expedicionário, em frente à EEMZA, se repitam.
“Dinheiro público não pode ser usado para financiar baixarias”, afirmou, estabelecendo uma curiosa correlação entre a degradação dos eventos e a liberação de pequenas quantidades de drogas pelo Supremo Tribunal Federal (STF) – uma associação que repercute a mesma lógica conservadora que vem ganhando espaço país afora.
O autor do projeto negou que tenha como alvo gêneros musicais específicos, como o rap ou o funk, mas deixou claro que o foco está na “composição da música e no respeito da letra para a sociedade itabirana”.
O vereador Heraldo Noronha Rodrigues (PRB) foi ainda mais enfático e revelador. “Sou coronel mesmo. Na minha casa não entra esse tipo de música. E em praça pública também não pode tocar um trem desse não”, disparou, no alto de sua jactância verbal, em um rompante de autoridade doméstica que busca estender ao espaço público.
Já o vereador Marcos Antônio Ferreira da Silva (Solidariedade), o Marquinhos da Saúde, celebrou o que classificou como um “debate republicano”, exaltando o clima de civilidade da sessão. Isso mesmo tendo como resultado a aprovação de um projeto que restringe liberdades, em nome de “proteger as famílias”, reforçando o discurso moralista que permeou a votação.
Na mesma linha, a vereadora Dulce Citi Oliveira (PSB) parabenizou todos os envolvidos, afirmando que “a democracia é isso”, como se a simples existência de debate bastasse para legitimar medidas que flertam com a censura.
Emendas não mudam o essencial
As emendas apresentadas pelos vereadores Hudson “Yuyu da Pedreira” Junio Diogo Santos e Bernardo Rosa, ambos do PSB, buscaram suavizar o texto, exigindo, por exemplo, que denúncias fossem acompanhadas de provas e que os eventos divulgassem sua classificação indicativa.
Yuyu da Pedreira salientou que suas propostas foram construídas com diálogo com artistas urbanos e grupos culturais da cidade. “Minhas emendas não retiram nada do projeto original. Elas somam, fortalecem e representam o que a população espera de nós”, afirmou.
Já Bernardo Rosa reforçou que o processo legislativo foi democrático e que “em nenhum momento houve intenção de tolher a livre manifestação”.
O vereador Elias Lima também apoiou o projeto e as emendas, destacando que “o importante é o peso da fiscalização”. Embora admita que não consome os gêneros musicais em questão, afirmou que “as pessoas têm suas liberdades, desde que respeitem os espaços”.
As emendas foram aprovadas por 11 votos a 5, mas o projeto principal foi aprovado por unanimidade, o que revela, no fundo, que o espírito censor da proposta foi mantido.
Vozes dissonantes
Em meio ao coro conservador que dominou a sessão legisltiva, dois vereadores destoaram com lucidez o coro do reacionarismo, ainda que tenham votado favoravelmente ao projeto com as emendas aprovadas.
O vereador Rodrigo “Diguerê” Alexandre Assis Silva (MDB) foi direto ao apontar que, apesar dos ajustes, o texto preserva sua natureza autoritária. “Vivemos numa democracia, onde não cabe censura à arte”, afirmou, alertando para o risco de perseguições políticas travestidas de moralismo.
Ele reconheceu que as emendas de Yuyu, como a exigência de provas nas denúncias e a classificação indicativa dos eventos, trazem avanços. Mas não alteram o cerne do projeto, que é o controle prévio do conteúdo artístico.
Por seu lado, o vereador Carlos Henrique de Oliveira (PDT) foi ainda mais incisivo e provocador. “Não gosto da música do Oruam, mas por que o nome da lei é Oruam, se ele nunca fez show com dinheiro público?”, questionou.
“Será preconceito por ele ser filho de traficante?”, ele indagou, expondo o viés discriminatório que permeia o projeto que está para virar lei municipal, no caso de o prefeito não vetar a proposta de censura às apresentações artísticas no município.
O vereador pedetista salientou ainda que muitas letras de rap e funk retratam a realidade das comunidades itabiranas, como a Pedreira, a Chapada e o Madre Maria de Jesus.
“A apologia ao crime já é crime, já existe lei para coibir. Não cabe a nós censurar a arte que denuncia a violência que o Estado pratica nas periferias”, concluiu, em defesa da liberdade de expressão e da função social da arte.
O que está em jogo
O projeto aprovado institui punições severas aos artistas que descumprirem cláusulas contratuais, incluindo multa de 100% do valor contratado e proibição de receber apoio público por um ano. A denúncia poderá ser feita por qualquer cidadão, com o ônus da prova, de acordo com as emendas apresentadas.
Mais do que um regulamento administrativo, o projeto representa um retrocesso histórico. Ele revive o fantasma da censura, travestido de zelo com o erário e proteção da infância.
E não é a primeira vez que o legislativo itabirano tenta silenciar vozes incômodas. Em 1983, o então vereador Cácio Guerra pediu censura prévia ao jornal O Cometa Itabirano, por considerar seu conteúdo “imoral” e ofensivo aos “valores cristãos da família itabirana”.
Embora o pedido tenha sido ignorado, mesmo com o país ainda vivendo sob o jugo de uma ditadura, o episódio revelou uma tradição autoritária que, infelizmente, ainda ecoa entre os edis itabiranos.
O texto aprovado em Itabira é sintoma de algo maior: o avanço de um conservadorismo reacionário que, em nome da moral, tenta controlar a cultura, a arte e o pensamento.
É a mesma ladainha que embalou a “Marcha com Deus e pela Família” em 1964, e que, por pouco, não se repetiu na história recente.
Se sancionado, o projeto abrirá um precedente perigoso: o de um Estado que decide o que pode ou não ser dito, cantado ou encenado. E isso, em qualquer tempo e lugar, é censura.









