Bezerra da Silva se reflete na arte da cultura marginal de morros e favelas

Lenin Novaes*

 Bezerra da Silva, estimados leitores e leitoras da Vila de Utopia, foi alcunhado de forma indevida e injusta de ‘partideiro maldito’. Ele teve a trajetória de vida refletida na própria arte. Pernambucano de Recife, nascido em 23 de fevereiro de 1927, chegou no Rio de Janeiro com 15 anos de idade, depois de expulso da Marinha Mercante. Procurava o pai, Alexandrino Bezerra da Silva, que abdicara da mulher, Hercília Pereira da Silva, ainda grávida. Com a roupa do corpo, e após longa viagem em navio cargueiro, fez da obra da construção civil, onde trabalhou como pintor, no Centro do Rio, o seu endereço residencial, até se estabelecer no Morro do Cantagalo, na Zona Sul, quando conheceu uma namorada. Incorporou os efeitos das desigualdades sociais, econômicas e cultural mantidos pelas forças de salvaguarda deste perverso sistema que nos debela, predominante ao longo de toda a história do Brasil. É preciso mudá-lo para a vida melhorar.

Capa de disco de 1990

Bem, se faz necessário observar o contexto político social da época, bastante conturbado, para compreender o tempo de José Bezerra da Silva, assim como milhões de cidadãos brasileiros à margem das condições essenciais de vida, excluídos, marginalizados.

Tinha ele dois anos de idade, em 1929, quando a Bolsa de Valores de Nova Iorque implodiu, causando efeitos devastadores no sistema capitalista em grande parte do mundo. No Brasil, a crise foi um do viés que estimulou a Revolução de 1930, com Getúlio Vargas abarcando o poder. Vargas fora derrotado nas urnas por Júlio Prestes, eleito Presidente da República, em 1º de março. Aí, a Aliança Liberal, que sustentava a candidatura dele, armou o golpe, ocorrido no início de outubro, meses após o assassinato do governador da Paraíba, João Pessoa, ocorrido em 26 de julho, numa confeitaria de Recife. João Pessoa tinha sido vice na chapa de Vargas e sua morte foi o estopim para o golpe. Washington Luiz se recusou a renunciar, sendo preso e exilado para a Europa. O mesmo aconteceu com Júlio Prestes, presidente eleito. No Rio de Janeiro, Vargas e seus aliados amarraram os cavalos no obelisco, no final da Avenida Rio Branco, junto à Cinelândia.

A crise econômica dominou a década de 1930. O proletariado e as camadas médias urbanas reagiam às deteriorações das condições de vida. Manifestações de protestos e greves eram realizadas em várias partes do país. Em 1932, a Revolução Constitucionalista foi sufocada, sendo o maior confronto militar no Brasil no século XX, com cerca de 830 mortos. Estima-se que centenas a mais de pessoas morreram, não constando dos registros oficiais. Uma nova Constituição foi promulgada em 15 de julho de 1934, predominada das forças oligarquias. Outra, em 1937, inspirada no fascismo foi instituída por Vargas, dando início ao Estado Novo. As instituições representativas do povo foram extintas. De 1937 a 1945 o Brasil esteve sob a ditadura do Estado Novo.

Para abreviar, nos dias de hoje, estamos sob a Constituição Cidadã, de 1988, depois do golpe civil-militar que vigorou de 1964 a 1985. Mas, os problemas que afligem a larga maioria da população brasileira ainda são os mesmos, agravados nas necessidades básicas, como educação, saúde, saneamento e habitação. Sobreviver num contexto de desigualdade social tão gritante tem sido uma grande aventura. A conjuntura econômica e política, enlameada de corrupção nunca vista (como se corrupção fosse uma regra), está deteriorada e transbordando no esgoto. Como fede! É possível que a solução e construção de uma nova condição de vida estejam, efetivamente, rumo ao poder popular.

Produto do morro

Na troca da pobreza do Recife pela pobreza do Rio de Janeiro, Bezerra da Silva fez do Morro do Cantagalo seu QG. De lá, num ambiente desprovido de quaisquer serviços público, aliás, como ainda predomina na maioria das favelas e morros carioca – só na Cidade de São Sebastião do Rio de Janeiro são contabilizadas cerca de mil comunidades, atualmente –, ele se inseriu na sociedade, com intrépida personalidade. Gravou 28 discos, que venderam mais de três milhões de cópias e que resultaram em 11 discos de ouro, três de platina e um de platina duplo.

Foi ritmista no bloco carnavalesco Unidos do Cantagalo, tocando tamborim, depois incursionou por vários instrumentos de percussão. José Alcides, o Doca, um dos autores da música “General da banda”, o levou para participar do programa Rádio Clube do Brasil, em 1950. A carreira deslanchou acompanhando artistas, integrando a Orquestra da Copacabana Discos, indústria fonográfica na qual gravou compacto com “Mana, cadê meu boi?” e “Viola testemunha”. Sua primeira música gravada, “Nunca mais”, em parceria com Norival Reis, teve interpretação da cantora Marlene, em 1965.

Ilustração: Lina Costa

Jackcon do Pandeiro gravou algumas músicas dele: “Meu veneno”, “Urubu molhado”, “Babá”, “Criando cobra”, e “Preguiçoso”, compostas com vários parceiros. Em 1974, Zuzuca gravou “Decadência”, dele com Baianinho. Os dois primeiros discos que gravou, Bezerra da Silva, o rei do coco, volumes 1 e 2, são de 1975/76. O disco só com sambas, Partido alto nota 10, Bezerra e Genaro, é de 1977. Dois anos depois, Partido alto nota 10, Bezerra e covidados; em 1980, Partido alto nota 10, Bezerra e Rey Jordão; e Partido muito alto. Nos dois anos seguintes: Samba partido e outras comidas e Bezerra e um punhado de bambas.

Produto do morro, de 1983, é segundo disco gravado na RCA Victor, onde ficou por 14 anos. Bezerra da Silva canta samba autobiográfico, “O preço da glória”, relatando as dificuldades que teve de superar, como os tempos em que morou na rua, passou fome e, ainda, por diversas vezes, foi preso por vadiagem. Aliás, sobre este aspecto, até bem pouco tempo a polícia fazia estatística de prisões realizando detenções por vadiagem de quem não comprovasse emprego com carteira de trabalho profissional assinada. Ele chegou a pensar em suicídio e foi acolhido em um terreiro de umbanda. Sobre a prática de prisão por vadiagem um amigo fez a seguinte observação:

– Sabe, Lenin, prisão por vadiagem, num país de regime capitalista, é uma aberração, pois o sistema é discriminatório. A polícia invadia morros e favelas, arrombava barracos a pontapé e jovens e adultos eram amarrados com cordas e conduzidos às delegacias e aos DPOs (Destacamentos de Polícia Ostensiva), que foram substituídos por Unidades de Polícia Pacificadora. Nem todos têm oportunidade de trabalho. E, nos dias de hoje, o Brasil tem mais de 600 mil pessoas presas, em cadeias e presídios superlotados, infectados e carregados de doenças.

É esse aí que é o homem, disco de 1984, abre o repertório com “Defunto caguete”, e, entre outras, tem “Foi o dr. delegado que disse”, “Legítima defesa” e “O rei da cocada preta”. Malandro rifle, do ano seguinte, reúne “Bicho feroz”, “Saudação às favelas” e “Vítimas da sociedade”, cuja letra é a seguinte:

“Se vocês estão a fim de prender o ladrão/Podem voltar pelo mesmo caminho/O ladrão está escondido lá embaixo/Atrás da gravata e do colarinho/O ladrão está escondido lá embaixo/Atrás da gravata e do colarinho/Só porque moro no morro/A minha miséria a vocês despertou/A verdade é que vivo com fome/Nunca roubei ninguém, sou um trabalhador/Se há um assalto à banco/Como não podem prender o poderoso chefão/Aí os jornais vêm logo dizendo que aqui no morro só mora ladrão/Se vocês estão a fim de prender o ladrão/Podem voltar pelo mesmo caminho/O ladrão está escondido lá embaixo/Atrás da gravata e do colarinho/O ladrão está escondido lá embaixo/Atrás da gravata e do colarinho/Falar a verdade é crime/Porém eu assumo o que vou dizer/Como posso ser ladrão/Se eu não tenho nem o que comer/Não tenho curso superior/Nem o meu nome eu sei assinar/Onde foi se viu um pobre favelado/Com passaporte pra poder roubar/Se vocês estão a fim de prender o ladrão/Podem voltar pelo mesmo caminho/O ladrão está escondido lá embaixo/Atrás da gravata e do colarinho/O ladrão está escondido lá embaixo/Atrás da gravata e do colarinho/No morro ninguém tem mansão/Nem casa de campo pra veranear/Nem iate pra passeios marítimos/E nem avião particular/Somos vítimas de uma sociedade/Famigerada e cheia de malícias/No morro ninguém tem milhões de dólares/Depositados nos bancos da Suíça/Se vocês estão a fim de prender o ladrão/Podem voltar pelo mesmo caminho/O ladrão está escondido lá embaixo/Atrás da gravata e do colarinho/O ladrão está escondido lá embaixo/Atrás da gravata e do colarinho/E se vocês estão a fim de prender um honesto/Podem voltar pelo mesmo caminho/Os quatorze estão escondidos lá embaixo/Atrás da gravata e do colarinho/O ladrão escondido lá embaixo/Atrás da gravata e do colarinho”.

Alô, malandragem, maloca o flagrante, disco de 1986, atingiu alto índice de venda, puxado por “Malandragem dá um tempo”, com o refrão “Vou apertar, mas não vou acender agora/Se segura malandro, pra fazer a cabeça tem hora”. A música também ganhou grande projeção com a gravação do grupo Barão Vermelha, atraindo a atenção de outros artistas para a obra de Bezerra da Silva. O rapper Marcelo D2 lançou disco com repertório exclusivo dele, de quem se tornou amigo, depois que o convidou para participar de show quando ainda integrava o grupo Planet Hemp.

A gíria e a cultura do povo

Em 1987 lançou Justiça social, com “As favelas que não exaltei”, “Preconceito de cor” e “A semente”, entre outras. Violência gera violência é do ano seguinte e traz “Candidato caô, caô”, “Vida de operário”, “Pobre compositor” e “Samba manifesto”. De 1989 é o disco Se não fosse o samba, com destaque para “Sonho de operário”. Eu não sou santo, 1990, tem “Só quando o morcego doar sangue” e “Poeta operário”. Partideiro da pesada, de 1991, reúne “Aos donos da nação”, “Pastor trambiqueiro” e “Canudo de ouro”. O disco Presidente caô, caô lançou em 1991, se destacando “Eu sou favela” e “A vida do povo”. Cocada boa é de 1993.

Bezerra da Silva contra o verdadeiro canalha e, na companhia de Dicró e Moreira da Silva, Os três malandros in concert (paródia aos tenores Luciano Pavarotti, Plácido Domingo e José Carreras), são de 1995. Pela RGE, em 1996 saiu Meu samba é duro na queda, com destaque para “Seja o que Deus quiser”, “Negro de verdade” e “Vírus da corrupção”. De 1998 são Eu to de pé e Provando e comprovando sua versatilidade. No ano seguinte, Bezerra da Silva ao vivo. Com Malandro é malandro, Mané e Mané ele fechou o milênio 2000. Dois anos depois lançou A gíria é a cultura do povo. O samba que dá título ao disco é a seguinte:

“Toda hora tem gíria no asfalto e no morro/Porque ela é a cultura do povo/Pisou na bola conversa fiada malandragem/Mala sem alça é o rodo, tá de sacanagem/Tá trincado é aquilo, se toca vacilão/Tá de bom tamanho, otário fanfarrão/Tremeu na base, coisa ruim não é mole não/Tá boiando de marola, é o terror alemão/Responsa catuca é o bonde, é cerol/Tô na bola corujão vão fechar seu paletó/Toda hora tem gíria no asfalto e no morro/Porque ela é a cultura do povo/Se liga no papo, maluco, é o terror/Bota fé compadre, tá limpo, demorou/Sai voado, sente firmeza, tá tranquilo/Parei contigo, contexto, baranga, é aquilo/Tá ligado na fita, tá sarado/Deu bode, deu mole qualé, vacilou/Tô na área, tá de bob, tá bolado/Babou a parada, mulher de tromba, sujou/Toda hora tem gíria no asfalto e no morro/Porque ela é a cultura do povo/Sangue bom tem conceito, malandro e o cara aí/Vê se me erra boiola, boca de siri/Pagou mico, fala sério, tô te filmando/É ruim hem/O bicho tá pegando/Não tem caô, papo reto, tá pegado/Tá no rango mané, tá aloprado/Caloteiro, carne de pescoço, vagabau/Tô legal de você sete-um, gbo, cara de pau”.

Meu bom juiz, disco gravado ao vivo, saiu em 2003. Em setembro de 2004, com pneumonia e enfisema pulmonar, chegou a ficar em coma por uma semana. E, meses, depois voltou a ser internado no Hospital dos Servidores do Estado, onde faleceu a 17/1/2005, aos 77 anos de idade. O velório, no Teatro João Caetano, reuniu amigos, artistas e admiradores; e o sepultamento ocorreu no cemitério Ordem Terceira do Carmo.

Caminho da luz, lançamento póstumo, em 2005, tem repertório de apelo evangélico, em ritmo de samba. Bezerra da Silva se tornou evangélico da Igreja Universal do Reino de Deus, a partir de 2001. Antes, por décadas, foi ligado à umbanda e frequentou o terreiro do Pai Nilo, no Município de Belford Roxo, na Baixada Fluminense.

A obra musical e a vida de Bezerra da Silva caminharam lado a lado, se equilibrando na extremidade da linha social, em constante conflito entre o bem e o mal: conceitos eventuais, circunstanciais, ocasionais. É uma fonte obrigatória de consulta para se compreender o que se convencionou chamar “cultura marginal dos morros e favelas”.

*Lenin Novaes, jornalista e produtor cultural. É co-autor do livro Cantando para não enlouquecer, biografia da cantora Elza Soares, com José Louzeiro. Criou e promoveu o Concurso Nacional de Poesia para jornalistas, em homenagem ao poeta Carlos Drummond de Andrade. É um dos coordenadores do Festival de Choro do Rio, realizado pelo Museu da Imagem e do Som – MIS. Atualmente é Assessor de Imprensa do Centro de Ciências da Saúde (CCS) da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).

 

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